"O conhecimento é o mais potente dos afetos: somente ele é capaz de induzir o ser humano a modificar sua realidade." Friedrich Nietzsche (1844?1900).
 

Professora Gisele Leite

Diálogos jurídicos & poéticos

Textos


Da crônica para a crônica.

 

 

 

Resumo: Para melhor enxergar a verdade deve-se exagerá-la. Mas, é perigoso pois depois pode ocorrer a reação e a relegar a categoria de erro, até que se efetue uma avaliação objetiva, sem desfigurá-la. A estreita relação entre obra e seu condicionamento social foi vista no século XX como uma chave para desvendá-la, depois fora rebaixada como uma falha de visão, só mais tarde assumiu os devidos contornos. A análise estética prece as considerações de outra ordem. Mostrar o valor e o significado de uma obra dependiam de esta exprimir ou não certo aspecto da realidade, e, depois observar o que havia de essencial. Mais tarde, aportou-se à oposta posição, mostrando que a matéria de uma obra pode ser secundária e sua relevância deriva de operações formais, conferindo-lhe peculiaridade e ainda ser independente de quaisquer condicionamentos, sobretudo o social.

Palavras-chave: Literatura. Sociologia. Crônica. Crônica brasileira. Interpretação.

 

 

 

Antonio Candido (1981) teve especial importância no âmbito da crônica ao afirmar que esta pertence ao rés-do-chão, do mesmo modo que se relacionam as esculturas de Bispo do Rosário e Maria Grampim, na obra que leva o mesmo nome do ensaio de Candido: “A vida ao rés-do-chão”. O gênero está relacionado, sobretudo, ao que é terreno e mundano. Ela sussurra, prende-se ao efêmero, ao cotidiano e ao diário. A crônica está relacional ao espaço que a gera que é o jornal.

 

A crônica é teia que envolve as relações humanas, por isso, parece um tanto equivocado considerar que seja efêmero ou acessório. A “A última crônica” de Fernando Sabino afirmou: " a vida diária se torna mais digna de ser vivida quando a convivência com outras pessoas nos leva a olha para fora de nós mesmos, descobrindo a beleza do outro, ainda que expressa de forma simplória, quase ingênua, mas sempre numa dimensão que ultrapassa os limites do egocentrismo. Quando o cronista fala de si mesmo, com vimos em Rubem Braga, é a vida que está sendo focalizada por câmera disposta ampliar o raio de ação.

 

Na crônica nos deparamos com o reencontro da essência humana que recria o belo em nossa vulgaridade diária. Com o manejo adequado da linguagem, há uma inspiração que tem leveza sem perder a dignidade. Antonio Candido tenta transpor, pois para ele é a partir de Olavo Bilac que se abre mão de adjetivos “retumbantes” e sintaxe rebuscada.

 

In litteris: "O seu grande prestígio atual é um bom sintoma do processo de busca de oralidade na escrita, isto é, de quebra de artifício e aproximação com o que há de mais natural no modo de ser do nosso tempo [...] Quero dizer que por serem leves e acessíveis talvez elas comuniquem mais do que um estudo intencional a visão humana do homem na sua vida de todo dia". (Candido 1981: 16-9).

 

Massaud Moisés em sua História da Literatura Brasileira (1989) propõe um terceiro momento do movimento modernista, dividido em três: de 1945 a 1960, com as vanguardas, 1973 com a obra “Avalovara” de Osman Lins e o terceiro período em diante, onde a revolução formal foi feita através da poesia, porém, foi com a prosa que se logrou.

 

A função da crônica não é a de informar, sua relação mais próxima com o jornal está com fato diário, fato que se torna o mote do cronista. O gênero é leve, breve, agradável e dotado de fluência fluída. A função da crônica seja tanto para os teóricos como para os críticos é comentar ou conversar sobre a observação. Como define Picchio: comentário-mediação-notícia. Há quem afirme que a crônica nunca será literatura, pois não consegue se desprender de sua falsa função. Ou melhor, sua função camaleônica que ajuda o jornal a sobreviver.

 

Segundo o linguista Marcuschi em “Gêneros textuais: definição e funcionalidade” (2007) afirma que com a mudança de suporte, também há mudança de gênero, porém é um tanto problemática esta afirmação mesmo para o exemplo que ele tenta pautar: a esfera científica. Lembremos que as crônicas também são publicadas em revista e internet e até em weblogs. E, assumiu função biográfica estratégia que se utilizou para narrar os fatos da vida de Rubem Braga, em “Um cigano fazendeiro do ar”.

