"O conhecimento é o mais potente dos afetos: somente ele é capaz de induzir o ser humano a modificar sua realidade." Friedrich Nietzsche (1844?1900).
 

Professora Gisele Leite

Diálogos jurídicos & poéticos

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Lembre-se da morte

A expressão memento mori é de origem latina e corresponde a lembre-se da morte, lembre-se que é moral ou de que morrerá. Na Antiguidade Clássica, era expressão de reflexão utilizada por filósofos estoicos.

A referida expressão significou igualmente uma saudação dos paulianos Eremitas de São Paulo da França lá pelos idos de 1625, os chamados "Irmãos da Morte". E, também inspirou muitas obras no domínio da arte cristã.

A mesma expressão resta relacionada às paradas que Roma realizava em honra de seus generais vitoriosos em batalha e, enquanto desfilava em triunfo perante o povo, carregando os despojos das conquistas, uma Auriga segurava uma coroa de louros sobre a cabeça do vitorioso enquanto surrava memento homo, lembra-te que és um homem e memento mori (lembre-te de que és mortal). Assim, evitava-se a adoração da plebe e a celebração dos feitos do homenageado, que o fizesse sentir-se elevado à divindade.

Desde a Antiguidade Clássica, no Ocidente, a morte permeia todo o pensamento. E, Demócrito isolou-se em meio às sepulturas, Até mesmo Platão, em Fédon, ao narrar a morte de Sócrates, terá escrito que a filosofia, na prática, "era morrer e estar morrendo".

Sendo um conceito fundamental do estoicismo, segundo o qual a morte, natural e correta, não deve ser temida, mas elaborada. E, as cartas de Sêneca estão repletas de injunções à meditação sobre a morte.

In litteris, disse Sêneca: "Muitos homens se apegaram e apegam à vida, assim como os que são levados pela correnteza e se agarram às pedras afiadas. A maioria deles mingua e flui em miséria face ao medo da morte e às dificuldades da vida; esses não estão dispostos a viver e ainda não sabem como morrer." In: Carta IV: Sobre os Terrores da Morte.

Epiteto também aconselhou seus discípulos a que, quando beijassem os mais próximos, se lembrassem da própria mortalidade, restringindo seu prazer, como o fazem, aqueles que permanecem com os homens nos triunfos e os lembram de que são mortais.

Marco Aurélio convidou os leitores a considerar o quão efêmeras e mesquinhas são todas as coisas mortais, na sua obra intitulada Meditações. E, segundo alguns relatos sobre o triunfo romano que um companheiro ou escravo público ficasse atrás ou perto do general triunfante durante a procissão e o lembrasse, às vezes da sua própria mortalidade ou o incitasse a olhar para trás.

Há uma versão sobre esse mesmo aviso, que é, em geral, traduzida como: "Lembre-se, César, você é mortal".

No plano religioso, há diversas passagens do Antigo Testamento que exortam à lembrança da morte. Como no salmo 90, Moisés ora para que Deus ensino o seu povo, a contar os nossos dias, para que alcancemos um coração sábio (Salmo 90:12).

Em Eclesiastes, o Pregador insiste que “É melhor ir à casa do luto do que ir à casa da festa, pois este é o fim de toda a humanidade, e os vivos levarão isso a sério” (Ecl. 7:2). Em Isaías, o tempo de vida do ser humano é comparado ao curto tempo de vida da erva: "A erva murcha, a flor murcha quando o sopro do Senhor sopra sobre ela; certamente o povo é erva" (Is .40:7).

Para o cristianismo primitivo a mesma expressão se desenvolveu com o próprio crescimento do cristianismo que enfatizava a existência o Céu, o Inferno, o Hades e a salvação da alma na vida

após a morte. Tertuliano no século II afirmou em sua obra "Apologética" que durante uma procissão triunfal, um general vitorioso tinha alguém atrás dele, segurando uma coroa sobre sua cabeça e sussurrando, in verbis:" Respice post te. Hominem te esse memento. Memento mori. " ("Cuide de si mesmo. Lembre-se de que você é um homem. Lembre-se de que você morrerá.").

Embora nos tempos modernos isso tenha se tornado uma expressão padrão, na verdade nenhum outro autor antigo confirma isso, e pode ter sido uma moralização cristã por parte de Tertuliano, em vez de um relato histórico preciso.

No contexto cristão, o memento mori adquire um propósito moralizante bastante oposto ao tema nunc est bibendum (agora é a hora de beber) da antiguidade clássica. Para o cristão, a perspectiva da morte serve para enfatizar o vazio e a fugacidade dos prazeres, luxos e realizações terrenas e, portanto, também como um convite para concentrar os pensamentos na perspectiva da vida após a morte.

Existe uma passagem bíblica frequentemente associada ao memento mori neste contexto é In omnibus operibus tuis memorare novissima tua, et in aeternum non peccabis (a tradução latina da Vulgata de Eclesiástico 7:40, "em todas as tuas obras, esteja atento ao teu último fim e nunca pecarás.").

Isto encontra expressão ritual nos ritos da Quarta-feira de Cinzas, quando as cinzas são colocadas sobre as cabeças dos adoradores com as palavras: "Lembre-se, homem, que você é pó e ao pó retornará."

Memento mori tem sido uma parte importante das disciplinas ascéticas como meio de aperfeiçoar o caráter, cultivando o desapego e outras virtudes, e voltando a atenção para a imortalidade da alma e a vida após a morte.

 Verifica-se que se tornou uma moda nos túmulos dos ricos no século XV, e os exemplos sobreviventes ainda oferecem uma lembrança nítida da vaidade das riquezas terrenas.

