Heráclito admitia a mudança constante enquanto Parmênides acreditava que o ser é imutável. Quem tem razão?
A principal diferença é que Heráclito defendia o princípio do devir (mudança constante), simbolizado pelo fogo e pela água, enquanto Parmênides defendia o princípio do ser (imutabilidade e permanência), argumentando que a mudança é uma ilusão dos sentidos e que a verdadeira realidade é eterna e una. Heráclito focava na transformação e fluxo da realidade, e Parmênides na unidade e fixidez de um único Ser.
Heráclito (Tudo Flui). Conceito central: A realidade está em constante movimento e mudança.
Símbolo: O fogo, que representa a transformação incessante e o devir.
Experiência dos sentidos: Valorizava a experiência sensível e a transformação do mundo.
Pensamento: Enfatizava que nada é fixo e que o mesmo objeto nunca é o mesmo de antes. Sua frase famosa "Não se pode pisar duas vezes em um determinado rio" ilustra essa ideia de fluxo constante.
Parmênides (O Ser Imutável). Conceito central: A realidade é una, eterna, imóvel e imutável.
Conhecimento: Buscava o que permanece na realidade, para além das aparências.
Experiência dos sentidos: Considerava que os sentidos enganam, pois mostram o mundo como em constante transformação, o que é uma ilusão.
Pensamento: Afirmava que a mudança é apenas uma aparência superficial, e que o "Ser é Uno e imutável", pois o Ser não pode não ser.
Em resumo, Heráclito: Realidade como um rio que flui, em constante movimento. Parmênides: Realidade como uma rocha sólida e eterna, sem qualquer alteração.
Heráclito e Parmênides participaram da abertura do pensamento filosófico ocidental, o problema fundamental é o mesmo para os dois pensadores. Descrever o princípio apenas acessível ao pensamento o qual num só golpe pode ser capaz de perceber a totalidade.
É próprio à visão do princípio arché, nomeadamente a questão, já para Anaximandro, mestre indireto desses pensadores, que tivera contato com Xenóphanes de Colofón, discípulo deste pensador para quem o princípio é o ápeiron.
Desde Tales, os physiólogoi, os investigadores da phýsis, dialogam entre si a respeito dele, ainda que sugerindo caminhos argumentativos diversos.
Para iniciar essa demonstração procuraremos uma aproximação quanto à sentença de Anaximandro, o único fragmento legado pela tradição que nos restou desse pensador. Teremos que buscar em nós hoje uma ressonância da sentença. Elaboraremos apenas uma interpretação, sem pretender, com isso, esgotar a questão.
Parmênides também é um admirado com o que, habitualmente velado, de repente se descortina à visibilidade pensante. Essa admiração conduz a uma viagem sem volta em direção à alétheia.
As moças, filhas do sol, que no Prólogo do Poema de Parmênides guiam o carro até a morada da deusa reveladora da verdade, vão tirando os véus da frente de seus rostos. Somente a partir desse movimento, o iniciado poderá logo adiante perceber a viabilidade de um único caminho.
O caminho necessário. O caminho do Ser, pois só há ser. O não-ser não é, o não-ser não há. Se fosse, ele seria. Não se trata aqui de mero artifício lógico. O que Parmênides descobre, admirado, é que não há como escapar ao ser.
Se por acaso dizemos “não-ser” relativamente a qualquer coisa que seja, isto só pode ser ilusão, pois o que assim é nomeado, está já mergulhado na dimensão do ser.
O Ser encerra, portanto, igualmente tudo que é, numa unidade perfeita. Daí um de seus sinais ser a imobilidade. Sempre, sem começo nem fim, sem nascer nem perecer, o Ser amarra junto tudo que é, “pois de todo lado igual a si, se estende nos limites por igual” (VIII, 49) e “é todo pleno do que é. Por isso é todo contínuo: pois ente a ente acerca” (VIII, 24 e 25). Tal amarração é sempre.
A imobilidade característica do Ser, porém, nada tem a ver com estaticidade. Muito pelo contrário, nela, justamente nessa imobilidade uniabarcante é que reside a possibilidade da totalidade dos entes, incluindo todas as suas formas de movimento, embora ele precise se calar inteiramente acerca desse movimento.
Pois não se trata, no Poema, de cada caso ôntico em que algo vem a ser a partir do não-ser, mas, de uma só vez, da concentração de todas as possibilidades de ser. Ao caso particular de movimento Parmênides nomeia ilusão.