 

Eduardo Portella (1977), ao tratar dos problemas em definir o gênero, afirma

existir uma crônica literária através de um mote comum (a cidade): “A crônica literária brasileira sempre tem procurado ser uma crônica urbana: um registro dos acontecimentos da cidade, a história da vida da cidade, a cidade feita letra. Seria, portanto, um gênero dos mais cosmopolitas. Mas nesse cosmopolitismo nada existe que se possa confundir com descaracterizações nacionais.

 

Há nos cronistas, e nos referimos ao cronista da grande cidade, do Rio por exemplo, um apego provinciano pela sua metrópole, que é, aliás, um dos seus segredos. E é em nome desse apego que ele protesta diante das deformações do progresso, que ele aplaude o que a cidade possui de autenticamente seu. E, desta maneira, luta para transcender com ela”. (Portella 1977: 85).

 

 

Braga ao descrever a crônica prefere, usar o verbo no passado, o pretérito mais que perfeito simples como Machado de Assis, onde já aparecia o pronome “a gente” sem eliminar o pronome “nós”, mudança ou variação linguística ainda em estudo. Rubem Braga foi poeta, tradutor, organizador de edições de livros, embaixador, cronista e adaptador de obras clássicas da literatura para leitores iniciantes, trabalhou para a televisão, criador de passarinhos, amigo fumante, capixaba, amanda incondicional das mulheres e, seu admirador mais solene.

 

 

Quanto ao seu trabalho nas adaptações para leitores iniciantes tem-se obras de Antoine Saint-Exupéry, Camões, Oscar Wilde, Cyrano de Bergerac e Alphonse Daudet.

 

Olhar de cima não atrai um cronista, não há nada de especial nesta visão, aliás, aparenta inclusive ser este “olhar do chão”, que foi comentando no início deste texto, que o cronista discorre em seu texto. Não atoa que Candido mencionava que a crônica é rés-do-chão. Talvez seja possível afirmar que este olhar reflete uma imagem descaracterizada, que o narrador qualifica como feia.

 

Chega a ser irônico ao reforçar a desimportância que é dada às coisas terrenas, como se afirmando repetidamente se tratar de coisas pequenas, ele pudesse fazer justamente o contrário. Aliás, o cronista é dimensionador das coisas numa reinvenção da realidade circulante.

 

Há ainda a imagem da aeromoça que nesta crônica serve para desfazer a imagem de um cronista-funcionário do jornal, pois os funcionários devem convalescer com a empresa que o contrata/sustenta, sendo o cronista, ou no caso, o narrador, um homem convincente, por não se tratar de funcionário. Um ser livre e desimpedido de certos pejos.

 

A mudança narrativa é brusca ao tratar de dois temas: morte e amor. Temas estes tão ligados a poesia. Ao falar deles, Braga como o narrador se volta para si, distanciando de todo o outro espaço narrativo. Com este recurso, Braga retoma as relações humanas, pois como já exposto, toda crônica retrata a relação humana.

 

De forma turbulenta Braga também insere temas poéticos e até líricos e, consegue fazer a separação de estranhos e conhecidos.

Após o ocorrido, a senhora de ombro forte e dedos longos é uma íntima conhecida, pois juntos enfrentaram a morte e ela o fez relembrar da existência do amor. E ao contrário do que se poderia esperar, não é do narrador o braço, e sim da passageira aflita.

 

Como definiu Candido: “É curioso como elas mantêm o ar despreocupado, de quem está falando coisas sem maior consequência; e, no entanto, não apenas entram no fundo do significado dos atos e sentimentos do homem, mas podem levar longe a crítica social” (1992: 17-8). Todavia é válido o exercício: a leitura é feita a partir do livro, mas que notícias possíveis poderiam ter gerado esta crônica?

 

Referências.

 

BRAGA, Rubem. 200 crônicas escolhidas. Rio de Janeiro: Record, 2005.

______ (org.). Este livro. In: ______. Contos russos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

______. Livro de versos. Ilustrações de Jaguar e Scliar. 2.ed. Rio de Janeiro: Record,

1993.

______. O conde e o passarinho. Rio de Janeiro: Record, 2002.

CANDIDO, Antonio et al. A vida ao rés-do-chão. In: ______. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992.

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9ª edição. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.

CARVALHO, Marco Antonio. O cigano fazendeiro do ar. Rio de Janeiro: Globo, 2007.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO, Angela Paiva (org.). Gêneros Textuais & Ensino. 5.ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007.

MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1989. vol. 5.

PICCHIO, Luciana Stegagno. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.

PORTELLA, Eduardo. A cidade e a letra. In: ______. Dimensões I. Rio de Janeiro: José Olympo, 1958.

GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 27/09/2024
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