João e Maria
Dupla imbatível
Resumo: O conto “João e Maria” aborda a problemática da falta de alimentos, da pobreza, da falta de afetividade, à perda da mãe, e uma infinidade de conflitos que vão se resolvendo até o término da narrativa. Podendo contribuir no processo de construção da identidade da criança através da identificação com os personagens. Buscar-se-á destacar um diálogo entre as obras e relacionar fatos narrados em contos tradicionais e contemporâneos com a realidade socioeconômica e psicanalítica. analisar o conto de fadas “João e Maria”, dos Irmãos Grimm e comprovar a importância dos contos de fadas em sala de aula, conceituando a vertente literária, tecendo analogias entre os contos de fadas e a realidade, e analisando o reflexo do medo das crianças retratado nas obras. Utilizou-se como fundamentação teórica de diversos autores. Na contemporaneidade, observa-se que os contos de fadas permanecem vivos, e releituras das obras tradicionais entram em cena, sendo também enredo inspirador para inúmeros filmes e desenhos animados.
Palavras-chave: Literatura. Sociologia. Psicanálise. Psicopedagogia. Fome.
Os contos de fadas[1] oferecem relevantes contribuições para a construção da subjetividade da criança, servindo de ponte entre o real e o imaginário, utilizam linguagem simbólica e confronta os dilemas internos que possuem origem nos impulsos primitivos promovendo retaguarda para gerir esses conflitos de modo evitar adoecimentos.
A intenção é traçar um olhar psicanalítico sobre o conto de fadas, em João e Maria se fazem presentes por meio de personagens, sentimentos, valores e desafios que correspondem às exigências do inconsciente infantil, o que constroem mecanismos que possibilitam à criança para dirigir suas manifestações mais primitivas, uma veze que o referido conto expressa os pensamentos que habitam as mentes infantis.
Através de aportes teóricos como Freud, Garcia-Roza e Lacan, também o Bruno Bettelheim que ofereceram reflexos terapêuticas com base no modelo freudiano.
A temática envolve fome[2], abandono, da perda de objeto, ou de um ente querido ou ainda, a conversão da pobreza em riqueza que se fazem presentes em muitos contos de fadas e, em João e Maria a extrema pobreza dos pais forçam a decidir em abandonar os filhos na floresta para que não morram de fome.
Como observou o historiador americano Henry S. Lucas, fome e pestilência são dois fenômenos que aconteceram com frequência nas páginas da história da Europa durante a Idade Média. Apesar disso, o que tornou tão marcante a catástrofe da fome de 1315, que durou três devastadores anos, arrasando dos Pireneus à Itália, é que seu ciclo foi o que ficou mais bem registrado, não se perdendo ao longo dos séculos.[3]
As pessoas tinham que escolher entre morrer de fome ou abandonar seus filhos na floresta para que o pouco de comida não acabasse, outros tinham que proteger os filhos para que não fossem raptados e devorados por outras pessoas famintas. E ainda, outros devoravam seus próprios filhos.
Enfim, decidiram que era melhor deixar uns dois na mata, quando as crianças sentem o desespero e lamentam pela separação da família e, por fim, quando se libertam da bruxa, elas levam consigo seu tesouro que permitirá à família uma vida em abundância, livre de qualquer necessidade. Conforme o conto, desde aquele dia o lenhador e seus filhos viveram na fartura, sem mais nenhuma preocupação.
Implicitamente o conto trata das tensões vividas pela criança antes de empreender a viagem para se encontrar com o mundo e para se tornar uma pessoa independente e autônoma.
Declarou Bettelheim, in litteris:
"A criança deve aprender que, se não se liberta destes, os pais ou a sociedade a forçarão a fazê-lo contra sua vontade, assim como a mãe pára de amamentar o filho logo que sente chegado o momento. Este conto dá expressão simbólica às experiências internas diretamente ligadas à mãe. Por conseguinte, o pai permanece uma figura apagada e ineficaz através da estória, como aparece à criança durante sua vida inicial, quando a Mãe é toda importante, tanto nos aspectos benignos como nos ameaçadores”. (Bettelheim, 2002).
Essa compreensão tem em vista que a criança deve tomar a consciência de que mesmo que esta seja uma experiência tensa e que cause extrema ansiedade, assim como o desmame, época em que a criança é apartada do seio da mãe, que é o símbolo de tudo que a criança deseja da vida e, de forma inconsciente, a mãe solicita que ela aprenda a se arranjar com que o mundo externo lhe pode oferecer.
Repise-se que essa compreensão tem em vista que a criança deve tomar a consciência de que mesmo que esta seja uma experiência tensa e que cause extrema ansiedade, assim como o desmame, época em que a criança é apartada do seio da mãe, que é o símbolo de tudo que a criança deseja da vida e, de forma inconsciente, a mãe solicita que ela aprenda a se arranjar com que o mundo externo lhe pode oferecer.
De acordo com Sigmund Freud, as crianças identificam-se com os contos de fadas, pois deslumbram-se com temas universais que abarcam muitos interesses humanos. Transmite garantia de sucesso na resolução de problemas infantis. São apresentados de forma simbólica, permitindo a boa assimilação de internos conflitos conforme o estágio de desenvolvimento que a criança está vivenciando.
Asseverou Lacan que o fato de que o sujeito revive e rememora, no sentido intuitivo da palavra, os eventos formadores de sua existência, não é, em si mesmo, tão relevante. O que reconstruir é que se torna fundamental. Pois o conto de fadas ensina a criança, ou mesmo ao jovem adulto a lidar com os problemas interiores e encontrar as soluções escorreitas para os dilemas existenciais. Considera-se a concepção de Lacan de que a história de vida de um indivíduo é uma história sendo contada, em constante e permanente construção, sendo atualizada por conexões significantes, pelo modo como o inconsciente, tomando uma forma, a cada instante.
Em “João e Maria”, a história reflete muitos aspectos do mundo interior e dos passos indispensáveis para a evolução, perpassando da imaturidade para maturidade. E, a individuação requer uma base firme e significa a necessidade de abandonar o estado de acomodação para viver difíceis experiências e tão dolorosas dores do crescimento que não podem ser evitadas.
Enfim, as crianças estão envoltas por tensões de vários espectros, João conseguiu raciocinar e ainda demarcar o caminho de volta, o que lhes permitiram regressar ao lar, mesmo após serem cruelmente abandonados na floresta jogados à própria sorte.
