Direito Civil Contemporâneo.
A tradição atual do civil law baseia-se em duas influências, a saber: uma de matriz francesa, com a Revolução de 1789, e outra, de matriz germânica, com a Escola História, cuja maior representante foi Friedrich Karl von Savigny e, posteriormente, com o movimento pandectista.
Tais duas forças deram a estrutura do hoje conhecemos por civil law, e se desenvolveram paralelamente no século XIX e geraram consequências muito simétricas e ficaram complementares.
Se o positivismo exegético que é uma contribuição francesa, não se pode negar aos alemães a força dos conceitos jurídicos como categorias principais do sistema sobre o qual se organizam os currículos acadêmicos e, dá base ao pensamento dos juristas até hoje, ao exemplo do negócio jurídico, da obrigação e do contrato.
Apesar de todos os ataques feitos contra a esse eixo da tradição de civil law, é notável seu êxito nos dias contemporâneos em doutrina dos mais diferentes países.
Veja ‑se, por exemplo, a recente publicação alemã de direito das obrigações de Jan Dirk Harke (Allgemeines Schuldrecht. Heidelberg: Springer, 2010). na abertura do livro, o autor adverte que, a despeito das sucessivas mudanças no Direito Civil, especialmente com a lei de modernização do Direito das obrigações, ainda é possível encontrar grandes simetrias com a tradição romanista clássica. Se observado o sumário da obra, essa assertiva é confirmada pela conservação de categorias como relações obrigacionais, deveres prestacionais ou resolução obrigacional. Na dogmática francesa contemporânea, no direito dos Contratos, por exemplo, ainda se toma o velho Code de 1804 como roteiro para a exposição das matérias, como se pode ver do sumário do livro de Frédéric Leclerc (Droit des contrats spéciaux. Paris: Lgdj, 2007).
Se os historicistas lutaram contra a introdução do modelo francês de Código Civil na Alemanha, como não permite esquecer a famosa polêmica Savigny‑Thibaut, os pandectistas transformaram seus esforços de resgate do direito romano nas bases do Bürgerliches Gesetzbuch (BgB) de 1896, em vigor desde 1900.
De fato, a racionalidade, a estrutura e os princípios da tradição de civil law, em geral, a o Direito Civil, em particular, são devidos à essa notável influência franco-germânica. E, as contestações à essa tradição atualmente são contundentes até mais do outrora.
John Henry Merryman e Rogelio Pérez‑Perdomo demonstram o impacto de novos movimentos como o neoconstitucionalismo, a crítica à teoria da separação de poderes e o ativismo judicial sobre as águas até então tranquilas da centralidade do direito privado e do self restraint dos magistrados, submetidos ao paradigma da legalidade.
No caso brasileiro, essas são as três forças mais evidentes nesse processo de destruição dos antigos alicerces de nossa tradição jurídica. Há, todavia, outros movimentos como o realismo jurídico, o Law and Economics[1] e as teorias da argumentação.
Começa ‑se a usar de conceitos e ferramentas típicas da análise econômica do direito e a se falar em ponderação ou sopesamento de princípios e valores, bem ao gosto, respectivamente, dos escritos de Richard Posner e Robert Alexy.
Experimentam ‑se, nesse cenário, situações de desagradável sincretismo metodológico, importação e apropriação inadequadas de conceitos e de categorias, tudo em nome de argumentações grandiloquentes, que, muita vez, escondem falácias, jogos de palavras ou vazios de fundamentação.
A esse respeito, teve ‑se a oportunidade de comentar alhures e há aportes críticos de significativa originalidade de João Baptista Villela, Lenio Luiz Streck, Juan Antonio García amado e Antonio Junqueira de Azevedo.
É verdade que muito tem sido alardeado a respeito da insuficiência do positivismo como Escola Jurídica, poiso modelo teórico enquanto fornecedor de ferramentas para interpretação e aplicação do Direito tem se mostrado ineficiente.
No Direito Civil contemporâneo, as críticas são diversas e múltiplas e se lastreiam em deficiências, incorreções ou inadequações tais como:
1. a eliminação e valores do mundo normativo;
2. a desconsideração da vida real, dos fatos, na análise de fenômenos jurídicos;
3. a fixação do juiz ao texto da lei, tornando-o um "robô' repetidor de normas legais, tornando-se o famoso juiz bouche de la loi preconizado por Montesquieu.
4. a não-observância de peculiaridades do caso concreto pelo julgador, atado e preso aos rigores forais;
5. a perpetuação de injustiças;
6. a ofensa ao princípio da preservação da dignidade da pessoa humana;
7. a prevalência da lei sobre a Constituição Federal vigente.
Tais argumentos denunciam a incompreensão do que seja o positivismo, especialmente, o de Kelsen, ou de evidente mistificação. Cumpre ressaltar que Kelsen jamais negou a existência de valores ou a importância dos fatos.
Em língua portuguesa, citam‑se: Rocha, Joaquim Freitas da. Constituição, ordenamento e conflitos normativos: Esboço de uma teoria analítica da ordenação normativa. In: Coimbra: Coimbra Editora, 2008; dias, Gabriel Nogueira. Positivismo jurídico e a Teoria Geral do Direito na obra de Hans Kelsen. São Paulo: RT, 2010. independentemente da adesão às ideias kelsenianas, é importante discutir seu legado teórico, sem a predisposição negativa de parte da doutrina, que o repudia sem ao menos ter se debruçado sobre suas obras. na Alemanha, tem‑se desenvolvido um movimento denominado de “kelsenianismo democrático”, segundo o qual, se não houver como pressuposto a existência de um estado democrático de direito, não se pode utilizar dos postulados da teoria pura.
Há clara advertência logo no início de sua teoria pura do direito, de que se ocupa do estudo do fenômeno jurídico sob a óptica normativa (ou tomando ‑se por objeto a norma): “Quanto a teoria pura empreende delimitar o conhecimento do direito em face destas disciplinas, fá ‑lo não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza do seu objeto.
Transcreve ‑se o trecho na íntegra, por sua importância para a compreensão do pensamento kelseniano: “a teoria pura do direito é uma teoria do direito positivo – do direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial.
(…) Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. procura responder a esta questão: o que é e como é o direito? Mas já não lhe importa a questão de saber como deve ser o direito, ou como deve ele ser feito.
É ciência jurídica e não política do direito. Quanto a si própria se designa como ‘pura’ teoria do direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente determinar como direito.
Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. esse é o seu princípio metodológico fundamental. isto parece ‑nos algo de per si evidente. porém, um relance de olhos sobre a ciência jurídica tradicional, tal como se desenvolveu no decurso dos sécs. XIX e XX, mostra claramente quão longe ela está de satisfazer à exigência da pureza. de um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem‑se confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política. esta confusão pode porventura explicar ‑se pelo fato de estas ciências se referirem a objetos que indubitavelmente têm uma estreita conexão com o direito.
