Considerações sobre Modernidade e Direito
Considerações sobre Modernidade e Direito
Resumo: O pluralismo jurídico tem propiciado diversas formas de observação dos fenômenos e questões sociais. Boaventura apontou uma forte ligação epistemológica com Teubner , no que tange às novas formas de produção normativa exteriores aos limites estatais. Este denomina de policontexturalidade, aquele de direitos não oficiais . A primeira questão a ser abordada é a do “reconhecimento de que, na sociedade, há uma pluralidade de ordens jurídicas [...]” . Outrossim, expõe-se que os mecanismos do sistema mundial, que atuam em um plano supraestatal, acabaram por desenvolver suas próprias leis sistêmicas, que vieram se sobrepondo às leis nacionais dos Estados particulares . Paralelo a este direito supraestatal, surgiram também diferentes formas de direito intraestatal, bem como ordens jurídicas locais que acabam por reger determinadas categorias de relações sociais, e que interagem de múltiplas formas com o direito centralizado.
Palavras-chave: Modernismo. Direito Moderno. Direito contemporâneo. Positivismo. Interpretação jurídica.
A modernidade é a era que rompe com as tradições da Idade Média. Literalmente modernidade retrata o novo, o atual. Surgida com o renascer da crença na razão humana, a modernidade traz o homem para o centro das atenções, o homem como ser iluminado, dotado de razão, que se divorcia da mitologia e da metafísica e aposta na razão, na ciência e no empirismo, paradigmas positivistas, modernos por excelência.
São vários os alicerces que sustentam a modernidade. Construções racionais que formam uma estrutura concreta que crê na ordem, na ordenação de todas as coisas e no assujeitamento de tudo à razão humana. Instrumentos da manutenção da ordem moderna são o Estado e o Direito moderno - positivado, legislado, ordenado e codificado.
A crise da modernidade revelada em meados do século XX, gerou inúmeros estudos, alguns autores a denominaram modernidade líquida, hipermodernidade, modernidade reflexiva ou, simplesmente, pós-modernidade. Fato é que a crise é clara. As ilusões da modernidade foram expostas e os questionamentos foram inevitáveis.
O Direito contemporâneo sofre os reflexos desta crise? Qual a relação do Direito com as estruturas modernas? O que é afinal a modernidade? Há uma crise da modernidade? O que é a pós-modernidade? Afinal, tem-se o problema central da presente pesquisa: quais os reflexos da crise da modernidade no Direito contemporâneo?
O termo “modernidade” não é um termo novo, ainda que represente categoricamente o que é novo, atual. Segundo Habermas (2001, p. 168), a palavra “modernus” foi utilizada já no século V para diferenciar um presente cristão de um passado pagão. Percebe-se nitidamente que a palavra quer representar uma ideia de inovação carregada de um sentido evolucionista, de descontinuidade, de ruptura com tradições.
"Moderno, do latim modernus, significa o que é “recente”, “agora mesmo”. Do ponto de vista histórico, considera-se que a filosofia moderna se inicia com Descartes e Francis Bacon, caracterizando uma ruptura com o medieval, sobretudo com a escolástica.
O pensamento moderno acompanha fatos que ocorrem durante os séculos XV a XVII e marcam uma nova visão de mundo que se contrapõe à visão medieval, caracterizando o surgimento do mundo moderno. ‘Moderno’ identifica-se, neste sentido, à ideia de progresso e de ruptura com o passado” (JAPIASSU; MARCONDES, 2001).
A modernidade rompe com os paradigmas medievais, inaugurando uma nova ordem social baseada no racionalismo. Há um rompimento com a ideia de centralizar o espiritual, e coloca-se a razão, e o homem racional no centro de toda fonte de conhecimento.
Tal fator, determinante para o nascimento de um novo paradigma é reconhecido historicamente como o período pós-renascimento e o iluminismo. O renascimento do homem como ser iluminado e dotado de razão.
O iluminismo moderno, período que vai dos últimos decênios do século XVII aos últimos decênios do século XVIII é denominado comumente de “século das luzes”, no qual sobe à cena o “poder da razão”, com foco nas pretensões cognoscitivas do homem, fazendo parte integrante deste momento o empirismo.
Uma sociedade antropocêntrica, com o homem detentor da razão no centro de todo o interesse. Um homem livre e com seus direitos garantidos.