Porém, esse êxito de João ao regresso à casa dos pais não representava progresso algum para sua personalidade e, ipso facto, como consequência dessa tentativa de fuga e regresso à passividade, seu raciocínio é entorpecido e, então, João falhou na segunda tentativa de retorno, pois sua mente só se preocupava em não morrer de fome.
E, revela-se assim que às reflexões em níveis primitivos de desenvolvimento, causadas por apreensão e medo, se tornaram destrutivas e poderão limitar a capacidade humana de solucionar os problemas e vencer o desafio da sobrevivência.
Enfim, a volta das crianças[4] abandonadas não resolve nada, e seu afã de continuarem a viver como outrora, como nada tivesse acontecido, não tem nenhuma utilidade. (Bettelheim, 2002).
Novamente, as crianças se sentem abandonadas e ficam desesperadas e sofrendo os tormentos da fome e, procurando um abriga, encontraram uma casa feita de biscoito de gengibre e, a tragédia começa quando os desejos orais são despertados, pois estão em plena regressão oral.
É demasiada a dependência por comida e abrigo quando as crianças manifestam no desejo de saciar a fome, até maior que do que ter abrigo e segurança. E, numa linguagem simbólica, a casinha de biscoitos representa a voracidade oral das crianças que desconsideraram todos os riscos e perigos e cedem à tentação e se apressam em devorar justamente o símbolo dos pais.
Com a fatídica experiência das crianças perdidas na floresta e, ainda, o encontro ameaçador na casa da bruxa[5] malvada, livraram-se das fixações orais, e reconheceram os perigos provenientes da fixação na oralidade primitiva, com suas propensões destrutivas e, havendo uma mudança nas atitudes internas, quando precisam desenvolver a própria inteligência para vencer a bruxa, eis que surge o caminho para o mais elevado estágio de desenvolvimento.
João e Maria é fábula mui antiga que conta a história de dois irmãos abandonados em uma floresta. Em sua origem foi uma lenda muito transmitida por oralidade por diversas gerações na época da Idade Média e, foi coletada e escrita pelos Irmãos Grimm, no século XIX, e, hoje se integra um conjunto de contos muito presente dentro do imaginário infantil.
O conto real tinha o nome de "As Crianças Perdidas", e se passa na Idade Média[6]. Longe de ser um conto infantil: é uma representação das dificuldades passadas na época devido à falta de comida. Por isso, era comum que os pais matassem seus filhos ou os abandonassem por não conseguirem sustentar os familiares.
Seu título original Hänsel und Gretel[7] e a história é feita de elementos sombrios[8] e um tanto diferentes do quee atualmente conhecemos.
João e Maria é um conto que relata as aventuras de dois irmãos (João e Maria), filhos de um pobre lenhador e que moravam na floresta com seu pai e sua esposa. Um dia, enquanto seu pai trabalhava, a madrasta de João e Maria estava fazendo uma torta. Ela saiu para colher amoras na floresta e pediu pra João e Maria cuidassem da casa enquanto ela estivesse ausente.
Quando ela voltou da floresta encontra a casa toda bagunçada e a torta que estava preparando, no chão. Ela ficou muito brava com João e Maria e resolveu mandar eles mesmos irem colher amoras na floresta. Floresta adentro, as crianças iam jogando migalhas de pão no chão para que pudessem encontrar o caminho de casa pela trilha feita. Porém, quando resolvem voltar para casa percebem que as migalhas haviam sido comidas pelos pássaros da floresta e que estavam perdidos.
Enquanto procuravam o caminho de volta para casa, João acaba achando uma casa feita de doces no meio da floresta. Com muita fome depois de tanto tempo procurando o caminho de volta para casa, João chama Maria para que eles comessem as guloseimas da casa. Enquanto as crianças se deliciavam com os doces uma velha (na verdade uma bruxa) aparece de dentro da casa e os convida para entrar.
Lá dentro, a bruxa lhes dá mais comida, até os dois não aguentarem mais. Porém, toda a aparente gentileza da senhora não passava de um plano para comer as criancinhas. Ela prende João e Maria para que pudesse assá-los, porém, espertas, as crianças descobrem o plano da bruxa e a enganam, lançam um feitiço para hipnotizarem a bruxa atirando-a para dentro do forno que a velha usaria para cozinhá-los.
Livres da bruxa, João e Maria são encontrados pelo pai, cuja mulher havia morrido, e voltam para casa levando consigo o dinheiro que estava dentro da foice da bruxa, suficiente para o resto de suas vidas.
Nas primeiras cópias da coleção dos Irmãos Grimm não havia madrasta; a mãe persuadiu o pai a abandonar os seus próprios filhos. Esta mudança, como na Branca de Neve, parece ser uma atenuação deliberada da violência contra as crianças, para as mães modernas que não suportariam ouvir sobre mães que ferissem os próprios filhos.
O fato de que a mãe ou madrasta tenha morrido quando as crianças matam a bruxa é porque a mãe ou madrasta e a bruxa são, de facto, a mesma mulher, ou, pelo menos, que a personalidade delas está fortemente ligada.
Além de colocarem as crianças em perigo, têm a mesma preocupação pela comida: a mãe ou madrasta para evitar a fome e a bruxa com a casa feita de comida e o seu desejo de comer as crianças. Temos também outra versão que é a de que João e Maria que resolveram dar um passeio e não que a mãe os expulsou de casa, eles se perdem na floresta e aí que encontram a casa de doces.
Por ser uma história muito curta, foi pouco aproveitado como longa-metragem infantil. Em 1932, a Disney produziu uma adaptação do conto em um episódio da série de curtas-metragens Silly Symphonies chamada Babes in the Woods (Crianças na Floresta), que mostrava João e Maria visitando a casa da bruxa dos doces.
Nesta versão, porém, a bruxa transforma crianças em animais, e no final João e Maria libertam várias outras crianças da casa e usam as poções dela para petrificá-la.
Em 2002, houve um filme homônimo à história que retratava João e Maria como personagens de uma história narrada. Outro curta-metragem inédito da Disney pôde ser visto no especial de Halloween do programa House of Mouse, em que Mickey e Minnie são João e Maria.
No livro “Histórias de Tia Nastácia” de Monteiro Lobato, Tia Nastácia conta a história de João e Maria na versão conhecida pelos brasileiros. Na história, após a bruxa ser queimada, suas cinzas viram três cachorros bravos, que depois são adestrados por João e Maria, que também passam a morar na casa da bruxa.