Quanto a teoria pura empreende delimitar o conhecimento do direito em face destas disciplinas, fá ‑lo não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza do seu objeto” ( In: Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 4.ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 1 ‑2).
Sublinhe-se a refutação pois o positivismo de Kelsen confunde-se com o positivismo exegético. O que é grande equívoco, como demonstra a boa doutrina.
Nesse sentido: “daí a pergunta: desde quando obedecer a uma lei nos seus mínimos detalhes é ‘ser um positivista’? na verdade, confundem ‑se conceitos. vejamos: positivismo é uma coisa distinta, porque separava direito e moral, além de confundir texto e norma, lei e direito, ou seja, tratava ‑se da velha crença – ainda presente no imaginário dos juristas – em torno da proibição de interpretar, corolário da vetusta separação entre fato e direito, algo que nos remete ao período pós ‑revolução francesa e todas as consequências políticas que dali se seguiram. depois veio o positivismo normativista, seguido das mais variadas formas e fórmulas, que – identificando (arbitrariamente) a impossibilidade de um ‘fechamento semântico’ do direito – relegou o problema da interpretação jurídica a uma ‘questão menor’ (…)” (Streck, Lenio Luiz. O que é isto …, p. 83).
Detecta-se a existência de margem de discricionariedade para o aplicador do direito no positivismo. trata ‑se da famosa “moldura”, dentro da qual o aplicador do direito dispõe de margens de escolha para exercer sua atividade. a “moldura” decorre da aceitação de que existem “casos de indeterminação”, intencionais ou não, no escalão normativo inferior: “sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne direito positivo no ato do órgão aplicador do direito – no ato do tribunal, especialmente”. se o positivismo corresponderia a uma amarra ao juiz, a leitura dessa passagem desmente os críticos de Hans Kelsen.
Não há maiores contradições entre as posições de Hans Kelsen e os vários dos argumentos utilizados para criticar o direito Civil, suas leis e o modo clássico de sua aplicação. em certa medida, tudo se resolveria dentro dos esquemas da indeterminação e da moldura, presentes na teoria pura do direito. o problema, como se percebe, não está em se imputar ao direito Civil e à tradição de civil law o caráter positivista de seus fundamentos.
Constata-se que o novo direito Civil, também denominado de direito Civil constitucionalizado, repersonalizado, despatrimonializado etc., voltou ‑se para princípios e valores, por muito tempo esquecidos, ao exemplo da dignidade da pessoa humana, da função social do contrato, da função social da propriedade.
É também sustentado que esse novo direito Civil ocupou ‑se dos problemas da sociedade contemporânea, abrindo ‑se para as novas famílias, a função social da propriedade e a luta dos grupos excluídos.
Seria esse o novo limiar de um direito Civil humanista, pluralista, democrático e social. adjetivos, discursos hiperbólicos e afirmações panfletárias não faltam para descrever esse direito Civil pós‑moderno.
Muito bem. Mas, é imprescindível a realização de delimitações para se analisar toda essa enxurrada retórica em torno dessa nova visão do direito Civil. Há aqui duas ordens distintas de considerações.
Nem o positivismo kelseniano é (ou foi) propriamente cego à existência de elementos fáticos e valorativos. renunciou, é certo, a seu estudo objetivo, mas compreende sua existência e tem como próprio que outras ciências deles se ocupem.
Mas, não se busca no momento defender o positivismo. a noção que se pretende enaltecer é a de que se pode tomar o direito (ou, mais amplamente, o fenômeno jurídico) sob duas perspectivas: uma interna e outra externa16. a opção positivista kelseniana, por exemplo, é interna. o direito e seus conceitos, sua estrutura de ordenamento e de norma, as instâncias de validade, eis o substrato dessa análise interna. Mas, e a justiça? E, a legitimidade?
É conveniente separar as coisas. Quando se cogita algo como “o novo Direito Civil” busca os princípios e não a letra fria da lei” ou ele se ocupa “da justiça e não da lei”, faz ‑se uma brutal confusão entre o problema de o direito ter um referencial externo (a justiça, a legitimidade, o Bom, o Moral) de correção de suas normas e a forma como o direito é estudado.
É incorreto pontificar que o Direito Civil clássico e a tradição de civil law neste baseada são contrários aos valores. É adequado pontificar que se pode proceder a análise interna do Direito (e do Direito Civil, especialmente), sob égide dos postulados kelseniano.
Nesse caso, os valores, não foram tomados como referenciais externos de correção do Direito, do mesmo modo coo a eficiência econômica.
O busílis situa-se em realizar a escolha entre os fatores de correção externos ou internos. Eis o cerne do problema.
Exemplificando, temos o artigo 756 do Código Civil brasileiro de 2002 que afirma que o segurado e o segurador são obrigados a conservar, no aperfeiçoamento e na execução do contrato, “a mais estrita boa ‑fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a ele concernentes.”
Se for realizada uma análise interna desse dispositivo, sob o método kelseniano, não se utilizará, na interpretação da norma, de elementos sociológicos, econômicos ou de caráter exclusivamente moral. não que o intérprete esteja limitado ou constrangido pela literalidade desse texto.
Como visto, há um espaço de indeterminação e o aplicador do direito, dentro da “moldura”, pode optar por diversos sentidos. no caso do artigo 765, há um reforço a essa “abertura”, que é o uso da boa ‑fé e da probidade (veracidade), conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais, que tornam ainda mais ampla a discricionariedade do juiz no modelo kelseniano.
Em uma análise externa do artigo 765 do Código Civil brasileiro vigente, verifica-se haver dois modelos.
Um destes é o que se vale das ferramentas da Economia, o Law and Economics. A decisão sobre como se interpretar a conduta do segurado considera a eficiência econômica, por exemplo. Assim, o custo da decisão e seu efeito multiplicador teriam grande impacto no resultado da demanda.
E, do mesmo modo, no exame de responsabilidade civil por dano extrapatrimonial, o desvalor do resultado da conduta, o dano in re ipsa, é confrontado com o efeito de estímulo de condenações muito elevadas para a constituição da célebre indústria do dano moral.
O raciocínio usado pelos tribunais brasileiros não tem qualquer sofisticação econômica, mas é inegável que prevaleceu a análise externa na tomada de decisão, hoje consolidada nacionalmente, de limitar a um teto (bastante baixo) o quantum dessas indenizações.
Certamente, os defensores da análise econômica do direito dirão que seu modelo é mais eficiente.