"Nasce o homem moderno, confiante em sua crítica e em sua razão, assujeitando e tornando todas as coisas objeto de sua ciência empírica, crente na sua ordenação e em seu progresso."
Francis Bacon, no final do século XVII chegou a afirmar que a Idade Moderna é mais avançada que as idades passadas, pois o conhecimento está mais desenvolvido e mais próximo da verdade.
Descartes descobriu as leis naturais invariáveis e faz delas a base da ciência, assim a civilização ocidental estava pronta para acolher a teoria do Progresso
Uma sociedade antropocêntrica, com o homem detentor da razão no centro de todo o interesse. Um homem livre e com seus direitos garantidos.
Há certa dificuldade em se definir a modernidade, mas é possível associar o termo a várias palavras que acabam por traçar as características semânticas que contornam as dificuldades de se definir a modernidade, tais como: progresso, ciência, razão, saber, técnica, sujeito, ordem, soberania, controle, unidade, Estado, indústria, centralização, economia, acumulação, negócio, individualismo, liberalismo, universalismo, competição, dentre outros termos que nasceram com a modernidade e foram sustentados por ideologias e práticas sociais saudados com efusividade por gerações ambiciosas pela sensação de liberdade prometida pela modernidade.
A sustentar um novo paradigma: o paradigma da modernidade. "Com promessas de igualdade, liberdade, progresso, segurança, dentre outras, a era moderna conquista o homem e organiza a sociedade, criando uma nova cultura e novas tradições no ocidente."
Giddens (1998) questiona: o que é a modernidade? E afirma que “modernidade” se refere a estilo, costume de vida ou organização social que emergiu na Europa e tornou-se mundial em sua influência.
"Trata-se de um paradigma moldado por grandes ideologias, filosofias e com alicerces sólidos e que se tornaram influentes mundialmente. Um conjunto de transformações sociais, políticas, econômicas e culturais que formam uma nova ordem social: a ordem moderna; fundada sobre o ideal de liberdade e na crença na razão que rompe com as explicações espirituais e com a centralização da religião da era medieval.
"A modernidade implicou em um longo processo histórico de desenraizamento e de laicização, de autonomia e liberdade, de racionalização e de mecanização, de instrumentalização e de industrialização."
Desta forma, ainda segundo o doutrinador, é importante ressaltar que a modernidade envolveu aspectos do ideário intelectual (científico e filosófico), aspectos econômicos (revolução industrial e ascensão da burguesia) e aspectos políticos (soberania, governo central, legislação), fatores que formaram os pilares de sustentação da arquitetura moderna.
Percebem-se, nitidamente, estes fundamentos nos ideais da Revolução Francesa, um marco da era moderna e da ideologia burguesa. Um fundamento essencial da modernidade é a busca da ordem e a luta contra a ambivalência.
Analisando este aspecto, Bauman (1998) afirmou que dentre a multiplicidade de tarefas impossíveis que a modernidade se atribui, sobressai a da ordem, a da “ordem como tarefa”. A ordem é o contrário do caos. "É possível pensar a modernidade como o momento em que se reflete a ordem."
"Para se alcançar a ordem, faz-se necessário eliminar as contradições, as incertezas, as ambivalências." (“A Crise Da Modernidade E OS Reflexos No Direito Sem Autoria”) E, finalmente, alcançar o progresso, o objetivo maior, justificador de qualquer sacrifício. Hierarquizar, conceituar, descobrir, cientificar, conhecer, classificar, nomear, implementar e construir tornam-se práticas engenhosas e tentáculos do exercício da razão para realizar a ordem almejada pelos ideais modernos.
Na análise da modernidade, Bittar (2014) afirma que o direito, a legalidade, o Estado e a burocracia realizam um papel garantidor nesse contexto da afirmação dos interesses burgueses, da realizabilidade do liberalismo político, bem como da fortificação do mercado. Tais institutos aparecem como instrumentos de garantia da estrutura moderna e de se alcançar os objetivos da modernidade.
De acordo com Bauman (1999) o Estado moderno surge como um “Estado jardineiro”, um Estado imbuído de uma força missionária, empenhado em submeter as populações dominadas a um exame completo a fim de torná-las ordeiras, afinadas com os preceitos da razão. Um Estado com postura de jardineiro que, com fundamento na razão, dividia a população em plantas úteis, cultiváveis e em ervas daninhas que deveriam ser arrancadas.