Além disso, Maria ainda se envolve com um mau caráter que é estraçalhado pelos cães, e João, desta vez sem a companhia da irmã, parte com os cães para um reino distante e lá enfrenta um monstro de sete cabeças e casa-se com uma princesa.
No livro, é explicado que a história se derivou do conto dos irmãos Grimm, com a adição de contos distintos do folclore. João e Maria experimentam certo amadurecimento[9] quando começam a transcender a ansiedade oral e se libertam da dependência de uma satisfação oral para a segurança, a modificação do comportamento lhes estimula à busca do crescimento em um plano mais elevado de existência que resultará na independência e aquisição da individualidade, desenvolvendo uma personalidade própria.
O conto fala de crescimento, de luta pela independência, mesmo que de modo relutante, pela pressão dos pais, quando a mãe que deve prover os cuidados das crianças e as satisfações gerais das necessidades físicas imediatas que esta requer para sua sobrevivência, insiste em livrar-se dos filhos
A fantasia é fundamental para o desenvolvimento emocional da criança, pois ao mergulhar no “faz-de-conta”, as crianças dão liberdade às suas próprias emoções; Com base nas percepções da Psicanálise pode-se perceber que no conto, os personagens que povoam o inconsciente estabelecem um elo entre o consciente e o inconsciente, possibilitando a ressignificação de eventos.
Contemporaneamente, nossos valores mudaram, mas como a estória sobrevive podemos supor que esse elemento da fome hoje está a serviço de um aspecto psicológico, senão haveria sido suprimido do conto.
Prosseguindo na análise psicológica, sabemos que enquanto bebês nossas mães nos alimenta e nos carrega no colo, mas quando crescemos deixamos de ser ninados e temos que passar a ser independentes. E isso traz uma sensação de abandono, que faz com que olhemos para nossas mães como bruxas.
Infelizmente, aquela mãe protetora, que coloca no colo deve desaparecer para que a criança encontre seu próprio valor e se desenvolva como personalidade própria no mundo, senão ela será um brinquedinho e uma extensão da mãe.
Outro ponto importante a ser analisado é o fato de termos um casal de crianças como protagonista. Maria é a típica “menininha que chora” e João é aquele que tenta resolver os problemas.
Na verdade, sem entrar no mérito da questão dos gêneros, esses dois lados estão presentes em nós. Independente do nosso sexo, por vezes, em uma situação difícil, podemos sentir vontade de chorar, mas ao mesmo tempo podemos sentir algo pulsando em nós querendo resolver a situação.
A floresta, em geral, é um símbolo do inconsciente, aqui no conto podemos afirmar que quando a criança vai para o mundo automaticamente ela passa a separar o que é mundo interno e externo. A consciência separa os opostos, antes ela vivia em um estado de plenitude, mas agora além de enfrentar as demandas do mundo externo e do seu mundo interno inconsciente.
Crescer e ter de sair de casa tem um simbolismo para a psique de morte. A criança se sente condenada à morte. E realmente todo crescimento psíquico, toda mudança de vida exige uma morte simbólica. Eis que João e Maria devem deixar morrer seu lado bebê e sua ligação simbiótica com a mãe.
Após caminharem muito e já exaustos e com fome, eles encontram a casa de doces e a bruxa. A bruxa se mostra bondosa e generosa, mas sua intenção é devorar as crianças. Agora que a criança não está mais sob os braços da mãe, ela terá de lidar com a figura interna da mãe terrível, uma figura arquetípica presente no inconsciente coletivo.
Ela é cega, portanto ela não quer ver que as crianças estão crescendo, ela quer “comê-los”, devorá-los simbolicamente, para que voltem ao seu ventre e não cresçam. É um aspecto regressivo nosso que anseia voltar para a barriga da mamãe.
A separação mãe-filho nunca é fácil para ambas as partes. A criança sofre porque perdeu seu paraíso, mas vemos também nessa fase em que ocorre o desmame, ou quando o filho começa ir à escola, que muitas mães sentem culpa, fazem dramas e tentam sofregamente trazer de volta aquele paraíso idílico entre os dois.
Mas voltando a bruxa, observem que ela alimenta o menino e a menina lhe serve como escrava, limpando, cozinhando e lavando. Ou seja, seu animus deve continuar fraco e infantil, entretanto ao passo que ela deseja destruí-lo ela acaba fortalecendo mais seu lado masculino. Ao lhe dar mais comida ele adquire mais força.
Na verdade ela quer comer os dois, uma vez que manter o filho em um estado de bebê não é privilégio da relação da mãe com o filho.
Mas é a menina que engana a bruxa e a faz cair dentro do forno. Ou seja, a menina que vivia chorando agora adquiriu objetividade e astucia. A ingenuidade foi embora o lado infantil que se apavora agora confia em seus instintos (isso fica claro quando Maria adquire uma sensatez em relação ao cisne, seu lado animal, fazendo com que ele leve um de cada vez ao outro lado da margem do lago).
Interpretando com um olhar mais contemporâneo, o medo da floresta e o medo de ser devorado dos irmãos pode ser relacionado a nossa vida, Neste sentido, traduzindo as grandes cidades e os centros na figura da floresta e nós, como João e Maria.
Expostos, vivemos em um cenário sombrio de violência e incertezas, perdidos nessa imensa selva de pedras — principalmente no atual momento em que vivemos, com uma pandemia mundial que já fez milhões de vítimas. Além disso, sendo muitas vezes, devorados por uma rotina onde a saúde física e mental é desprivilegiada e somos obrigados a dar integralmente tudo de nós para sobreviver.
Todavia, o conto de fadas nos traz esperança. A derrota dos monstros — dentro de casa e na floresta — e o retorno ao lar (objetivo conquistado) é prova disso! Desta forma, como em João e Maria, tesouros e um final feliz[10] podem estar nos aguardando, é só questão de tempo, perseverança e luta. Afinal, se eles tivessem desistido no meio da jornada, a história poderia ter acabado na floresta ou na casa de doces.
Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de prodígios sobrenaturais. Ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva. O herói retorna de sua misteriosa aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes. (In: Campbell, Joseph. O herói de mil faces.)
Simbolicamente, a floresta representa o inconsciente. Antes da experiência na floresta, João e Maria eram apenas crianças. À medida que eles passam a estar na floresta, os perigos daquele cenário alteram o modo como eles veem o mundo externo — eles começam a crescer. Dentro da psique representa a morte simbólica, uma disruptura da inocência para fase adulta.