Verifica-se, não se afirma que é mais justo, pois a justiça é um fator tão abstrato e inseguro que não serve como parâmetro de per si para fundamentar essas decisões. o que se faz aqui é recorrer a uma análise externa do direito. troca‑se a justiça pela eficiência da decisão. abandonam‑se conceitos indeterminados como “boa‑fé”, que teria por si só uma pretensa tradição histórica e quase nada de utilidade prática, como querem os adeptos desse modelo. outro exemplo é o conceito de quebra eficiente dos contratos, que ganhou recentes estudos na doutrina brasileira. aqui fica também evidenciada a substituição de modelos teóricos. o Direito Civil desenvolveu o clássico princípio res inter alios acta nec nocet nec prodest, mais conhecido como “relatividade dos efeitos do contrato”.
Como uma evolução dessa tradição, houve amplo desenvolvimento de estudos sobre os efeitos da função social sobre os contratos e a mitigação da exoneração do terceiro dos efeitos contratuais alheios. uma das novas leituras desse princípio, que o mitigam, é a doutrina do terceiro cúmplice, que determina a responsabilização do terceiro que interfere ilicitamente em relações negociais alheias, induzindo sua ruptura ou gerando danos aos contraentes.
A contraposição entre as duas formas de se interpretar a atuação do tertius no contrato. a análise externa propõe uma solução pautada por ferramentas econômicas: seria de todo ruim essa atuação ou ela é um mecanismo interessante de fomento às relações entre agentes no mundo produtivo?
Há a defesa veemente da análise externa na interpretação desses vínculos, quando a quebra contratual produz efeitos mais vantajosos do que sua manutenção. a eficiência substitui a segurança jurídica. Mas, aqui, como nos outros casos, recorre ‑se ao elemento externo – o econômico – para se utilizar como fator de correção da norma ou de aferição da correspondência do fato ao que se pode chamar de válido.
Existem também tentativas de superar o modelo civilista clássico pela captura do conteúdo axiológico, em geral, do valor justiça, por pré ‑definições do que seja adequado socialmente ou conforme ao interesse coletivo, ao bem ‑comum ou à dignidade da pessoa humana.
Há uma miríade de expressões que cabem nessa ideia, sujeita a variantes, mas que encerra, na prática, três objetivos (não necessariamente concomitantes:
a) a justiça distributiva[2];
b) a proteção das minorias[3];
c) a quebra de tradições religiosas ou morais no campo dos costumes e da organização das famílias ou da autodeterminação.
O quantum, a título de danos morais, equivalente a até 50 (cinquenta) salários-mínimos, tem sido o parâmetro adotado para a hipótese de ressarcimento de dano moral em diversas situações assemelhadas (e.g.: inscrição ilídima em cadastros; devolução indevida de cheques; protesto incabível). precedentes.” (Superior Tribunal de Justiça, Edcl no Ag 811523/PR, Rel. Ministro Massami Uyeda, Quarta turma, julgado em 25/03/2008, Dje 22/04/2008)
Já os defensores da análise econômica do direito dirão que seu modelo é mais eficiente. veja ‑se, não se afirma que é mais justo, pois a justiça é um fator tão abstrato e inseguro que não serve como parâmetro de per si para fundamentar essas decisões. o que se faz aqui é recorrer a uma análise externa do direito.
Troca‑se a justiça pela eficiência da decisão. abandonam ‑se conceitos indeterminados como “boa ‑fé”, que teria por si só uma pretensa tradição histórica e quase nada de utilidade prática, como querem os adeptos desse modelo.
É nítida a contraposição entre as duas formas de se interpretar a atuação do tertius no contrato.
Quando a quebra contratual produz efeitos mais vantajosos do que sua manutenção. a eficiência substitui a segurança jurídica. Mas, aqui, como nos outros casos, recorre ‑se ao elemento externo – o econômico – para se utilizar como fator de correção da norma ou de aferição da correspondência do fato ao que se pode chamar de válido.
Os argumentos seguem quase sempre a lógica de buscar em elementos extranormativos o fator de correção de opções legislativas ou de reformar o modo como a magistratura interpreta determinados dispositivos legais. no último caso, há a velha tática do “ataque ao espantalho”, no caso, o espantalho é o positivismo. o direito posto, na espécie, o Direito Civil, seria retrógado, ultrapassado, desconforme aos valores constitucionais, à dignidade humana e, por via de consequência, não ampararia os direitos dos hipossuficientes, de gênero ou das minorias.
Há duas ordens de problemas, a saber: o primeiro – e mais grave – é a sem ‑cerimônia com que se desfaz de textos normativos com nenhuma indeterminação, inclusive de natureza constitucional. o caso mais notório é o da equiparação ao casamento das uniões homossexuais.
A Constituição brasileira de 1988 poderia ter sido omissa quanto ao casamento e à união estável, como é o exemplo da Constituição portuguesa e da Constituição espanhola, para se ficar em dois casos próximos da realidade nacional.
O reconhecimento da natureza conjugal dessas uniões poder ‑se ‑ia operar no plano legislativo, por mera alteração do Código Civil brasileiro, como se fez nos mencionados países
Para tanto, ter‑se‑ia ainda a facilidade de que o casamento no Código Civil de 2002, como o era em 1916, não tem uma definição legal e, por isso, não limita seus elementos subjetivos à disparidade de sexos.
Bem comenta Carlos Alberto da Mota Pinto, por afastar os rigores do princípio pas de nullité sans texte, pois se teria como consequência, “então tida como absurda e inaceitável, de considerar válido o casamento entre pessoas de igual sexo
(…) daí que se tivesse excogitado a doutrina da inexistência: nesses casos, a lei não prescrevia a nulidade porque o negócio era inexistente, e só o que existe pode ser nulo”.
A doutrina de direito de família tradicional afirma que esse é um elemento essencial do negócio jurídico.
Recorre ‑se ao argumento de que foi com base nessa diferenciação que se construiu a teoria do negócio jurídico inexistente, de Karl Salomo Zachariae von Lingenthal, cujo exemplo típico seria um casamento entre dois homens, conforme o axioma quia coniuge non habet sexum.
Por outro viés, alguns civilistas contemporâneos defendem a possibilidade da instituição do casamento homossexual ou da equiparação desses vínculos ao regime da união estável[4].
Os argumentos são os mais variados, ora sob o império de ferramentas da análise interna do direito, ora com argumentos extraídos de fontes sociológicas, realistas ou antropológicas:
a) a Constituição não veda o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo;
b) não é necessário equiparar as uniões homossexuais à união estável, por sua natureza absolutamente autônoma, o que dispensaria a associação com o parágrafo terceiro do artigo 226;
c) trata ‑se de reconhecimento da dignidade humana e dos direitos fundamentais previstos no artigo 5º da Constituição de 1988.