O Direito se torna um alicerce essencial do Estado moderno, assegurando a manutenção da estrutura moderna e a proteção da ordem estipulada pela razão e os interesses das classes dominantes, detentoras do capital.
Surge neste meio a cultura jurídica positivista, instrumento hábil de solidificação dos intentos da modernidade. A filosofia da época iria ao sentido de um Estado centralizador, soberano, com um Direito positivado, consolidado e codificado com o objetivo claro de manter a ordem determinada pela racionalidade moderna.
O positivismo de Augusto Comte teve como base a oposição da ciência, da razão, do empirismo ao mitológico e ao metafísico. Claro fundamento da era moderna que busca na razão o fundamento do que é real e na experiência o fundamento da verdade.
O positivismo influenciou intimamente o sistema jurídico moderno, formando um complexo de normas codificadas e a aplicação literal deste direito positivado. O Direito tornou-se uma ciência dogmática, com fundamentos modernos e com claro objetivo de manutenção da ordem.
O Direito restringiu-se à literalidade da lei, num complexo codificado, tendo aí seus limites, com fundamentos claros de validade, legalidade, ordem e impositividade.
O ápice deste positivismo jurídico moderno se dá no Código Civil Francês de 1804 que trouxe consigo um conjunto de ideais da modernidade, e também da própria Revolução Francesa, conforme o próprio espírito da época, espelhando um direito legislado codificado, tornando nítida a homogeneização e unificação do Direito no mundo moderno.
Trata-se de um direito fundado no ideal de legalidade e na ideia de ordenamento jurídico completo e complexo que é capaz de aglutinar todas as necessidades jurídicas.
A modernidade lançou então seus alicerces. Ordem, razão, ciência, Estado, Direito, legalidade, controle, burocracia, dentre outros já citados. E durante séculos a crença na modernidade imperou, ainda que com nítidos ideais burgueses, o mito da segurança e do progresso, promessas da modernidade, enraizaram-se na sociedade moderna .
Na modernidade ocorreu o assujeitamento das coisas ao prazer e à satisfação do homem, um assujeitamento sem limites em nome do progresso.
Analisando esta crise Bauman (2007) afirma que o “progresso”, que foi a manifestação extrema do otimismo radical e promessa de felicidade universalmente compartilhada e permanente, afastou-se em direção ao polo oposto: ele agora representa uma ameaça de uma mudança inexorável e inescapável que, ao invés de assegurar paz e sossego, pressagia crise e tensão.
Inegavelmente, a modernidade resultou em avanços científicos, mas, ao mesmo tempo, tornou a natureza objeto de exploração. Formou uma ordem social capitalista que necessita de consumidores desenfreados. A sociedade industrial se torna insustentável. Como afirmou Marx , o capitalismo acaba por gerar o seu próprio coveiro.
A modernidade desembocou no holocausto. O momento vivido durante e após a Segunda Grande Guerra Mundial foi de reflexões, questionamentos, desconstruções. É impossível não atentar ao fato de que as promessas modernas, de segurança, igualdade e liberdade e as ficções modernas de legitimação do Estado e do Direito asseguraram a existência do totalitarismo, da realização de atrocidades em nome da ciência e do holocausto.
Nas palavras de Bauman (1998a): “em nenhum momento de sua longa e tortuosa execução o Holocausto entrou em conflitos com os princípios da racionalidade”.
A busca pela administração burocrática, o Estado jardineiro, o anseio desenfreado por manter a ordem tonaram razoáveis e admissíveis as agruras cometidas no Holocausto. (“A crise da modernidade e o Direito contemporâneo | Jusbrasil”)
Questionar os fundamentos da modernidade é criar riscos. É viver num mundo de inseguranças. E, isto acontece a partir de meados do século XX. É possível afirmar que o século XX é permeado de grandes catástrofes sociais: duas grandes guerras mundiais, o holocausto, a bomba atômica, a Guerra Fria, fatos que impactaram o mundo como um todo apresentando os resultados da modernidade e da luta desenfreada pelo progresso a qualquer custo.
Há doutrinadores que afirmam que a crise do século XX lançou as sementes de uma nova era. Bauman chama este novo tempo de “pós-moderno”, Giddens denomina de “modernidade tardia”, Beck chama de “modernidade reflexiva”, Balandier de “supermodernidade” (BAUMAN, 1998b).
