Os três porquinhos em versão contemporânea.
Os três porquinhos em versão contemporânea.
É verdade que os contos infantis muito auxiliam a criança a digerir seus conflitos internos, pois representam um recurso imaginário e simbólico a refletir sobre aspectos importantes de seu crescimento. As histórias infantis representam mecanismo de comunicação com as crianças, sendo consideradas como fator de socialização, em face de seu caráter normativo e, muito oportunizam a reflexão sobre normas jurídicas, sociais e morais vigentes.
O enredo dos Três Porquinhos alude aos vários aspectos da sociedade ocidental, principalmente sobre o capitalismo e a valorização do trabalho humano e, ainda, tratam da figura do Lobo Mau. Afinal, a infância é um período em que acontecem grandes transformações e que compreendem a totalidade do sujeito, onde também ocorre grande parte do desenvolvimento neurológico, cognitivo e afetivo.
Atualmente, francamente se reconhece a importância da infância, todavia, nem sempre foi assim. Em pleno século XV a criança era encarada como mero adulto incompleto e suas necessidades e pretensões não eram consideradas. A medida em que se reconheceu a importância da infância dentro do discurso social e filosófica, é que se tratou de buscar práticas sociais para o público infantil resultando na reedição das estórias e histórias.
Ainda no século XVII, os contos de fadas que inicialmente era contados por adultos e para adultos, passou para outras faixas etárias. E, somente a partir do século XIX que a infância passou a ser tema nos discursos sociais e culturais e, então, os contos passaram ser considerados importantes e usados em terapia com crianças, com base no reconhecimento de questões psíquicas próprias da infância, além de propiciar a superação de decepções narcísicas, rivalidades fraternas e dilemas edípicos. Eu confesso que quando criança eu ficava com pena do Lobo Mau e demais porquinhos menos habilidosos...
É fato que os contos de fadas encontravam lugar especial no imaginário infantil e foram se modificando, apesar de ainda manter sua aura de encantamento. Enquanto diverte a criança, o conto de fadas a esclarece sobre si própria e favorece o desenvolvimento de sua personalidade. Oferece tantos níveis distintos de significado e enriquece a sua existência de tantos modos que nenhum livro pode fazer justiça à profusão e diversidade das contribuições dadas por esses contos à vida da criança.
Identificou-se que a criança se apega à alguma história e, a partir destas elabora seus pensamentos e dramas íntimos além de dar um colorido ao que está vivenciando.
A utilização do conto pela criança faz reverberar em sua subjetividade e mesmo a predileção por determinados contos em certas fases da vida revela traços da personalidade humana. Há, de fato, entrelaçamento da fantasia dos contos com as próprias questões psíquicas, e há testemunhos emocionados de adultos que relembram a história ouvida que mudou a sua vida e jamais fora esquecida.
Uma das teorias mais difundidas é que a história tenha sido criada na Inglaterra durante a Idade Média, mas as primeiras edições do conto são do século XVIII. A história teria sido transmitida oralmente de geração em geração antes de ser registrada em um livro infantil.
Os três porquinhos precisavam sair da casa da mãe, a origem da história, na versão atual, foi publicada em 1853 no livro English Fairy Tales de Joseph Jacobs e foi popularizada com Walt Disney . Três porquinhos irmãos foram morar numa floresta. E para se proteger dos lobos decidiram construir suas casas. A ideia de ter sua própria casa e enfrentar os perigos do mundo assombra não só crianças como também adultos.
Foi o filme que introduziu nome para os porquinhos - Prático, Cícero e Heitor ou Fifer Pig, Fiddler Pig e Edmund Pig (em inglês). A história dos Três Porquinhos já era conhecida na Inglaterra e Jacobs, como folclorista, resgatou contos tradicionais e transformou em livros. O sucesso para Jacobs foi a utilização de uma linguagem clara e feita para a literatura infantil.
O mais novinho só queria brincar, fez rapidinho uma casinha de palha e saiu para passear. O do meio gostava de tocar flauta. Então, fez uma casinha de madeira e saiu para tocar. O mais velho, prevenido, gastou todo o seu tempo fazendo uma linda casa de tijolos. À noite o lobo resolveu atacar. E, num único sopro, derrubou a casinha de palha. O porquinho correu para a casa de madeira do irmão, mas o lobo derrubou esta também.
Os dois porquinhos foram à casa do irmão mais velho e ficaram quietinhos esperando. O lobo chegou e soprou, soprou, soprou, mas não conseguiu derrubar a casa. O lobo tentou entrar pela chaminé da lareira, mas os porquinhos prevenidos acenderam ali uma fogueira. Quando o lobo chegou perto, chamuscou o rabo no fogo e saiu correndo feito louco e, nunca mais voltou.