Além disso, dentro dessa aventura, os irmãos deparam-se com a Casa de Doces, que os atrai. Nesse ponto, encontramos a representação do perigo e, simbolicamente, do desejo, atrelado de forma religiosa pelos cristão ao cenário do inferno — representando muito bem o que João e Maria viveram dentro daquela casa. Entretanto, foi uma experiência fundamental para que a transformação dos personagens acontecesse.
Então, dependendo da versão do conto, há uma travessia de um rio que as crianças devem fazer quando estão a caminho de casa, após a experiência vivida na Casa de Doces.
Além de toda a coragem que podemos notar nos eventos que antecedem esse trecho, ao chegar nesse momento de cruzar o rio, João e Maria se encontram com uma pata. Os irmãos percebem que para fazer a travessia é fundamental que subam nela e Maria insiste para que João vá primeiro. Assim acontece: primeiro ele atravessa e depois ela. Essa travessia representa o amadurecimento e a coragem dos irmãos.
Aqueles que, a princípio, andavam de mãos dadas e com medo na floresta, andam agora sozinhos e sem medo. O processo de amadurecimento e crescimento humano é individual, cada um tem sua própria passagem, e aqui, eles provam separados essa evolução.
Cabe ressaltar a importância e o impacto psicológico que os contos causam a partir de sua estrutura fixa e, especialmente, com o final feliz que apresentam, assim como já foi apresentado no capítulo anterior. Isso porque, ao ouvir os relatos de personagens com os quais se identificou, que passaram por dificuldades e venceram, fica mais fácil para a criança acreditar na sua própria vitória.
Existem diversos estudos acerca dos contos de fadas, porém um dos mais famosos estudiosos foi Vladimir Propp, um russo estruturalista que, a partir da análise da morfologia dos contos populares russos, desenvolveu um método que permitiu sistematizar o estudo dos contos: as trinta e uma funções da narrativa essenciais a todo o conto maravilhoso.
Diana e Mário Corso, em seu livro Fadas no Divã (2006), afirmam que “(...) contos de fadas é o mesmo que Vladimir Propp denominou conto maravilhoso, em função da onipresença de algum elemento mágico ou fantástico nessas histórias.” (Corso, 2006).
Atualmente, muitas histórias que contêm elementos maravilhosos são rotuladas de contos de fadas; porém, existem algumas características deste gênero narrativo comumente apontadas por diversos especialistas.
Na área da psicologia, diversas questões foram levantadas a partir da interpretação dos contos de fadas, principalmente nos campos da psicanálise e da psicologia analítica. Sigmund Freud pesquisou o papel simbólico que alguns animais desempenhavam em alguns sonhos e também em certos contos de fadas.
Freud demonstrou interesse pelo papel dos contos e sua relação com a elaboração dos sonhos, escrevendo o artigo “A Ocorrência em Sonhos de Material Oriundo dos Contos de Fadas” (Freud, 1977). Neste artigo, ele cita os sonhos de alguns clientes, que parecem evocar medos, ligados, segundo ele, às questões da humanidade primitiva.
Colaboradora de Jung, Marie Louise Von Franz tem um amplo trabalho sobre a utilização dos contos de fadas na clínica. Segundo ela, o simbolismo presente nos contos de fadas, os quais ela chama de “alquímicos”, não pode ficar isolado de pesquisas referentes a outras modalidades do inconsciente-sonhos.
Contos de fadas são a expressão mais pura e mais simples dos processos psíquicos do inconsciente coletivo. Consequentemente, o valor deles para a investigação científica do inconsciente é sobejamente superior a qualquer outro material. Eles representam os arquétipos na sua forma mais simples, plena e concisa.
Os camponeses suíços experienciamos constantemente, e eles formam a base das crenças folclóricas. Quando alguma coisa acontece, ela é cochichada e corre, como correm os boatos; então, sob condições favoráveis, o fato emerge enriquecido de representações arquetípicas já existentes e, progressivamente, transforma-se num conto. (Von Franz, 1990).
João e Maria ou Hänsel und Gretel (título original) foi publicado na primeira edição do livro “Kinde-und Haus-märchen” (Contos para Crianças e Famílias) publicado pelos Irmãos Grimm em 1812.
Cabe ressaltar que, ao analisar o conto, analisamos também o contexto histórico de uma determinada época, bem como seu ideal de mundo, ou seja, os valores que se tinha.
Após a Revolução Industrial, que se iniciou na Inglaterra no século XVIII, o mundo viu a pobreza, a desigualdade social e a exploração do homem se disseminar pela Europa, estendendo-se até o século XIX. No conto dos Irmãos Grimm há um destaque maior ao elemento popular e à pobreza.
Esta é uma história em que um pobre lenhador passa fome junto com seus filhos e, para que ele próprio e a mulher não morressem de fome, decidem livrar-se deles. Entretanto, a pobreza expressa pelos Grimm não se compara à pobreza esboçada por Perrault em seus contos do século XVII e isto mostra uma mudança no público leitor também.
A partir do século XVIII, as crianças começaram a ser reconhecidas em suas particularidades, começaram a possuir um quarto único, alimentação considerada específica e adequada, começaram a ocupar um espaço maior no meio social.
Ali nascia a concepção de infância. Antes, como se viu, a infância era considerada um período sem valor. Agora, a família começa a dar ênfase ao sentimento que tem em relação à criança. Considera-se uma revolução este novo sentimento dirigido à criança. Ela começa a ser importante, apreciada por sua família e a infância é reconhecida como uma época da vida merecedora de orientação e educação.
Vemos que, enquanto na idade média a criança era sem valor e suas responsabilidades eram trabalhar e chegar o mais rápido possível na fase adulta, no Renascimento se dá o início do processo de escolarização infantil.
Segundo Jette Bonaventure (2008), os sociólogos colocaram que antigamente era comum que a mães morressem no parto, e os filhos órfãos passavam a ter uma madrasta.
Assim, o conto ajudaria a criança órfã a imaginar uma possibilidade de sobrevivência, mesmo tendo uma madrasta, ou tendo que vencer uma bruxa e, por fim, tornar-se rica depois de muito sofrimento.
Bruno Bettelheim (2007) afirmou que o conto se inicia de maneira realista, pois a pobreza, a privação de alimento e a angústia da criança são expressas logo no início da história. Pode-se pensar quantas crianças no mundo não se chamem “João” ou “Maria”, ou mesmo que já tenham passado por tais experiências?