A doutrina reconhece a originalidade do pensamento de Karl Salomo Zachariae von Lingenthal e ainda há muitos adeptos de seu pensamento em relação aos matrimônios sem disparidade sexual: “o criador da teoria do ato inexistente foi K. ‑S. Zachariae, que distingue, no âmbito do direito de família, entre condições essenciais e de validade do casamento, e demonstra que a falta de um desses elementos essenciais provoca a inexistência do matrimônio, não sua nulidade.
(…) …o pressuposto da diversidade de sexo no casamento não é defeito, sanável ou insanável, desse contrato solene matrimonial, mas requisito essencial de sua própria existência” (Azevedo, Álvaro Villaça. In: Código Civil comentado: Negócio jurídico. Atos jurídicos lícitos. Atos ilícitos (artigos 104 a 188). São Paulo: atlas, 2003. v. 2. p. 279 ‑281)”.
Existe o óbice da literalidade do texto constitucional. o parágrafo terceiro de seu artigo 226 é expresso ao afirmar que: “para efeito da proteção do estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”
A Constituição poderia ter deixado para o legislador ordinário resolver o problema da equiparação das uniões homossexuais ao casamento ou à união estável, um minus em relação àquele.
Ter‑se‑ia outro nível de discussão, como, por exemplo, a eventual distorção do conteúdo de uma categoria jurídica, que é o casamento, para açambarcar hipóteses de fato não compreendidas em sua feição histórica, para além de ser discutível a ampla liberdade de conformação do legislador a esse instituto jurídico, como defendeu, no caso português, Jorge Miranda.
A relevância desses últimos argumentos, no Brasil, nem é de ser encarecida. tem ‑se aqui norma constitucional expressa. o debate, sob o aspecto puramente normativo (e se estaria novamente sob a égide de uma análise interna do direito), resultaria mais simples, binário até.
Com a opção legítima e democrática do constituinte em clausular a união estável como uma relação entre homem e mulher, não poderia nem mesmo o legislador ordinário fazer essa mutação.
No Brasil, porém, muitos tribunais ordinários vêm tomando decisões dessa natureza e, muito provavelmente, o supremo tribunal federal, esforçado em técnicas como a interpretação conforme, poderá fazer a equiparação das uniões homossexuais à união estável ou até o casamento.
Há, contudo, acórdãos que não admitem esses “superpoderes interpretativos” do juiz. vejam‑se alguns exemplos: “ainda que evidenciada, por longo tempo, a relação homossexual entre dois homens, a ela não se aplicam as disposições da Lei 8.971/94, sob alegação de existência de união estável.
Sobretudo, porque, a nossa Carta Magna, em seu art. 226, estabelece que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do estado”, consignando no § 3.º que “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.
esse preceito constitucional, pois, tem por escopo a união entre pessoas do sexo oposto e não elementos do mesmo sexo. Logo, nesse contexto, o reconhecimento e a dissolução de sociedade de fato, cujo pleito objetiva a integralidade dos bens do espólio do companheiro, que faleceu sem deixar descendentes ou ascendentes, exibe ‑se incabível quando se verifica que não restou demonstrada a contribuição ou o esforço na formação do patrimônio que se afirma comum” (Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Apelação Cível 10.704/2000 , 3.ª Câmara, j. 7 ‑11 ‑2000, Rel. Des. Antonio Eduardo f. Duarte, DORJ 3 ‑5 ‑2001, Rt 791/354; “sucessão – união homossexual – pretensão de habilitação na qualidade de herdeiro e meeiro do de cujus – inadmissibilidade – direitos atinentes à união estável restritos ao companheiro sobrevivente de união entre homem e mulher – inteligência do art. 226, § 3.º, da CF” (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, agravo de instrumento no 266.853.4/8, 4.ª Câmara, j. 28 ‑11 ‑2002, Rel. Des. Rebello Pinho, Rt 812/220).
Frise-se que a homossexualidade é uma “questão eminentemente individual e restrita ao domínio da vida privada e da intimidade”, que merece o respeito de todos
E, é precisamente esse reconhecimento que exige a departição entre a “interpretação axiológica” e o respeito ao texto constitucional.
A defesa do parágrafo terceiro do artigo 226 não se choca que a dignidade dos seres humanos atingidos pela opção do constituinte no caso em exame.
Essa mistura entre a determinação normativa, resultante de opções democráticas, e a “hermenêutica teleológica”[5], se fossem trocados os sinais, permitiria, em uma sociedade fortemente submetida a paradigmas morais (como as islâmicas), que os valores religiosos servissem para se interpretar “teologicamente” normas constitucionais que anuíssem com o casamento homossexual, impedindo essas uniões em nome de deus. entre a interpretação “teológica” e a “teleológica”, para se usar de um trocadilho infame, estaria o sacrifício de direitos assegurados literalmente na Constituição.
O risco é o mesmo, ainda que se não queira admitir.
Tal modelo de utilização discricionária e contra legem dos textos normativos, inclusive da Constituição dá margem a graves desvios lógicos.
Invoca ‑se a Constituição, certos “princípios” ou “valores constitucionais” para desfazer de regras de inquestionável univocidade semântica. esse abuso chega ao extremo de se voltar contra a própria Constituição.
Konrad Hesse adverte que “não há realidade constitucional contra constitutionem”. O segundo problema está no abandono da análise interna do direito para se fazer toda uma sorte de abusos, em geral de caráter judiciário, em nome da justiça distributiva ou de valores tidos como superiores, quase sempre originados do direito público.
A norma é desconsiderada e, com ela, as opções democráticas do legislador, em nome de uma interpretação mais favorável aos hipossuficientes.
Não se trata de utilizar de cláusulas gerais, cânones hermenêuticos ou de conceitos jurídicos indeterminados previamente colocados ao dispor dos juízes para favorecer grupos ou indivíduos, por meio de uma prévia valoração feita pelo legislador, como são exemplos dispositivos do Código de defesa do Consumidor, que orientam os aplicadores do direito a interpretar as normas desses sistemas em favor dos consumidores.
Assim agir, é estender o alcance desses vetores interpretativos para além de seus próprios limites ou mesmo criar, assim do nada, princípios ou técnicas que permitam essas práticas.
Como exemplo decisões judiciais marcadas pela Síndrome de Sherwood[6].
Os contratos de Direito Civil, em tese paritários, são o âmbito ideal para que os juízes se convertam em Robin dos Bosques[7] e tirem dos ricos para dar aos pobres.
Os velhos axiomas como o “pacta sunt servanda”, que já foram devidamente flexibilizados pelos inegáveis avanços das teorias ligadas à alteração de circunstâncias, são antagonizados como se foram verdadeiros anátemas.