Essa história ensina até as crianças mais pequenas, conforme Bettelheim (2018), que não devemos ser preguiçosos e que o trabalho árduo fará os personagens vitoriosos, mesmo contra seu inimigo mais feroz- o lobo. A história traz a temática do desenvolvimento e a vantagem do amadurecimento, já que, normalmente o porquinho que constrói a casa de tijolos é retratado como o mais sábio e mais velho.
A saída da casa da mamãe porca situa um momento de separação necessário para a criança. É um trabalho progressivo para se compreender como um sujeito individual, marcado por estratégias de defesa, como negar-se a fazer o que lhe é solicitado e a negação a comida. “Sucessivas paredes, cada vez mais bem construídas, demarcarão os territórios entre a criança e seus adultos”.
As diferenças de atitudes entre os porquinhos demonstram que eles estão em momentos diferentes do desenvolvimento psíquico. Os mais novos ainda estão vivendo movidos pelo princípio de prazer, onde sua prioridade é a diversão e não se preocupam com os perigos futuros que a vida reserva. O porquinho do meio já apresenta algum amadurecimento ao construir uma casa um pouco mais elaborada que o primeiro.
Porém, somente o porquinho mais velho que constrói a casa de tijolos vive de acordo com o princípio de realidade, “ele é capaz de adiar seu desejo de brincar, antes agindo com sua habilidade de prever o que pode acontecer no futuro”.
Esse conto é relevante porque ele ensina que há períodos de desenvolvimento, possibilitando o progresso entre o princípio de prazer e realidade. Outro aspecto crucial para a criança nesse conto é a presença do lobo, seu então inimigo, “o lobo é uma exteriorização, uma projeção da maldade da criança- e a história mostra como se pode lidar com isso construtivamente”.
No desenho da Disney sobre Os três porquinhos, os irmãos ganham uma trilha sonora, na qual desafiam seu inimigo ao cantar “Quem tem medo do lobo mau, lobo mau, lobo mau?”, provocando a serem perseguidos. “O porquinho não se contenta em fugir e procede como a criança que pede a repetição do conto, no incansável prazer de ter medo”.
Esse inimigo tão temido pelos porquinhos e pela criança permite simbolizar o medo de desaparecer dentro da mãe, do mesmo modo que os alimentos desaparecem em sua boca e vão morar em sua barriga. O medo é constitutivo para o psiquismo do sujeito.
Há também outro fator que corrobora para que alguns contos tenham uma maior popularidade, que é o seu caráter normativo e as lições de moral que apresentam. Corso e Corso (2006), consideram a história dos Três Porquinhos um conto de fadas, mas que possui um aspecto de fábula por ter uma moral indiretamente.
Para os adultos, a ênfase não está no fato da saída de casa, ou no perigo de ser devorado, mas na pretensão de ensinar, através da história, a importância do trabalho e das responsabilidades.
Observa-se que a primeira casa era a mais frágil, pois foi construída pelo irmão mais novo, que além de ter pouca idade, só se preocupava em brincar. A segunda casa, é um pouco mais elaborada, contudo foi construída rapidamente pelo irmão do meio, para que este pudesse ter mais tempo para que fazer o que realmente gosta (tocar flauta).
A terceira casa, é bem elaborada, forte o suficiente para proteger todos os personagens, feita pelo irmão mais velho, demandou tempo e sacrifícios para que pudesse ficar pronta.
Temos a adolescência, onde a casa de madeira foi mais elaborada, mas ainda assim é frágil e facilmente derrubada. Sua construção não era a preocupação principal de seu executor, o que caracteriza esta fase da vida, onde, embora já tenha a noção das responsabilidades, e o que elas abarcam, busca-se protelar ao máximo o assumir-se responsável.
Já a casa de tijolos feita pelo irmão mais velho, é forte, bem elaborada e capaz de abrigar aos outros dois, podendo ser comparada à fase da vida adulta, com suas responsabilidades e obrigações de dar sentido para suas ações, traduzindo também a ideia de que todo adulto abriga em si a criança e o adolescente que um dia foi outrora.
Na versão anterior a essa que popularmente conhecemos, os dois irmãos mais novos não escapavam e eram devorados, e em seguida, o lobo era morto pelo porquinho mais velho, não havia a possibilidade de socializar, e os porquinhos pagavam com suas vidas por sua inexperiência e irresponsabilidade . Em outra versão, o lobo fica cansado e desmaia depois de tentar derrubar a casa de tijolo e os porquinhos sobrevivem em ambos os casos.
Uma versão relacionada à educação financeira aparece no livro O lobo milionário e os três porquinhos de Eduardo Coelho Pacheco. Os porquinhos na verdade são cofrinhos feitos com o mesmo material das casas construídas pelos porquinhos da história original, palha, madeira e concreto.