Já Diana e Mário Corso enfatizaram que, neste conto, os pais estão impondo aos filhos aquilo que o próprio crescimento está precipitando na vida das crianças. “Crescer traz ganhos, mas também perdas”.
A independência dos filhos pode ser vivida como abandono por parte dos pais, pois estes sabem que é difícil reconhecer o filho como autor da própria história. “Muitas vezes, a criança mesma “se desmama‟ e, ao mesmo tempo, inconscientemente, acusa a mãe de negar-lhe o seio”. (Corso, 2006).
Bruno Bettelheim (2007) colocou a mãe como representante da fonte de toda alimentação para o filho; assim, neste momento, ela é percebida como se os tivesse abandonado em um deserto. “A angústia e a decepção profunda da criança quando a mãe não está mais disposta a satisfazer todas as suas solicitações orais é que a leva a crer que ela subitamente se tornou desamadora [sic], egoísta e rejeitadora.” (Bettelheim, 2007)
Bettelheim afirmou que o conto dá expressão simbólica às experiências interiores da criança que estão diretamente ligadas à mãe. É interessante ressaltar que Maria Tatar (Grimm e Grimm, 2004) afirma que nas primeiras versões do conto dos Irmãos Grimm, o lenhador e a mulher eram ambos os pais biológicos das crianças; a partir da quarta edição (1840), da coletânea, os irmãos Grimm fizeram a “mãe” virar madrasta, tornando-a a verdadeira vilã da história.
Segundo ela, a mãe verdadeira, por natureza, é propensa a proteger e preservar os filhos, assim o coração frio da madrasta acaba cooperando com as necessidades do herói, ou seja, arrancando as crianças do aconchego do lar para que pudessem encontrar seu verdadeiro caminho.
Ao perceber que serão abandonados pelos pais, Maria tem uma reação típica de menina: chora, enquanto seu irmão é quem toma as iniciativas para eles se salvarem. Porém, é preciso lembrar que foi Maria quem empurrou a bruxa para dentro do forno, caso contrário, João teria sido comido por ela.
Os autores Diana e Mario Corso (2006) afirmaram que Maria retrata a perda da passividade do bebê, quando pela sua invalidez tudo é alcançado; ou seja, mesmo sendo ainda pequena, Maria precisou usar suas próprias pernas para buscar o que queria. Ao passo que
João, ao ser engaiolado pela bruxa, fica no papel aparentemente mais passivo, mais regressivo, como se estivesse impedido de crescer e se mantivesse alheio ao mundo.
Entretanto, João recusa-se a comer, como se fosse a primeira forma de rebeldia do bebê. Segundo os mesmos autores: “(...) a criança realiza uma apropriação do ato alimentar, destinado agora apenas à própria satisfação, orientado pelos seus critérios (Corso, 2006).
Deste modo, os dois irmãos representam duas formas importantes do crescimento: a troca da passividade pela atividade e a separação entre o desejo da mãe que quer alimentar e a vontade de comer do filho.
Jette Bonaventure (2008) classificou a figura do pai como ambivalente, pois ao mesmo tempo que ele pede para as crianças juntarem a lenha, preocupando-se com elas e não querendo que passem frio, concorda com a madrasta em abandoná-las, mesmo contra a sua vontade. Jette afirma: “É um jogo de fraco: não fica nem aqui, nem ali, e quer continuar sendo bom pai.”
Jette Bonaventure considerou que a densa floresta não é apenas o mundo lá fora, mas também o mundo dentro de nós.
[...] qualquer ser humano, ao crescer, tem de atravessar; Joãozinho e Mariazinha poderiam ser dois aspectos opostos que existem em nós: um, que se desespera e se põe a chorar, que é mais passivo, mais feminino, e outro, que procura as saídas, que se aventura, que se lança aos desafios, que é mais masculino. (BONAVENTURE, 2008)
Assim, os dois lados citados por Jette parecem se completar. A “densa floresta” da vida parece assustar; talvez, mais do que ela, a ainda inexplorada e desconhecida “floresta interior”, que nos leva ao encontro de bruxas malvadas e até mesmo de aspectos desagradáveis de reconhecer, mas que fazem parte de nós mesmos.
Jette afirmou que João e Maria anseiam voltar para casa, pois sabem que apesar da miséria em que vive a família (ou mesmo os pais), poderão recorrer a um “colo” que pode guiá-los e ajudá-los a encontrar uma solução para os seus problemas.
Diana e Mario Corso (2006) colocaram a floresta significando apenas o mundo exterior, ou seja, o mundo fora de casa, que invariavelmente se iniciará como uma expulsão do lar ou com a fuga de uma condenação à morte.
João e Maria ficam desesperados quando percebem que serão abandonados na densa floresta. Porém, no meio da noite, João avista diversas pedrinhas brancas na frente da casa, pedrinhas que “brilham como moedas de prata”. A solução para o problema, naquele momento, era simples: bastava que o menino enchesse os bolsos com elas para mais tarde usá-las como forma de marcar o caminho dentro da floresta.
Segundo Maria Tatar (Grimm e Grimm, 2004), as pedrinhas também indicam um sinal divino, pois este “enviado de Deus” seria um sinal de que existe uma possibilidade de salvação, mesmo que seja temporária. Além disso, a mesma autora afirma que a frase “Deus não vai nos abandonar”, é mais uma alusão religiosa presente no conto, mas foi adicionada pelos Irmãos Grimm apenas na segunda edição da coletânea.
A casinha de doces é certamente uma imagem inesquecível: feita de pão, telhado coberto de bolo e janelas de açúcar transparente. Apesar de atraente e tentadora, ela esconde um risco terrível àquele que cede à tentação.
João e Maria parecem frustrados por não conseguirem encontrar uma solução para seu problema, na realidade; deste modo, o alimento parece surgir como forma de salvação, assim como as migalhas de pão.
Diana e Mario Corso (2006) também concordam com Bettelheim quando colocam que a casa comestível representa o corpo materno, que fora negado pela representante da mãe, a madrasta. Além disso, eles afirmam que a casa também representa a fartura, porém João e Maria pagaram um preço alto por devorá-la.
O conto João e Maria gira em torno do comer: inicia-se com a falta de alimento em casa; depois há o banquete servido na casa da bruxa, o medo de serem devorados por ela e, finalmente, um “assado de bruxa”.