Diante da crise da estrutura moderna, Beck afirmou que a modernidade reflexiva representa a possibilidade de uma “(auto) destruição criativa” para toda uma era, a era da sociedade industrial e defende que não se trata de uma revolução, de uma crise, mas da vitória da modernização ocidental (BECK; GIDDENS; LASH, 1997).
Não há consenso quanto a uma nomenclatura ou quanto ao nascimento de uma nova era, porém, é notória a mudança de paradigmas ocorrida no decorrer da segunda metade do século XX. Na realidade trata-se de uma crítica aos paradigmas, aos dogmas, às verdades absolutas do racionalismo moderno.
Na sociedade contemporânea há uma observância clara do ilusionismo da razão instituída pela modernidade, liberdades convertidas em subjetivismos, a demonstração da falácia da igualdade moderna em que uns são mais iguais que outros, a substituição do homem pelas máquinas, a natureza como objeto de exploração, democracia sem a participação do povo. Tudo isso resulta na descoberta da grande ilusão moderna, na autoilusão, que termina no ruir das estruturas da modernidade.
Bauman (2001), numa metáfora, disse que o presente estágio da era moderna é um estado de “fluidez”. Trata-se de uma modernidade que não está mais sólida, mas que se encontra líquida. As estruturas modernas são sólidas, mantêm sua forma, possuem condições espaciais claras, neutralizam o impacto, e assim, diminuem a significação do tempo.
Ao contrário, os fluidos, os líquidos, não mantêm sua forma com facilidade, não fixam o espaço, nem prendem o tempo, não mantêm sua forma e estão propensos todo o tempo a mudá-la.
Os fluidos se movem facilmente, simplesmente “fluem”, “escorrem”, “vazam”, “inundam”, são “filtrados”, “destilados”. Diferentes dos sólidos não são facilmente contidos. O líquido em confronto com o sólido permanece intacto, mas os sólidos, que foram confrontados, se permanecerem sólidos, são alterados.
Há uma crise quanto aos conceitos fundamentais do pensamento moderno, tais como “razão”, “verdade”, “progresso”, mas não apenas isso, surge uma procura por novos enquadramentos teóricos. “O pós-moderno, enquanto condição de cultura nesta era caracteriza-se pela incredulidade no metadiscurso filosófico-metafísico, com suas pretensões atemporais e universalizantes”. “Considera-se ‘pós-moderna’ a incredulidade em relação aos metarrelatos” (LYOTARD, 1988)
Boaventura de Souza Santos afirmou que “há um desassossego no ar”, uma sensação de estar “na orla do tempo”, em um presente quase a terminar e um futuro que ainda não começou. Tal desassossego resulta de um paradoxo: o excesso de determinismo e o excesso de indeterminismo. O primeiro reside na aceleração da rotina e o segundo na desestabilização das expectativas. Um tempo caótico onde ordem e desordem se misturam. “A eventualidade de catástrofes pessoais e coletivas parece cada vez mais provável” (SANTOS, 2001).
Na realidade, o homem criador se tornou aprisionado por sua própria criação que, por fim, o traiu com promessas “incumpríveis”.
Barroso descreve:
“Planeta Terra. Início do século XXI. Ainda sem contato com outros mundos habitados. Entre luz e sombra, descortina-se a pós-modernidade. O rótulo genérico abriga a mistura de estilos, a descrença no poder absoluto da razão, o desprestígio do Estado. A era da velocidade. A imagem acima do conteúdo. O efêmero e o volátil parecem derrotar o permanente e o essencial. Vive-se a angústia do que não pôde ser e a perplexidade de um tempo sem verdades seguras. Uma época aparentemente pós tudo: pós-marxista, pós-kelseniana, pós-freudiana” (BARROSO, 2001).
Tais alterações afetam diretamente a dimensão cultural. Há um choque de culturas, entre o novo e o velho. Se o mundo está em transformação, quais são os valores? Os valores majoritários ou consensos possíveis? Todo processo cultural acaba por representar um processo de reavaliação e revaloração. Tendo em vista que todo o cerne das questões jurídicas está fundamentado no cerne das questões culturais, qualquer alteração cultural afeta diretamente o mundus iuris.
O Direito fundado no Estado moderno, no Estado de Direito, é um pilar da modernidade. Direito concreto, positivado e que, como tudo no paradigma moderno, busca uma completude e encaixotar todas as possibilidades de forma a manter a ordem padronizada.