Eis que a maturidade se torna item importante para sobrevivência e crescimento pessoal e social.
Essa versão de extermínio, foi reelaborada, pois em nada poderia contribuir com a formação social das crianças que ouvem a história, visto que exterminar não é um modelo socialmente aceito de resolução de conflitos. Ao juntar todos os porquinhos num espaço para então vencer o lobo, a história marca o poder da união para alcançar um objetivo.
“O lobo em si é uma instituição social pelo seu papel coercitivo em relação às atitudes dos porquinhos, é ele quem pune quando os porquinhos não tomam atitudes corretas”. Desta forma, é possível que se faça uma analogia da figura do lobo como sendo correspondente ao ego.
Todavia, é questão do Id em conflito com o ego, e como a sobreposição do id sobre o ego tem graves consequências, popularmente seria o que podemos chamar de responsabilidade. Quando o instinto vence a razão, o corpo literalmente padece.
A questão do id e do ego se faz presente não somente na figura dos porquinhos, mas também na figura do lobo, e se consideramos que é provavelmente a mensagem principal da história, que determina claramente qual é o comportamento desejado e adequado e qual comportamento é indesejável e inadequado.
E, através de um olhar social antropológico onde os porquinhos não são vistos como tendo idades diferentes, e sim, pertencendo a épocas diferentes. Através da construção da casa, fica marcada também a evolução do homem, sendo que “as casas de palha e de madeira, são símbolos do passado, do não evoluído, do não civilizado, é o sujeito que permanece na primitividade da raça humana por não estar incluído na sociedade”. O primitivo é regido pelos instintos enquanto o civilizado é regido pela praticidade e consciência de responsabilidade.
É a valoração de três elementos sociais relevantes: o trabalho, o porquinho que mais trabalha está protegido e ainda, consegue proteger os demais; a inteligência, que junto com o trabalho garante a sobrevivência de todos; e a instituição familiar/socialização, representada aqui pelo acolhimento e instinto de sobrevivência e união, lutando contra um inimigo em comum.
A história já tem um início importante, marcado pela saída da casa da mãe, e o enfrentamento dos perigos da floresta, retratados pela figura do lobo mau, para os adultos, a ênfase está no final, na moral onde o trabalho e a experiência se sobressaem a força do antagonista. Contudo, não podemos e nem devemos pensar na criança que ouve a história como um sujeito passivo. Além de fases diferentes do desenvolvimento humano, precisamos domesticar e vencer nossos medos, se pretendemos sobreviver com um saldo de aprendizagem.
OBS: Importante atentar para o estereótipo do Lobo Mau principalmente em face das críticas de organizações não-governamentais (ONGs) de proteção animal. Aliás a representação negativa dos lobos como sendo criaturas perigosas e maléficas perpetua uma visão distorcida e, poderá acarretar medo e hostilidade o que é prejudicial para os esforços de conservação e coexistência pacífica. Por incrível que pareça cada animal no mundo tem uma razão de existir. Infelizmente, os lobos continuam sendo alvos prediletos de caça e destruição do habitat. E, ensinar em tenra idade que os lobos são maus, se faz desperdiçar a oportunidade de educar sobre a relevância da biodiversidade e seu papel para todos no planeta. Enfim, o Lobo Mal é uma forma simplista e arcaica de moralidade e, traduz uma visão maniqueísta do bem contra o mal que não contribui em muito para haver uma compreensão mais ética da realidade. Portanto, a imagem e projeção do Lobo Mau é produto cultural e histórico, traduzindo assim um viés predatório. Há culturas em que os lobos são encarados como símbolo de inteligência, força ou até liberdade. Deve-se desafiar os estereótipos para melhor entender a diversidade cultural no mundo.
Referências
BETTELHEIM,B. A psicanálise dos contos de fadas. 35ª ed. Rio de Janeiro/ São Paulo: Paz e Terra.2018.
CONTOS CLÁSSICOS. Os Três Porquinhos. Erechim: Edelbra, 2002.
CORSO, M.; CORSO, D. Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis. Porto Alegre: Artmed, 2006.
GIRBLER, Débora P.B.; JUNG, Laís Cristine. OS Três PORQUINHOS: UMA ABORDAGEM Psicanalítica E Sociológica ACERCA DA TEMPORALIDADE INFANTIL. Salão do Conhecimento. UNIIÌ 2020.
SANTIAGO, M. S. Z.; et al. Os Três Porquinhos: Uma análise dos conceitos sociológicos presentes na história. Trabalho apresentado à disciplina de Sociologia. Curso de Graduação em Psicologia. Pontifícia Universidade Católica- MG. 2010.