O mundo de João e Maria é interpretado a partir da oralidade, mas, na prática, isso é uma evocação, como aquelas memórias que fazemos sobre alguma pessoa querida que perdemos, por morte ou separação, então pinçamos para nosso uso só as partes que nos interessam. A memória é sempre uma versão dos fatos. (Corso, 2006)
A bruxa é uma mulher muito velha, que precisa da ajuda de uma muleta para caminhar e enxerga mal. Diferentemente da madrasta, acolhe as crianças, fornecendo comida e boas camas para elas. João e Maria são seduzidos pela velha.
Apesar de não terem nenhum vínculo familiar com ela, a bruxa recebeu bem João e Maria, porém apenas fingia ser boazinha. Como crianças inocentes poderiam imaginar que esta figura tão bondosa e generosa seria tão perigosa?
A bruxa que vive em diversas “florestas humanas” tem o poder de nos atrair com os seus mimos, porém pretende nos destruir. Alguns de nós podem ter vivido uma experiência negativa, ou seja, uma “mãe ruim”; mas muitos, certamente, vivenciaram momentos na infância nos quais a mãe brigava ou mesmo castigava.
Podíamos até sentir raiva, ou mesmo vontade de fugir de casa. Entretanto, Jette afirma que é muito mais difícil e complexo nos livrarmos desta bruxa como uma figura interior.
Já Bruno Bettelheim afirmou que a bruxa é, na verdade, uma personificação dos aspectos destrutivos da oralidade, ou seja, quando João e Maria cedem aos impulsos incontroláveis do id, tal como simbolizado por sua voracidade, arriscam-se a ser destruídos. A bruxa força as crianças a reconhecerem os perigos da voracidade oral descontrolada e da dependência.
Há a presença repetida dos animais no conto. Primeiramente o gatinho branco imaginário que João avista sentado no telhado; depois os pássaros que comem as migalhas de pão; o outro pássaro que guia João e Maria até a casa da bruxa e, finalmente, o pato branco que os leva de volta para casa.
Bruno Bettelheim afirmou que esses animais têm um propósito, caso contrário, não impediriam João e Maria de encontrarem o caminho de volta, levando-os até a casa da bruxa e, finalmente lhes proporcionando um meio de chegar à casa.
O autor acredita que o comportamento dos animais significa que toda a aventura foi organizada para beneficiar as crianças. “Desde os primeiros tempos cristãos, a pomba branca simboliza poderes benévolos superiores”. (Bettelheim, 2007).
Assim o gato branco, a pomba branca e o pato branco, como representantes da natureza, parecem simbolizar mais uma forma de intervenção divina pelo fato de fornecerem meios para que as crianças chegassem a um “final feliz”.
No caminho de volta para casa, as crianças se deparam com uma “grande água”, que elas só podem atravessar com a ajuda de um pato branco.
Tanto Bettelheim quanto Diana e Mario Corso apontam a importância da água. Na ida, as crianças não encontram nenhum rio; porém, o fato de terem de cruzar um na volta simboliza uma transição, ou seja, um novo começo num nível mais elevado de existência.
Ambos os autores apontam o batismo como tradição religiosa, em que a criança é imersa na água e só depois será reconhecida como membro de uma determinada comunidade religiosa; ou seja, “(...) é um ritual de passagem em que a água assinala o momento de transformação” (Corso, 2006)
Cabe ressaltar que as crianças atravessaram o rio a sós, ou seja, é o primeiro momento no qual os irmãos se separam.
Bruno Bettelheim compara este momento do conto à criança em idade escolar. “A criança em idade escolar deveria desenvolver a consciência de sua singularidade pessoal, de sua individualidade, o que significa que ela não pode compartilhar tudo com os outros, tem de viver até certo ponto sozinha e avançar por conta própria.”
Após ficarem livres da bruxa, João e Maria encontram na casa de doces caixinhas repletas de pérolas e pedras preciosas; isso significa que no lugar onde vive a terrível figura da bruxa encontra-se também boa comida e um grande tesouro. Assim, pode-se pensar que o confronto valera a pena, pois no final ficaram ricos.
É comum nos contos de fadas que aqueles que são bons, generosos, pequenos, ingênuos ou mesmo abandonados, acabem enriquecendo ou se casando com um belo príncipe ou princesa no final.
João e Maria eram dependentes dos pais e também um fardo para eles. Porém, ao voltarem ao lar, passaram a sustentar a família, já que foram os responsáveis por encontrar um tesouro.
Segundo Bruno Bettelheim (2007), esses tesouros têm um significado para os irmãos:
“(...) são a recém-adquirida independência de pensamento e ação das crianças, uma nova autoconfiança, que é o oposto da dependência passiva que as caracterizava quando foram abandonadas na floresta.” (Bettelheim, 2007).
Ao voltarem para casa, João e Maria encontram um novo lar. A madrasta havia morrido e o encontro do tesouro trouxe a liberdade e tornou as crianças ricas para sempre.
Jette Bonaventure (2008) afirmou que a morte da “mãe”, no final do conto, é bastante significativa, pois a figura materna enquanto protetora e provedora, ou seja, aquela que “põe no colo”, deve desaparecer para que a criança encontre seus próprios valores, sua própria maneira de se proteger, de se alimentar e de caminhar na vida.
Jette explicou que não se trata da morte da mãe concreta, mas sim do que ela representa na vida da criança. “Sua função de mãe precisa desaparecer, principalmente no seu aspecto negativo de bruxa, que finge ser boa, mas acaba querendo „comer‟ as crianças” (Bonaventure, 2008)
Diana e Mario Corso (2006) enfatizam a questão do crescimento. Para eles, já que a “mãe” estava morta e as crianças estavam livres dos perigos de serem devorados por ela, os irmãos poderiam se satisfazer com o tesouro encontrado para comprarem comida e bem-estar.
Muitas histórias infantis contemplam um verdadeiro crescimento, lembrando que quando partimos não voltamos nunca mais, vivemos em outro reino, o antigo morreu. Isso equivale a dizer que uma vez que se muda de posição subjetiva não há volta, se verá tudo desde um novo prisma. (Corso, 2006)
Já Bruno Bettelheim (2007) afirmou que as atitudes dos irmãos ao longo da história sugerem às crianças que, conforme vão crescendo, devem confiar cada vez mais nos companheiros da própria idade para ajuda e compreensão mútuas.