Trata-se de um Direito dogmático, codificado e, por natureza, fechado num sistema de normas que se pretendem “autoaplicáveis”.
"O judiciário, no Estado moderno, não passa de um aplicador do Direito." A “boca inanimada da lei” como diria Montesquieu. O que, com certeza, não se encaixa no Direito contemporâneo; isso graças à influência dos novos paradigmas contemporâneos que buscam romper com os pilares da modernidade.
A crise da modernidade causa um reflexo claro no Direito contemporâneo: a soberania da legalidade, pautada na validade jurídica, que não se mostra eficiente para manter o processo da ordem social. "Contemporaneamente um sistema jurídico ordenado e válido não é suficiente, há um anseio pela efetividade do Direito."
A efetividade e a eficiência jurídica se tornam, no Direito contemporâneo, o grande desafio. A crise da modernidade e o ruir de seus pilares trazem a eficiência para o foco da discussão jurídica. De que serve um sistema homogêneo, completo, ordenado, válido que não dá as respostas esperadas pela sociedade? Esta questão, contemporânea, se torna o centro da discussão do Direito.
Não importa neste contexto a discussão do significado, conceito e discussões acerca das palavras efetividade, eficiência ou eficácia; o que importa é que se exige na contemporaneidade que o Direito funcione, atinja seus objetivos.
A crise da modernidade coloca o Direito moderno em cheque. Exige-se, na contemporaneidade, que o Direito seja capaz de se atualizar, de dar as respostas esperadas e de se moldar conforme as necessidades da sociedade. De atender aos apelos democráticos. Logicamente com o cuidado de não se dar respostas mentirosas para as mentiras descortinadas.
A fluidez que fará com que o Direito se adeque e se conforme aos anseios da pós-modernidade. "Fazendo com que o Direito se torne efetivamente um instrumento a favor desta nova ordem social." (“A crise da modernidade e o Direito contemporâneo | Jusbrasil”)
O Direito contemporâneo é diretamente atingido pela crise da modernidade. Sua estrutura é abalada. O Direito precisa dar uma resposta às necessidades sociais.
É verdade que o conceito de modernidade é amplíssimo e pode ser aplicado aos vários setores do conhecimento e da atividade humana.
Preocupa-se em investigar o que poderia ser chamado de direito moderno. A modernidade representa o equivalente a um certo grau de complexidade que a organização do direito adquiriu em algumas civilizações e, isto significa que, dentro deste corte epistemológico, se pode afirmar que quanto mais complexas forem as relações jurídicas, na definição de complexidade ora reverenciada, mais moderno será o direito.
A ordem jurídica mais primitiva se organiza de forma indiferenciada, o que significa, entre outros aspectos, que as ordens normativas, éticas, que regulam a conduta humana, uma das quais é o direito, estão todas coligadas, sem funções definidas separadamente dentro do contexto social. (“Ética, jusnaturalismo e positivismo | Manuais, Projetos .”)
Lembremos que no Egito Antigo um ilícito jurídico é, ao mesmo tempo, uma imoralidade e um pecado contra a estrutura social. Não vigia a separação entre o ilícito religioso, ilícito moral e o ilícito jurídico que seriam, diferentes ordens normativas assemelhadas.
Registrou-se, historicamente, que os primeiros questionamentos a respeito de tal indiferenciação remontam à Antígona de Sófocles, ao separar com nitidez o direito de Créon, posto, do direito natural superior, reclamado por Antígona desejosa de sepultar seu irmão. Depois, há a célebre frase de Jesus Cristo , presente nos quatro Evangelhos oficiais in litteris; "A César, o que é de César, a Deus o que é de Deus".
Ainda dentro do monopólio do Império Romano tinha sobre as normas éticas, a separação clara entre uma esfera que seria de competência de uma Igreja emergente, independente de outra ordem, atribuída ao Estado Romano que era onipresente, onisciente, onipotente da época.
Pois bem, os seguidores de Jesus, do apóstolo de Tarso e de outros grandes pensadores à serviço do catolicismo, fizeram relevante trabalho e, só no século XVIII que aparecerem o que foi chamado de Jesus Cristos às avessas, os dois primeiros juristas modernos, a saber: Samuel Pufendorf e Christian Thomasius.