A intervenção judicial nos contratos, que deveria ser exceção, torna ‑se a regra. Uma das formas de análise externa do direito, a escola de Law and Economics, tem sido a principal adversária dessa desconsideração da firmeza dos contratos, fazendo‑o não pelo apego a velhos princípios de origem medieval, mas em face do custo econômico dessa entropia judiciária.
A sociedade como um todo paga por essas externalidades negativas, por meio da securitização do risco, do aumento das taxas de juros e do incremento dos custos contratuais, que serão distribuídos entre todos sob a forma de majoração dos preços de bens e dos serviços.
O Direito Civil clássico que, durante muito tempo, soube jogar com a rigidez do “pacta sunt servanda” em contraponto aos mecanismos de solução dos efeitos advindos da alteração de circunstâncias, desde uma das primeiras técnicas que foi a cláusula rebus sic stantibus, torna ‑se um mero expectador do embate entre a análise econômica do direito (ligada à preservação da estabilidade da economia contratual) e os defensores da interpretação com base na “síndrome de Sherwood. (In: OTERO, Paulo. Instituições políticas e constitucionais. Coimbra: Almedina, 2007. v. 1).
A tradição jurídica de civil law não passou incólume ao processo de constitucionalização. Encontram‑se em estado de confusão ou de justaposição argumentos baseados em neoconstitucionalismo[8], pós ‑positivismo[9] e Drittwirkung.
É também nesse campo que se manipula a teoria dos direitos fundamentais para releituras impróprias de certas categorias jurídicas ou de princípios, como é o exemplo da função social da propriedade. A teoria interna dos direitos fundamentais é a mais comumente empregada para esses fins.
Todas essas dilatações da constitucionalização e seus efeitos sobre a perda de referenciais teóricos do direito Civil contemporâneo. Em outro lugar, fez‑se o exame intensivo da ausência de rigor técnico em torno do que seja a constitucionalização e sobre o uso equívoco da teoria dos direitos fundamentais em torno de uma categoria privatística nuclear, que é a propriedade.
Importa, no momento, por agora, resumir alguns desses elementos de crítica à dogmática civilista contemporânea:
a) usa‑se com extrema promiscuidade o conceito de constitucionalização, sem que se saiba propriamente a que se refere, o que implica trazer para seus limites situações ou fenômenos jurídicos totalmente diferenciados ou incompatíveis, como interpretação conforme à Constituição, interpretação do direito ordinário sob a égide da supremacia constitucional, controle de constitucionalidade das leis, uso de princípios constitucionais para interpretar o direito privado, eficácia dos direitos fundamentais em relação aos particulares;
b) os direitos fundamentais devem ser compreendidos nos moldes da teoria externa, distinguindo ‑se entre seu conteúdo essencial e respectivos limites;
c) não há como se admitir direitos fundamentais ilimitados;
d) o exame da função social da propriedade, por exemplo, pressupõe o reconhecimento da distinção entre propriedade e função social. Parte dos atritos causados pela tentativa de colonização do direito Civil no marco da constitucionalização é decorrência, para além das razões sublinhadas alhures, da permanente busca por um elemento de correção para o direito.
Nesse sentido, o recurso à Constituição é explicável, embora seu barateamento pela dogmática brasileira tenha chegado a níveis intoleráveis. Uma vez mais, deve‑se recorrer à dicotomia entre análises internas e externas do fenômeno jurídico e a experiência constitucional alemã é bastante útil para esse fim.
Com a débâcle do regime nacional ‑socialista em 1945 e a reconstrução do sistema judiciário alemão em torno do tribunal Constitucional federal reforçou o caráter de centralidade à Grundgezets no ordenamento jurídico alemão.
Aquilo que já se encontrava presente nas obras iniciais de Hans Kelsen converteu ‑se na busca pela centralidade do que os alemães chamam literalmente de “direitos de base”, “direitos básicos” ou “direitos ‑fundamento” (Grundrechten), e que, em português, traduziu ‑se literariamente por “direitos fundamentais”.
A recondução da ideia de Constituição para algo mais específico como os direitos fundamentais está na base de movimentos teóricos que estabeleceram hierarquias entre as normas constitucionais.
É também da década de 1950, o pequeno ensaio de Konrad Hesse, juiz do tribunal Constitucional federal, intitulado “a força normativa da Constituição” (“Die normative Kraft der Verfassung”), de 1959, que representou a virada histórica da ideia de Constituição como elemento de direção política do estado para a Constituição como documento de eficácia jurídica in re ipsa, dotado da potencialidade de produzir efeito determinante e regulador da realidade social e histórica, ainda que haja eventuais descompassos com a realidade política, com os tão conhecidos “fatores reais de poder”, de Ferdinand Lassale[10].
Abandona ‑se o recurso à chamada “natureza das coisas” (Natur der Sache) como fundamento (de forte conteúdo naturalista) de suas decisões, quando não se pode apelar ao texto positivo das normas, e passa ‑se ao modelo de subordinação do ordenamento aos direitos fundamentais.
E, com isso, abrem‑se as portas ao mundo dos princípios e, dada sua evidente abstração, às tentativas de solucionar as colisões entre eles e suas relações com as normas, continentes de elementos mandatórios prima facie.
Esse é o debate da segunda metade do século XX e que se estende no início do século XXI, não mais como um problema circunscrito à realidade jurídica alemã, mas, em larga medida, à jurisdição constitucional dos principais países do mundo contemporâneo.
Essa capacidade de determinação e regulação eficaz da realidade da vida histórica é o que Konrad Hesse denomina de força normativa da Constituição: “inwieweit es der verfassung gelingt, diese geltung zu gewinnnen, ist vielmehr eine frage ihrer normativen Kraft, ihrer fähigkeit, in der Wirklichkeit geschichtlichen lebens bestimend und regulierend zu wirken”
O direito natural renascido no após ‑guerra teve seu momento como fator de correção do direito positivo. Este é uma ferramenta muito antiga de análise externa do direito e que, após o trauma nacional ‑socialista, obteve o favor de nomes como o de Gustav Radbruch.
O tribunal Constitucional federal alemão faz uso dos direitos fundamentais como ultima ratio do processo de correção e de adequação do direito posto. Não é sem razão que a Grundgesetz dá legitimidade ativa para provocar o tribunal diretamente quando houver violação de direitos fundamentais, por meio da Verfassungsbeschwerde. Ampliação do catálogo de direitos fundamentais.
- o Direito Constitucional foi arrastado para dentro do rodamoinho de disputas privadas de relevância duvidosa, com todos os desagradáveis inconvenientes para si e para a Constituição, como o barateamento da dignidade e da importância das normas constitucionais, que se veem citadas em pequenos conflitos individuais, como a cobrança de uma dívida ou a definição dos danos pelo abalroamento de automóveis.