Além disso, os problemas com relação à oralidade ou edipianos devem ser solucionados dentro do próprio lar para que o desenvolvimento da criança corra bem; estas questões devem ser resolvidas enquanto ainda dependem dos pais. “Somente por meio de boas relações com os pais a criança pode amadurecer com sucesso rumo à adolescência.” (Bettelheim, 2007)
Finalmente as crianças conseguem voltar para casa, onde encontram o pai mais uma vez viúvo, já que a madrasta morrera. Assim, acabaram-se as “mães ruins”, as madrastas e as bruxas! João e Maria podem viver felizes para sempre ao lado do pai: encontraram um tesouro e não mais passariam fome.
Neste conto é possível notar uma diferença nas atitudes dos protagonistas. João e Maria são muito mais ativos do que Bela Adormecida, por exemplo. As crianças contaram apenas com a própria esperteza para que pudessem sobreviver. Contudo, o elemento mágico fica em segundo plano, pois as crianças se salvam devido às suas ações e não a uma intervenção maravilhosa.
Diana e Mario Corso (2006) disseram que o final deste conto é diferente de outros contos de fadas pelo fato de que o herói conquista o seu próprio reino: “(...) há uma revolução a fazer, mas ela é intramuros, seus efeitos serão contabilizados ainda dentro de uma relação familiar.” (Corso, 2006).
Jette Bonaventure (2008) resumiu de forma encantadora o final da história da seguinte forma: “Crescer é viver seu destino, nos dizem os contos, passar por momentos de conflitos externos e internos, perdas e confrontos difíceis; mas no fim acaba-se encontrando o tesouro que enriquece o resto da vida”. (Bonaventure, 2008).
Segunda a visão psicanalítica de Bruno Bettelheim, é somente quando os perigos inerentes à fixação na oralidade primitiva são reconhecidos é que se abre caminho para um estágio mais elevado de desenvolvimento. No caso de João e Maria, a difícil e também dolorosa passagem para a adolescência foi simbolizada pela escuridão e perigos da floresta.
É por esta razão, que o autor valoriza a leitura dos contos de fadas para as crianças, haja vista que os contos podem exprimir pensamentos por meio de imagens marcantes que levam a criança a usar sua própria imaginação para alcançar uma compreensão mais profunda das suas angústias.
Maria Tatar (Grimm e Grimm, 2004) criticou a interpretação de Bettelheim, pois, para ela, a visão unilateral do autor coloca as crianças da história como “gulosas” e exonera os adultos de culpa, sugerindo que a verdadeira fonte do mal, presente na história, é nada mais do que o superego das crianças.
Apesar de, em muitos momentos, encontrarmos diversas similaridades entre as interpretações de Bettelheim e Diana e Mario Corso, estes últimos autores também criticam a postura de Bettelheim com relação à excessiva valorização dos contos de fada tradicionais.
Diana e Mario Corso (2006) afirmaram que Bettelheim idealizava e superestimava os contos de fadas, pois acreditava que eles eram o único produto cultural adequado para a infância. Além disso, para eles, o autor não considerou a questão do tempo, pois sugere que o conto de fadas é capaz de exercer a sua função em qualquer época e do mesmo modo.
Durante a análise das diferentes interpretações do conto de fadas João e Maria, percebe-se que alguns estudiosos colocaram as suas visões de maneira estruturante.
Constata-se que os contos tenham enorme valor terapêutico pelo poder da palavra; portanto, o mais importante ao se contar uma história não é a interpretação dos seus conteúdos por parte do adulto, mas sim a mensagem inconsciente que ela transmite, permitindo que a criança explore, por conta própria, as questões que lhe causam angústia.
A linguagem simbólica é mais acessível à criança do que a linguagem racional do adulto. Ao vivenciar o conto, a criança tem a possibilidade de externalizar os seus desejos inconscientes, o que lhe permite identificar-se com alguns personagens ou mesmo obter satisfação através de outros.
Não é necessário que o contador se preocupe com regras fixas ou meios de utilização do conto, mas que ele tenha sensibilidade de escolher a história que mais se aproxime das necessidades do seu paciente naquele determinado momento, a que reflete, de alguma forma, os seus desejos.
Existem várias formas de se trabalhar o conto João e Maria no espaço psicopedagógico. Diversos materiais e recursos podem ser utilizados para a contação da história como, por exemplo, bonecos de pano e fantoches, tecidos grandes e pequenos para a arrumação de tendas, tapetes para demarcar o espaço, pequenos instrumentos musicais utilizados na aparição dos personagens ou para a produção de sonoplastia, entre outros.
É interessante também trazer personagens, matérias e recursos de contação dentro de um baú, também conhecido como “baú de histórias”. Eles ajudam a criar certo encantamento e mistério em relação ao que possa surgir durante a história.
Eis alguns pontos relevantes na história:
Dificuldades de crescimento: para Bruno Bettelheim (2007), o conto pode orientar a criança a transcender sua dependência imatura dos pais e a atingir o próximo estágio mais elevado de desenvolvimento; dessa forma, a criança pode se libertar dos perigos ligados à fixação na oralidade primitiva: liberta-se da imagem da mãe ameaçadora, a bruxa.
Separação: no conto, a separação é simbolicamente representada no momento em que as crianças cruzam o rio. As crianças em idade escolar precisam desenvolver a consciência de sua singularidade pessoal, de sua individualidade, ou seja, ela percebe que não deve mais compartilhar tudo com os outros e que há momentos em que ela precisa avançar por conta própria.
Confiança: Maria salva João por duas vezes no conto. É possível ressaltar a importância de se confiar mais nos companheiros da própria idade, valorizando a ajuda e a compreensão mútua.
Relações familiares: João e Maria voltam para casa como heróis e encontram a felicidade ao lado do pai. O conto mostra a importância das boas relações familiares entre pais e filhos, garantindo que eles possam crescer com sucesso rumo à próxima fase do desenvolvimento, a adolescência.
Seduções e ilusões: abandonados na floresta, João e Maria precisam encontrar o caminho de volta para casa e se deparam com dificuldades e seduções do mundo externo. A bruxa, por exemplo, é a imagem da mãe má, que impõe castigos e restrições – como na difícil vida do adolescente, que não consegue ainda identificar em que estágio de desenvolvimento se encontra.
“E viveram felizes para sempre...”: o final feliz da história pode realmente contribuir para a formação de uma crença positiva na vida. A história pode contribuir para que as crianças ganhem imensamente com as experiências vividas pelas personagens, assim como aconteceu com João e Maria.