Toda vez que entendemos que algo se transforma dizemos que ele vem a ser o que não era, mas segundo a compreensão radical de Parmênides, cada vez que digo sobre algo que ele não é, me engano, já que nada escapa à concentração do ser que a tudo sempre já abarcou.
Parmênides tenta uma aproximação do que, ainda que sumamente presente, encontra-se habitualmente velado. Ele o faz operando uma negação.
Como vimos, a nomeação do Princípio por parte de Anaximandro se dá através de um termo evidentemente negativo: apeiron, o sem limite, o sem determinação, o sem forma, o “não-lugar”. Parmênides vale-se dessa mesma estratégia.
Para sinalizar o Ser em sua “ausência [que é] presente firmemente em pensamento” (frag. 4 verso 1), Parmênides conta com a experiência proveniente do âmbito ôntico, pois é à medida que ela é negada que se pode chegar a indicar uma outra experiência, exclusivamente acessível ao pensamento, reservada somente àquele que pode dispor-se a se afastar da ambiência e dos limites do entendimento dos mortais comuns, e pôr-se à altura da verdade pronunciada pela deusa.
Parmênides não ignora, em seu Poema, o âmbito da multiplicidade dos entes. É dele que o poeta, conduzido pelas divindades, parte. Não somente isso.
Esse mesmo âmbito, como fica claramente dito no fragmento 1 deve ser inclusive levado em conta, sob pena de o poeta não dar conta de conhecer tudo. Ele também deve aprender “como as opiniões precisavam patentemente ser, atravessando tudo através de tudo” (frag. 1 verso 31 e 32).
E Parmênides força a linguagem a servir puramente ao pensamento. Daía viagem do Prólogo indicar um afastamento da senda dos mortais. Não é a partir do olhar e escuta, isto é, da sensibilidade habituais que será possível chegar à formulação pensante legada pela tradição como fragmento 3, de que há mesmidade entre ser e pensar (noein).
A sensação empírica do movimento e realidade da transformação e diferença dos entes não atinge em nada a formulação parmenídea de que o Ser é imóvel. Quando Parmênides chama tudo isso de meras ilusões, ele não quer negar o fato das experiências dos homens. Ele mesmo, enquanto homem que vive e sente, não pode negar nada disso. A questão é bem outra.
Parmênides, enquanto pensador, está lidando com os limites do pensamento e da linguagem enquanto tal. Ora, é o Ser ele mesmo, o primeiro e porque não dizer único verbo, que sempre já e necessariamente se encontra nesse limite.
A primeira parte do Poema de Parmênides nos força a nos transportar para esse limite em que toda a diferenciação ôntica não faz sentido algum.
Na verdade, o Ser apresentado por Parmênides pode ser aproximado de algo assim como o nada, não enquanto uma negatividade, mas sim como o que absolutamente recusa qualquer determinação, tal como o ápeiron de anaximandro.
Parmênides, assim como Anaximandro, lida com o Necessário e o nomeia Ser, o único que verdadeiramente é. Tudo o mais não sendo senão “variação” sobre esse mesmo tema intransponível. Mas falta ainda dizer que se o pensador de Eléia, a fim de conduzir a linguagem para seu limite enquanto discurso que nomeia o Ser em sua manifestação pura, inaugura uma forma discursiva que podemos chamar de lógica, isso, porém, não significa que seu pensamento estivesse imbuído de uma preocupação lógica no sentido do puro formalismo lógico que conhecemos e que começou a se desenvolver certamente a partir do pensamento e discursividade abertos por ele.
Embora conserve uma carga lógica extraordinária e permaneça como fonte para discussões nesse âmbito da reflexão filosófica, não se pode de modo algum, negligenciar a tão forte, ou mais, carga ontológica presente no Poema de Parmênides.
A preocupação de Heráclito também é a phýsis, a emergência enquanto tal do que de algum modo emerge, é. Por isso mesmo, devemos entender que a força de seu pensamento não está na dedicação aos entes em sua multiplicidade.
Heráclito, tanto quanto Anaximandro e Parmênides não se ocupa, enquanto pensador, com este ou aquele ente particular, nem mesmo com todo o conjunto de entes particulares, como se costuma pensar quando se afirmar despreocupadamente que Heráclito ocupa-se pura e simplesmente com o fluxo das coisas, o devir.