Com isso, põe ‑se a perder a “identidade do direito privado”, forjada por sua antiga e respeitável história.
- a existência de conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais na Constituição, o que é esperável dada sua natureza normativa específica, é campo fértil para a ação dos interessados no arbítrio e no abuso da discricionariedade judicial.
Se foi possível realizar demagogia judiciária com base em elementos do próprio Direito Civil, agora isso é feito com a invocação do texto constitucional. assim, tem ‑se o inconveniente de se arrastar para o Supremo Tribunal Federal uma pletora de casos insignificantes ou sem qualquer relevância para a harmonia e a uniformidade da Constituição.
Essa também é uma possibilidade denunciada por Konrad Hesse: “o tribunal Constitucional cai, assim, no perigo de converter ‑se no supremo tribunal dos conflitos jurídico ‑cíveis e de assumir, dessa forma, um papel que a Grundgestez não lhe delegou.”
E, ainda em seus termos, os diversos obstáculos processuais de acesso aos recursos dificilmente serviriam de contraponto eficiente a esse problema.
Além disso, tem ‑se a abertura para o que se poderia chamar metaforicamente de “toque de Midas constitucional”, que é a conversão substancial de matérias eminentemente privadas em matérias constitucionais, como mero exercício de poder do tribunal Constitucional de controle da jurisdição ordinária.
Em nosso país , a teoria argumentativa de Robert Alexy[11] é que mais empolgou a dogmática nos últimos quinze anos. O apelo à ponderação e ao sopesamento tornou ‑se frequente, inclusive na solução de casos de direito Civil.
A dignidade da pessoa humana tornou ‑se a chave para “ponderar” ou “sopesar” direitos fundamentais e seus princípios respectivos.
É um jogo perigosamente simplificado que envolve desde a desconsideração das pautas axiológicas do legislador em prol da ponderação a ser feita pelo juiz, até o sincretismo metodológico, colocando ‑se em uma mesma frase Robert Alexy e Ronald Dworkin, a despeito da incompatibilidade de seus modelos teóricos.
E, em justiça a ambos os autores, muito do que se escreve a respeito de suas teorias é destituído de qualquer fundamento em seus textos.
As teorias argumentativas[12] e o chamado neoconstitucionalismo, do modo como vêm sendo utilizados no direito, em geral, e no direito Civil, em particular, também servem para derruir a chamada “dignidade da legislação”.
Problemas de elevado alcance social deslocam seu fórum deliberativo dos grupos sociais organizados e de sua ágora própria, o parlamento, para as sedes de juízos e tribunais, notoriamente deficitários em termos democráticos.
Alguns críticos contemporâneos desse deslocamento, como Juan Antonio García Amado advertem que, muita vez, o emprego da chamada ponderação é um artifício para iludir e esconder as intenções de atores interessados no poder de mando, sem os desconfortos dos processos eleitorais.
“Registre ‑se, apenas, o desconforto de se encontrar citações de Ronald Dworkin e Robert Alexy, especificamente sobre ponderação, conflito, regras e princípios, como se houvesse franca uniformidade de pensamento entre esses doutrinadores” (Rodrigues Junior, Otavio Luiz. Dogmática … p. 83).
E, não somente. Até mesmo os positivistas de extração anglo ‑americana são admitidos no rol dos que aceitam a perda da relevância da legislação: “nossa expectativa é de que a legislação esteja no centro da tradição positivista da jurisprudência.
Contudo, no caso, temos a legislação sendo apresentada como um aspecto contingente e filosoficamente periférico da lei em uma das principais teorias positivistas do nosso tempo” (Waldron, Jeremy. A dignidade da legislação. Tradução de Luís Carlos Borges. Revisão da tradução de Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 20 ‑21. Sunstein, Cass r. A Constituição parcial. Tradução de Manassés Teixeira Martins e Rafael Triginelli. Belo Horizonte: 2009. p. 186 ‑196 (limites institucionais).
O problema da “principiolatria” e a proliferação de princípios, como tem denunciado Lenio Luiz Streck como o fenômeno do “panprincipiologismo” , de molde a facilitar o abandono de certos parâmetros de segurança e de certeza jurídica por uma discricionariedade judicial abusiva.
No Direito Civil, seguindo ‑se sua enumeração puramente exemplificativa, ter ‑se ‑iam princípios como:
a) “absoluta prioridade dos direitos da criança e do adolescente”, cuja finalidade, em um “universo jurídico calcado no protagonismo judicial e no sujeito solipsista”, seria o de permitir a determinação de certas políticas públicas conforme a preferência do intérprete, excluindo ‑se a “condição de deliberação democrática em benefício da centralização desses direitos nas escolhas dos juízes”;
b) “afetividade”, de larga utilização no direito de família contemporâneo, cuja elevação a princípio “escancara a compreensão do direito como subsidiário a juízos morais (sem levar em conta os problemas relacionados pelo ‘conceito’ de afetividade no âmbito da psicanálise, para falar apenas nesse campo do conhecimento)”. no que se refere ao “princípio da afetividade, impressiona a variedade de acepções que ele assume na doutrina.
É exemplo de que “o rei está nu”, mas sem que a haja uma criança corajosa, no meio da multidão, para o dizer. Se, como princípio, a afetividade representa tudo o que dela se afirma, ela nada representa.
Exemplos dessa criatividade conceptual:
a) afetividade como meio de execução da dignidade humana nas relações familiares, com o objetivo de “assegurar aos seus membros o direito a um ambiente sadio e harmonioso, isto para que as crianças, seres humanos em formação, se desenvolvam como cidadãos dotados de valores éticos e morais”;
b) elemento caracterizador, em substituição à vontade, das relações jurídico‑familiares;
c) “na atualidade, a ideia de família está ligada à de espaço de realização pessoal, no qual a afetividade se expande e a personalidade se desenvolve, independentemente do casamento institucional”.
Encontra ‑se o princípio da afetividade para fundamentar:
a) a formação de vínculos de parentesco, além dos naturais e legais, com base na chamada convivência socioafetiva;
b) a indenização por dano moral, em razão de ofensa à “afetividade da pessoa”, quando há disparo indevido do alarme contra furto em estabelecimento comercial.
São diversos os “princípios” que se invocam em direito Civil, além dos nominados. Mais que o abuso em sua invocação, tem ‑se o problema da confusão terminológica, com conceitos jurídicos indeterminados, doutrinas, cânones hermenêuticos e cláusulas gerais que se convertem ou se reconvertem em princípios. de outro lado, existe a questão do uso inadequado dos princípios em sua conexão com a técnica dos direitos fundamentais.