Percebe-se, portanto, que tanto no conto tradicional quanto no conto contemporâneo, a astúcia é um dos aspectos valorizados quando se trata da sobrevivência em contextos de miséria e violência, nos quais os pequenos precisam usar de muita esperteza. E assim, longe de ocultar sua mensagem com símbolos, os contadores de histórias do século XVIII, na França, retratavam um mundo de brutalidade nua e crua.
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[1] Os contos de fadas surgiram na Europa Ocidental, a partir das transcrições de contos orais que era transmitidos de geração a geração. Charles Perrault foi o primeiro a realizar tal feito, seguido pelos irmãos filólogos e historiadores alemães Jacob Ludwig Karl Grimm e Wilhelm Karl Grimm, sendo que esses últimos “suavizaram”, retirando conteúdos violentos ou impróprios para crianças, como referências a sexo ou gravidez pré-nupcial, inseriram os valores que acreditavam, além das suas próprias visões de mundo em suas recriações, como afirma Diana Lichtenstein Corso e Mario Corso em Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis.
[2] Na época da Idade Média, a fome era algo que castigava enorme parte da população. Assim, em João e Maria esse é o problema central que ronda toda a narrativa. Desconfia-se também que na história original, a madrasta não existia, e na realidade quem bolava o plano de abandono era a própria mãe das crianças. Epidemias, como a Peste Negra, originadas principalmente da falta de estruturas das cidades para suportar o aumento populacional e enfrentar o problema da fome. Grande Fome, manifestada neste século, devido ao grande número de pragas que destruíram as plantações. No século XIII a Europa passou por um longo período de prosperidade devido a diminuição das invasões barbaras. Associado a isso os feudos ficavam isolados uns dos outros, portanto, menos sujeitos as pestes que ceifavam os moradores das cidades que estavam se formando a partir do renascimento desde o século XI. Essa situação gerou um crescimento da população do campo e com isso a necessidade de mais comida. Entre 1315 a 1317 a parte Norte da Europa foi devastada por uma série de problemas climáticos entre chuvas e secas. Esse período ficou conhecido como “A GRANDE FOME” que só conseguiu se recuperar em 1322.
[3] Naquela época, o alimento básico que compunha a dieta medieval era o pão, mas a chuva constante inundou os campos, apodrecendo as colheitas e afogando o gado na pastagem, e mofou o pouco dos grãos guardados devido à falta de logística para preservá-los. Em um ano considerado de boa colheita, para cada grão semeado, colhia-se sete de volta; mas em 1315, foi apenas um grão para cada dois plantados — ou seja, era a tragédia anunciada.
[4] Antes de mais nada, é preciso ressaltar que o lugar da criança na modernidade é outro. Antigamente, ela ficava com o resto dos adultos. Foi nesta época que surgiu este conto que começa com as crianças sendo expulsas por não haver comida suficiente para todos em casa.
[5] A figura da bruxa inicialmente bondosa simboliza os cuidados maternos desejados por toda criança, “ela os tomou pela mão e levou os para dentro de sua casinha. Então colocou bons alimentos diante deles, depois cobriu duas lindas caminhas com lençóis brancos e limpos e João e Maria se deitaram e pensaram estar no céu”.
[6] Na idade média a criança era vista como um adulto em miniatura, trabalhavam nos mesmos locais, usavam as mesmas roupas. “A criança era, portanto, diferente do homem, mas apenas no tamanho e na força, enquanto as outras características permaneciam iguais” (ARIÈS, 1981). Por essa visão, foi um período em que a infância era caracterizada pela inexperiência, dependência e incapacidade pois não tinha as mesmas compreensões que um adulto. Por não haver distinções entre adulto e criança, cabia a elas aprenderem as tarefas do dia a dia, a trabalhar, ajudar os mais velhos nos serviços, e a passagem que tinham por sua família era muito breve, pouco depois que se passava o período de amamentação a criança já passava a fazer companhia aos adultos para que aprendesse a servir e trabalhar, eram criadas por outras famílias para que nesse novo ambiente aprendessem um oficio.
[7] Hänsel e Gretel (em alemão: Hänsel und Gretel) é uma ópera do compositor do século XIX Engelbert Humperdinck, que a descreveu como uma Märchenoper (ópera de conto de fadas). O libreto foi escrito pela irmã de Humperdinck, Adelheid Wette, baseado no conto de fadas dos irmãos Grimm de mesmo nome. É muito admirado por seus temas inspirados na música folclórica, sendo um dos mais famosos o "Abendsegen" ("Benção da Noite") do ato 2.
[8] A principal semelhança entre as adaptações dos irmãos Grimm e as de Perrault é que ambos suavizaram as partes polêmicas existentes nos contos tradicionais, retirando conteúdo os quais achavam inapropriado para crianças. A cerca desse tema, Coelho ressalta que “tanto em Grimm como em Perrault predomina a atmosfera de leveza, bom humor ou alegria, neutraliza os dramas ou medos existentes na raiz de todos os contos”. Por outro lado, Merege afirma que “muitos contos conservam e até intensificam o grau de violência, enfatizando a punição para os maus, como as irmãs postiças de Cinderela”. Outro ponto a ser observado é que, ao contrário dos contos de Perrault, os contos dos Grimm não traziam uma lição de moral explícita.
[9] O rio significa o amadurecimento dessas crianças, ao chegar do outro lado estão prontos para resolver seus próprios problemas. Antes eram dependentes dos pais, agora voltam como provedores, trazendo joias consigo, estes tesouros são a recém-adquirida independência de pensamento e ação, uma nova autoconfiança que é o oposto da dependência passiva que os caracterizava quando foram abandonados na floresta.
[10] Quando pensamos o enredo de Chapeuzinho Vermelho e de João e Maria, por exemplo, é possível questionar o final trágico atribuído, respectivamente, ao lobo-mau e à bruxa da casinha de doces. Na história, tais personagens são apresentados como vilões, inerentemente dotados de maldade; todavia, podemos pensar as narrativas a partir das percepções destes ditos vilões. Ora, se Chapeuzinho Vermelho passa pela estrada que não deveria, desobedecendo aos avisos e ordens de sua mãe, ou se João e Maria tentam roubar a bruxa, comendo seus doces e destroem sua casa, não teriam eles ido em busca do perigo, provocando seus “vilões”? Incomum seria a reação de um lobo que não quisesse devorar uma presa fácil, no caso uma criança indefesa (Chapeuzinho Vermelho), ou uma velha senhora, representada pela figura da bruxa, que não reagisse à destruição de sua casa (executado por João e Maria). Em outras palavras, seriam tais personagens essencialmente representações da maldade?