Mais tarde, as lápides puritanas nos Estados Unidos coloniais frequentemente representavam crânios alados, esqueletos ou anjos apagando velas. Estes estão entre os numerosos temas associados às imagens do crânio.

Outro exemplo de memento mori são as capelas de ossos, como a Capela dos Ossos em Évora ou a Cripta dos Capuchinhos em Roma. São capelas cujas paredes estão totais ou parcialmente cobertas por restos humanos, maioritariamente ossos. A entrada da Capela dos Ossos tem a seguinte frase: “Nós, ossos, aqui deitados nus, aguardamos os vossos”.

Os relógios públicos seriam decorados com lemas como ultima forsan ("talvez a última" [hora]) ou vulnerant omnes, ultima necat ("todos ferem e os últimos matam"). Os relógios carregam o lema tempus fugit, “o tempo foge”. Relógios antigos que batiam muitas vezes exibiam autômatos que apareciam e marcavam a hora; alguns dos célebres relógios autômatos de Augsburg, Alemanha, faziam a Morte bater a hora.

As pessoas privadas carregavam lembranças menores de sua própria mortalidade. Maria, Rainha da Escócia, possuía um grande relógio esculpido na forma de uma caveira de prata, embelezado com as linhas de Horácio: "A morte pálida bate com o mesmo ritmo nas cabanas dos pobres e nas torres dos reis.

No final do século XVI e durante o século XVII, as joias memento mori eram populares. Os itens incluíam anéis de luto, pingentes, medalhões e broches.  Essas peças representavam pequenos motivos de caveiras, ossos e caixões, além de mensagens e nomes dos falecidos, escolhidos em metais preciosos e esmalte.

Nesse mesmo período surgiu o gênero artístico chamado vanitas, palavra latina para vazio ou vaidade. E, foram populares especialmente na Holanda e depois se espalhando para outras nações europeias, as pinturas vanitas que representavam conjunto de vários objetos simbólicos tais como crânios humanos e velas gotejantes, flores murchas, bolhas de sabão, borboletas, mariposas e ampulhetas. As assembleias vanitas transmitiam a impermanência de esforços humanos e da decadência humana que é inevitável com a passagem do tempo. Há vários temas relacionados com a imagem da caveira.

Memento mori é também tema literário relevante principalmente na prosa inglesa como Hydriotaphia, Um Burial, de Sir Thomas Browne, e Holy Living and Holy Dying de Jeremy Taylor. Tais obras compõem o culto jacobina que marcou o fim da era elisabetana. E, no fim do século XVIII, as Country Churchyard elegias literárias eram algo muito comum. Elegy Written in a, de Thomas Gray, e Night Thoughts, de Edward Young, são membros típicos do gênero. Na literatura devocional europeia da Renascença, a Ars Moriendi, o memento mori tinha valor moral ao lembrar os indivíduos da sua mortalidade.

Além de réquiem e música fúnebre há a rica tradição de memento mori na música antiga da Europa, especialmente para aqueles que enfrentam a morte sempre presente durante as recorrentes pandemias de peste bubônica a partir de 1340 e tentaram se endurecer antecipando o inevitável nos cantos, desde os

simples Geusslerieder do movimento Flagelante até as canções claustrais ou cortesãs mais refinadas.

As duas estrofes latinas seguintes (com suas traduções para o inglês) são típicas do memento mori na música medieval; eles são do virelai Ad Mortem Festinamus do Llibre Vermell de Montserrat de 1399:

     A vida é curta e em breve terminará;

     A morte chega rapidamente e não respeita ninguém,

     a morte destrói tudo e não tem pena de ninguém.

     Estamos nos apressando para a morte, evitemos pecar.

      Se você não voltar atrás e se tornar como uma criança,

      E mudar sua vida para melhor,

      Você não poderá entrar, bendito, no Reino de Deus.

       Estamos nos apressando para a morte, evitemos pecar.

 

A dança macabra é outro exemplo bem conhecido do tema memento mori, com sua representação dançante do Grim Reaper carregando ricos e pobres.

A comunidade puritana na América do Norte do século XVII menosprezava a arte porque acreditava que ela afastava os fiéis de Deus e, se afastasse de Deus, só poderia levar ao diabo.

Contudo, os retratos eram considerados registros históricos e, como tal, eram permitidos. Thomas Smith, um puritano do século XVII, lutou em muitas batalhas navais e também pintou. Em seu autorretrato, vemos essas atividades representadas ao lado de um típico memento mori puritano com uma caveira, sugerindo sua consciência da morte iminente.

Na cultura contemporânea, Roman Krznaric sugere que Memento Mori é um tópico importante para trazer de volta aos nossos pensamentos e sistema de crenças; "Os filósofos criaram muito do que chamo de 'provadores da morte' – experimentos mentais para aproveitar o dia." Esses experimentos mentais são poderosos para nos reorientar de volta à morte, à consciência atual e à vida com espontaneidade.

Albert Camus afirmou: "Aceite a morte, depois disso tudo é possível." Jean-Paul Sartre expressou que a vida nos é dada cedo e no final é encurtada, ao mesmo tempo que nos é tirada a cada passo do caminho, enfatizando que o fim é apenas o começo de cada dia.

Enfim, para os estoicos a felicidade só é encontrada na dominação do homem sobre suas paixões consideradas como vício da alma em detrimento da razão. É um conceito fundamental que enxerga a morte como fato natural e certo que não deve ser temido e, sim, elaborado. Contemplar a impermanência da vida nos ajuda a cultivar a gratidão pelo presente e a encontrar serenidade mesmo em meio às adversidades.

 

 

GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 10/01/2024
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