Tal desvio se opera em dois níveis:
- imputa ‑se ao direito Civil o compromisso com valores socialmente ultrapassados, mas que, após um exame perfunctório na doutrina de cada período histórico, é insubsistente e insusceptível de comprovação.
É o caso do conceito de propriedade em sua correlação com os ordenamentos constitucionais brasileiros de 1824 ‑1988;
b) a função social, um dos “princípios” mais fortemente manejados sem rigor teórico, serve de instrumento para diversas posições jurídicas incompatíveis com o núcleo essencial e com os limites do direito de propriedade.
Em ambos os casos, teve ‑se a oportunidade de demonstrar o erro da associação do direito Civil clássico com interpretações estéreis e ultraindividualistas do direito de propriedade, ainda que se observado sob a óptica constitucional.
A dignidade da pessoa humana é outra vítima dessa guerra panprincipiológica, senão a maior de todas. Não há dúvidas de que a dignidade da pessoa humana é fundamento do estado democrático de direito, tendo conexão direta com a autonomia vital da pessoa e sua autodeterminação, como bem assinala Jorge Miranda.
Dá ‑se, contudo, sua banalização e seu emprego como reforço argumentativo, fundamento ‑berloque ou, como afirma João Baptista Villela, essa “tornou ‑se um tropo oratório que tende à flacidez absoluta”.
Se tudo é fundado na dignidade humana, nada, afinal, o será. Para não se esquecer que ela serve de fundamento dos discursos daqueles que defendem e dos que atacam o direito ao aborto e à eutanásia.
A tragédia da crise econômica de 2008 é uma prova de que a atuação regulatória (e portanto ex ante) foi ineficaz, o que deu margem a diversos questionamentos judiciais, que levarão para o campo da indeterminação. A autonomia privada não se ressente da regulação ex ante.
Esta é mais do que necessária, porque define as regras do jogo, antes de seu início. A posição aqui sustentada diz respeito a problemas de caráter epistemológico, da falta de rigor e de coerência no desempenho do papel (essencial) dos doutrinadores e na renúncia às soluções dos problemas jurídicos com base em respostas que o direito privado pode e tem condições de oferecer.
O risco está, ainda, no que advertiu Konrad Hesse, citando Alexis de Tocqueville, na perda da capacidade humana de “configuração responsável e autônoma da própria vida”, não por um Estado todo ‑poderoso e ditatorial, mas pelo estado excessivamente protetivo, que acostuma os homens com sua mão bondosa, quando, na verdade, os escraviza em uma “gaiola de ouro”.
Na própria Alemanha, já se sintam os efeitos da crise histórica divisão de funções entre a doutrina e a jurisprudência, pela qual competia a primeira a “tarefa de projetar a compreensão geral das normas individuais em relação à totalidade do direito e assim dar em caráter geral à jurisprudência a ajuda necessária para que reflita sobre as regras gerais teóricas em sua aplicação em um caso concreto” (In: Ehmann, Horst; Sustschet, Holger. Modernisiertes Schuldrecht: Lehrbuch der Grundsätze des neuen Rechts und seiner Besonderheiten. München: Vahlen, 2002).
Referências
RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Estatuto epistemológico do Direito Civil Contemporâneo na tradição de civil law em face do neoconstitucionalismo e dos princípios. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2020/5/29F68B1B35C7B1_Estatuto-epistemologico-do-Dir.pdf Acesso em 19.3.2025.
[1] A teoria da Law & Economics trata da aplicação de princípios econômicos à ciência jurídica, procurando explicar a conduta humana, bem como se a legislação estimula ou não esses comportamentos na formação, estrutura e processos das relações sociais. Law and Economics, ou Análise Econômica do Direito, é uma disciplina que aplica conceitos econômicos para estudar o direito. O objetivo é compreender, explicar e prever as implicações do ordenamento jurídico. Principais conceitos: A eficiência econômica, ou seja, a otimização da riqueza; A escassez; Os custos de transação; As externalidades; A racionalidade econômica. Objetivos: Explicar a conduta humana; Determinar se a legislação estimula ou não esses comportamentos; Garantir que haja consistência na aplicação da lei; Prever como as leis melhorarão com base em comportamentos; Promover a eficiência e o bem-estar social.
[2] Justiça distributiva é um conceito que se refere à forma como os recursos e bens são distribuídos entre os membros de uma sociedade. É um princípio fundamental da ética e da filosofia política. Princípios da justiça distributiva: Considera as necessidades, contribuições e direitos dos indivíduos; Busca garantir que todos recebam uma parte justa dos recursos disponíveis; Propõe que as sociedades têm um dever para com os necessitados; Propõe que todos têm o dever de ajudar os outros necessitados.
[3] O direito brasileiro defende as minorias por meio da Constituição, de políticas públicas e de ações afirmativas. Constituição Federal brasileira vigente proíbe qualquer tipo de discriminação, seja por raça, etnia, religião, sexo ou outro fator Garante os direitos das minorias. Políticas públicas e Ações afirmativas para o acesso ao ensino superior (Lei de Cotas). Programa Nacional de Reforma Agrária. Ações afirmativas para maior participação feminina na política. Ações afirmativas. Corrigir os fatores históricos e culturais que afastaram os grupos minoritários da sociedade. Proporcionar condições para a efetivação no gozo de direitos. Dar apoio às minorias em equilíbrio com o apoio conferido à maioria da população.
[4] Em maio de 2011, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), de forma unânime, equiparou as relações entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres, reconhecendo, assim, a união homoafetiva como um núcleo familiar. A decisão foi tomada no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132.
Um ano antes, no Censo de 2010, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) havia identificado 60 mil casais homoafetivos no país, a maioria formada por mulheres (53%). Em 2018, as Estatísticas de Registro Civil 2018 divulgadas pelo órgão constataram um aumento de 61,7% na procura pela formalização das uniões em relação ao ano anterior - e, novamente, o percentual foi maior entre as mulheres (64,2% do total). Assim, a decisão ajudou a assegurar a elas direitos já garantidos a todas as mulheres heteroafetivas, como participação em plano de saúde, pensão alimentícia, divisão de bens e licença-maternidade em caso de adoção ou reprodução assistida.
União estável: O foco da discussão foi o artigo 1.723 do Código Civil, que define como união estável aquela "entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família".
Até então, casais homoafetivos que buscavam a formalização de suas relações podiam obter decisões favoráveis ou desfavoráveis da Justiça. O entendimento do STF, de natureza vinculante, afastou qualquer interpretação do dispositivo do Código Civil que impedisse o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Resolução 175/2013, determinando que os cartórios realizassem casamentos de casais do mesmo sexo.