Poderíamos dizer que Heráclito também se interessa pela explicitação do Ser, desde que façamos a ressalva de que o que aqui se está nomeando Ser, tem o caráter de princípio sem jamais se esgotar no modo de ser dos entes em suas configurações particulares e parciais.
Heráclito nomeia com o termo lógos o que aqui nomeamos Ser, o único que é. Lógos: uma instância reunidora, sempre constante, que abriga o conflito, a convergência e a divergência.
Mas que o lógos implique no jogo conflitante de divergência e convergência, isso, no contexto do pensamento do efésio, não quer iluminar senão a visão de unidade originária apenas acessível ao homem realmente investigador, nos mesmos moldes daquele poeta que foi, no Poema de Parmênides, conduzido através das portas do dia e da noite, até a deusa que profere a verdade a quem está à altura de ouvi-la.
Heráclito também chamou de kósmos o princípio. No fragmento 89, conservado a partir de escritos de Plutarco, o pensador de Éfeso diz “ser o cosmo, para os acordados, uno e comum (koinón), enquanto, dentre os que dormem, cada qual se volta para seu cosmo particular”. Sobre o kósmos ele ainda diz o seguinte, no fragmento 30, comentado por Clemente de Alexandria:
“O cosmo, o mesmo (autón) para todos, nenhum dos deuses e nenhum dos homens o fez, mas sempre foi, é e será, fogo sempre vivo, acendendo segundo medidas e segundo medidas apagando”.
O cosmo uno e comum, incriado, mas sempre sendo, aparece assim para os acordados, mas encobre-se para os que dormem, embora também para esses ele sempre seja, já que é comum.
Aqueles “que dormem” são justamente os que não se dão conta da unidade e mesmidade do kósmos. Eles o compreendem fragmentariamente a partir dos entes tomados como entidades fixas e isoladas umas das outras. Sobre os que dormem, mas também sobre o kósmos, nomeado lógos nesse momento preciso, nos falam os dois fragmentos tidos como sendo os primeiros do livro de Heráclito.
Segundo Heráclito, tal pronunciamento não verbal acerca da unidade que reúne o todo de modo articulado, revela à percepção do inteligível, própria ao pensador, uma constante guerra (pólemos10) na origem, mas igualmente um constante movimento representado pelo fluxo dos rios.
Se Parmênides e Heráclito vislumbram o Princípio como unidade, divergem diametralmente no modo de caracterizar essa unidade.
Enquanto o primeiro sinaliza o Ser que tudo abarca como imobilidade pura, Heráclito prefere descrever o modo de tudo estar contido no Um, à medida que tal unidade não se deixa abarcar em nenhum estado, como movimento que não tem chance de fixar-se.
Eis porque tradicionalmente um é chamado imobilista e o outro, mobilista.
Mas, como já vimos, “o imobilismo” parmenídeo nada ter a ver com qualquer tipo de estaticidade, bem como “o mobilismo” heraclítico não é suficientemente compreendido se o “entendemos” a partir da visualização do movimento numa dimensão ôntica da realidade, embora haja imagens em alguns de seus fragmentos que podem deixar margem para um tipo de interpretação apressada nesse sentido.
Dois de seus famosos fragmentos dizem: 1) que “nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos” (Frag. 49a) e 2) “não é possível entrar duas vezes no mesmo rio” (Frag. 91).
O mais importante na evidente alusão aqui feita ao movimento não é, porém, como muitos pensam, o aspecto do deslocamento no espaço, nem mesmo a transformação do ponto de vista dos entes, do ponto de vista dos que tomam esta ou aquela forma.
O que realmente importa para o pensamento filosófico resguardado nos dois fragmentos citados acima é a afirmação da consistência-nenhuma que constitui fundamentalmente a originariedade da realidade, concomitantemente à noção do conflito ou guerra originária (pólemos) que consta em outros fragmentos seus. Ressoa neste momento, mais uma vez, a concepção que Anaximandro tem de arché: ápeiron.
O horizonte orientador da noção de devir em Heráclito vem da compreensão do princípio enquanto consistência-nenhuma, isto é, a compreensão de que o logos, enquanto unidade instauradora é articulação de convergência e divergência: guerra originária.
Assim, tudo “está junto” (no sentido de poder ser tudo) no lógos: tudo somente “é” o que “é” em contínua ligação com o que isso mesmo não é.
Para dar um exemplo tosco, não há cadeira sem chão, chão sem parede, parede sem lado de fora, não há céu sem estrelas e assim por diante..., de tal maneira que, de modo estereotipado, cada coisa está em estreita relação com seu contrário: “o mesmo é vivo e morto, acordado e adormecido, novo e velho: pois estes, modificando-se, são aqueles e, novamente, aqueles, modificando-se, são estes” (Frag. 88) e “as coisas frias esquentam-se, o quente esfria-se, o úmido seca, o seco umidifica-se” (Frag. 126).
Essa transmutação inaparente de tudo em tudo, habitualmente invisível aos olhos da massa, é o único que há.
Em meio a essa grande maioria, nos encontramos também nós quando julgamos rasteiramente o pensamento de Parmênides e Heráclito como meramente contrários um ao outro. Eles não se contrariam. Participam, na verdade, da mesma conversa, aquela que procura descrever o princípio, chamado por ambos: phýsis.
Mas como quem conversa amigavelmente, eles podem perfeitamente apresentar diferentes argumentos, e este é exatamente o caso deles.
Quando Parmênides fala dos homens de duas cabeças no fragmento 6 de seu Poema, não fala de Heráclito, como muitos pensam, mas fala, por exemplo, destes mesmos que acham que pensam, à medida que fazem o pensamento ora pensar, ora não pensar, isto por estarem a considerar exclusivamente como o grande pensador ora Heráclito, ora Parmênides.
Anaximandro, Parmênides e Heráclito participam da mesma tradição de pensamento. Todos eles anunciam o que permanece invisível aos olhos do homem em sua lida prática cotidiana.
Habitualmente não vemos, como Anaximandro o faz, o ilimitado como origem de tudo, como princípio do que tem um limite, nem tampouco percebemos que ter limite implica na coincidência de nascimento e morte.
Só vemos costumeiramente o que de algum modo é determinado. Vemos, isso sim, que uma coisa nasce aqui e morre ali, nasce por isto e morre por aquilo.
Habitualmente não vemos, como Parmênides, que a verdade é que só há o ser e o não ser absolutamente não há. Não percebemos que tudo o que nomeamos não ser já é, e, portanto, nesse sentido, o não ser é somente ilusão e, sendo assim, o movimento, acontecimento que sempre supõe o não ser, é ilusão.
Não entendemos que a totalidade é sempre o instante, não este ou aquele instante determinado, mas “o” instante e que por isso mesmo é imóvel, instantâneo. Só vemos todas as coisas em sua particularidade, podendo mudar de figura. Não temos olhos para a necessária imobilidade parmenídea do ser.
Em meio a essa grande maioria, nos encontramos também nós quando julgamos rasteiramente o pensamento de Parmênides e Heráclito como meramente contrários um ao outro. Eles não se contrariam. Participam, na verdade, da mesma conversa, aquela que procura descrever o princípio, chamado por ambos: phýsis.
Mas como quem conversa amigavelmente, eles podem perfeitamente apresentar diferentes argumentos, e este é exatamente o caso deles. Quando Parmênides fala dos homens de duas cabeças no fragmento 6 de seu Poema, não fala de Heráclito, como muitos pensam, mas fala, por exemplo, destes mesmos que acham que pensam, à medida que fazem o pensamento ora pensar, ora não pensar, isto por estarem a considerar exclusivamente como o grande pensador ora Heráclito, ora Parmênides.
Referências
COSTA, a. Heráclito. Fragmentos contextualizados. Tradução, apresentação e comentários: Alexandre Costa. Rio de Janeiro: Difel, 2002.
HEGEL, G. W. F. Lecciones sobre la historia de la filosofia vol I. México: Fondo de Cultura Econômica, 1955.
HEIDEGGER, M. A Sentença de Anaximandro. In: Caminhos de Floresta. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2002.
______________. Heráclito. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998.
KIRK & RAVEN Os filósofos Pré-socráticos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1982. LES PRÉSOCRATIQUES. Paris: Gallimard, 1988.
NIETZSCHE, F. A Filosofia na Idade trágica dos gregos. Lisboa: Edições 70, 2002.
_____________. Les philosophes préplatoniciens. Paris: L’éclat, 1994.
Os Pensadores Originários. Anaximandro Parmênides Heráclito. trad. de Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski. Petrópolis: Vozes, 1991.
PARMÊNIDES Da natureza. Trad. Fernando Santoro. Primeira edição limitada ao I Seminário OUSIA de Estudos Clássicos dedicado ao Poema de Parmênides em outubro de 2006.