[5] A hermenêutica teleológica é um método de interpretação que se concentra na finalidade de uma norma jurídica. O objetivo é descobrir a razão que motivou a criação da norma, para que ela seja aplicada de forma adequada à sociedade. Características: Considera valores como a justiça, a ética, a liberdade, a igualdade e o bem comum; Tenta adequar as normas jurídicas aos critérios atuais; Procura saber o fim social da lei, ou seja, o que o legislador visou a proteger; Faz uma ligação entre lei, causa e finalidade.
[6] Nos contos ingleses, Sherwood era o nome da floresta onde Robin Hood e seus amigos se refugiavam. Nessas histórias, o Príncipe dos Ladrões era conhecido por roubar da nobreza para distribuir aos pobres, atitudes que respondiam à sua missão de lutar contra a opressão e o poder estabelecido. É exatamente a partir desse ponto que começaremos a destrinchar o pensamento de David Piqué. Como havíamos mencionado, seu trabalho acadêmico consistiu em explicar o fenômeno okupa no distrito de Gràcia. Do que se tratava esse fenômeno? Na página 4 da publicação, Piqué escreve: “O movimento okupa é um protesto coletivo que propõe uma via alternativa à sociedade capitalista, que busca desenvolver um espírito de coletividade e realizar uma série de atividades sociais e culturais próprias, fora das leis estabelecidas“. Esse trecho teve como referência o Dossiê da Assembleia de Okupas de Barcelona, publicado na revista La Lletra A, em 1997.
[7] Na segunda fase descrita no trabalho de David Piqué, o objetivo, além da criação de um forte debate político sobre a ocupação ilegal, é “forçar o aparecimento de posturas extremas que vão desde a criminalização das usurpações até uma punição aos proprietários que mantenham uma residência desocupada”. Tudo isso servirá para que uma modificação legislativa aconteça, o que marca a terceira fase, a do aparecimento de uma nova norma. A última fase é a do combate aos okupes que resistem à mudança legislativa sobre as ocupações ilegais. É nessa fase que ocorrem as “detenções seletivas dos líderes para que esses sejam imputados por delitos comuns”.
[8] O neoconstitucionalismo é, como o prefixo indica, uma nova leitura do constitucionalismo. O tema é, por várias razões, bastante controverso. Tanto o rótulo em si, como o significado a ele atribuído são assuntos polêmicos. O nome foi proposto para identificar um conjunto de teorias bastante heterogêneas, e o foi por autores contrários a elas. Quer dizer: a proposta da denominação partiu de uma crítica à teoria denominada. Ademais, boa parte dos autores das várias teorias associadas ao rótulo não o utilizou, de modo que o próprio “nome” se tornou bastante problemático. Muitos que aceitam as premissas neoconstitucionais rejeitam a denominação “neoconstitucional”. As divergências não se restringem ao rótulo. Muitos teóricos consideram equivocadas as premissas teóricas a ele associadas, e outros as consideram um avanço definitivo da Ciência do Direito. Assim, pode-se dizer que há quem ame e há quem odeie as premissas neoconstitucionais; e dentre uns e outros há quem ame e quem odeie o rótulo “neoconstitucional”. Apesar de tudo, é inegável que a denominação se incorporou ao léxico da Ciência do Direito, de modo que é fundamental conhecer seu significado. Daí a proposta: pretende-se aqui, da forma mais didática possível, explicitar o significado do neoconstitucionalismo e apresentar um panorama das controvérsias que o envolvem.
[9] O pós-positivismo é uma teoria que defende que as leis devem ser interpretadas de acordo com os valores que estão sendo julgados. É uma opção teórica que considera que o direito depende da moral. O pós-positivismo busca: Restabelecer a relação entre direito e ética; Materializar a relação entre valores, princípios, regras e a teoria dos direitos fundamentais; Proporcionar decisões mais justas; Preservar os valores por trás de cada lei existente; Criar leis para proteger esses valores quando necessário; O pós-positivismo é inspirado em obras de filósofos do direito como Robert Alexy e Ronald Dworkin. Algumas características do pós-positivismo são: Defende o valor normativo dos princípios; Legitima a utilização de parâmetros de justiça e equidade para a solução de casos concretos; Valoriza os princípios e sua inserção nos diversos textos constitucionais; Formula a ordem constitucional também em termos substantivos e valorativos; Adapta o método de aplicação vigente do Direito para a realidade na qual está inserido.
[10] Os fatores reais de poder, de Ferdinand Lassalle, são as forças econômicas, sociais e políticas que predominam em uma comunidade. Fatores reais de poder: Banqueiros, Cultura coletiva, Consciência social, Forças econômicas, Forças sociais, Forças políticas. Constituição e fatores reais de poder Lassale considerava que a Constituição é a representação dos fatores reais de poder. Ele acreditava que a Constituição formal, positivada pelo Estado, deveria refletir a Constituição real. O que é a Constituição para Lassalle? Para Lassale, a Constituição é a soma dos fatores reais de poder que predominam em uma comunidade. Ela é a composição do que realmente o povo necessita e deseja.
[11] A teoria da argumentação jurídica de Robert Alexy é um procedimento racional e discursivo que visa legitimar decisões, promovendo a justiça e a correção do Direito. Principais características: A fundamentação jurídica está relacionada a questões práticas, como o que é permitido, proibido e obrigatório; O discurso jurídico é um caso especial do discurso prático geral; A argumentação jurídica é um instrumento importante para juízes e demais operadores do Direito; A argumentação jurídica é um procedimento que visa a uma solução acertada; A argumentação jurídica é um instrumento que permite o desenvolvimento racional do discurso. Considerações sobre a teoria: A teoria de Alexy dá grande ênfase à dimensão ideal/discursiva do direito; A teoria de Alexy inclui a moral, e o sistema jurídico reflete a pretensão de correção; A teoria de Alexy considera que a argumentação jurídica só pode ir até um ponto, em que os argumentos especificamente jurídicos não estão mais disponíveis; A teoria de Alexy considera que é possível a transição para um discurso teórico (empírico).
[12] A teoria da argumentação jurídica de Robert Alexy parte do princípio de que a fundamentação jurídica está relacionada a questões práticas. Algumas ferramentas de argumentação jurídica são:
Argumento pró-tese: Baseia-se em fatos reais; Argumento de autoridade: Baseia-se no prestígio de uma pessoa ou grupo de pessoas; Argumento de oposição: Apresenta argumentos contrários aos pontos de vista defendidos; Analogia: Prevê que a justiça deve tratar situações semelhantes de forma igual; Argumento de causa e efeito: Evidencia as consequências de ações específicas; Algumas características da argumentação jurídica são: Incorporar outros campos de saber, Conhecer o outro e as circunstâncias, Evitar pré-julgamentos, Organizar ideias de forma racional, Persuasão.