Cabe questionar quais os fatores sociais mais relevantes que devem estar presentes para uma sociedade sejam denominados de juridicamente moderna e, ainda, esteja apta modernizar o seu direito. é possível, como Niklas Luhmann , a utilizar expressão positivar o seu direito, ou, torná-lo dogmático.
"O primeiro desses pressupostos é a pretensão de monopólio por parte do Estado na produção das normas jurídicas. Pela primeira vez na história da civilização ocidental aparece uma instituição que se arvora competência para monopolizar o direito. O que não significa que o Estado Moderno produza todas as normas jurídicas, mas sim, que é direito aquilo que ele produz ou tolera seja produzido por outras fontes.
O Estado, genericamente, sempre existiu: um Estado Moderno, porém, diferencia-se dos demais Estados, tal como o egípcio e o feudal, por exemplo, entre outras características, por arvorar-se o monopólio na produção do direito.
Havia instituições produtoras de direito tão ou mais importantes do que o Estado, como o pater famílias em Roma ou as corporações medievais. Se o pai romano tinha direito de até vender seu filho e mantê-lo sob seu jugo por toda a vida, no mundo moderno a emancipação se dá por decurso de prazo, mesmo contra a vontade do pai, a quem tampouco é permitido exagerar nos castigos, enquanto titular do pátrio poder. O direito estatal pretende alcançar inclusive relações íntimas como aquelas de família ou mesmo o pouco poeticamente chamado "débito conjugal”.
Jhering chamou a atenção para o fato de que, há menos de dois séculos, os crimes contra a honra, na Alemanha, país tido como tipicamente moderno, não eram monopólio total do Estado, permitindo-se, em casos de ofensa, que as questões fossem resolvidas através de duelo.
Se a pretensão estatal de monopólio da violência legítima não estava ainda consolidada havia parcos duzentos anos, no coração da cultura europeia, então esse fenômeno é muito recente.
Cumpre verificar que a prática do duelo se encontra institucionalizada pelo Código Penal do Uruguai atualmente em vigor e, se não chega a ser estimulada, diminui drasticamente as penas referentes a lesão corporal grave e homicídio, com ou sem uso de armas, constituindo-se em clara circunstância atenuante, desde que o procedimento dogmático prescrito tenha sido obedecido (formalidades como padrinhos e "tribunal de honra", por exemplo).
Ressalte-se que a sociedade que pretende modernizar o seu direito, decorrente dessa primeira, é a crescente importância das fontes estatais em detrimento das fontes espontâneas e extraestatais do direito. E, o costume sempre foi de significação primordial no direito antigo.
E, ainda é relevante na sociedade moderna, mas todo operador de direito sabe que aquele que tem a lei ao lado de sua argumentação, leva vantagem sobre aquele que alega um costume em sentido contrário. E, assim, o advogado só deverá alegar o costume quando não conseguir, nas fontes normativas estatais, a lei e a jurisprudência, obter o devido respaldo para sua pretensão.
Sabe-se que historicamente que a jurisprudência e a lei são tão antigas quanto é a civilização. Os historiados cogitam dos éforos no direito espartano e dos Códigos de Manu e Hamurábi, tão logo se aprendeu a escrever, preocupou-se em reduzir a termo, os costumes então existentes. (“Epistemologia Jurídica[1] Contemporânea - Jornal Jurid”)
Mas, é só com o Estado moderno que o processo legislativo, resultando na lei, e o costume jurisprudencial, originando essa jurisprudência que passa a preponderar sobre as fontes não-estatais e direito como o contrato, as declarações unilaterais de vontade ou o costume jurídico, que só vale na medida em que constituem fontes complementares, subsidiárias às regras estatais. (“Epistemologia Jurídica Contemporânea - Portal Jurídico Investidura”)
Então, no contrato, por exemplo, é preciso objeto lícito, agente capaz etc., a autonomia da vontade não basta para estabelecer um vínculo jurídico, sendo necessário o acordo com as fontes estatais do direito.
É possível até conceber que essas formas de organização social sob as quais vivemos estão acabando; com a globalização, o Estado nacional parece enfraquecer-se. Mas o fato é que a estrutura em que a maioria das comunidades vive até hoje ainda é aquela do Estado nacional e esta teoria não pretende ser prospectiva, vez que não é intenção fazer previsões.
A terceira e mais importante das características que fazem uma sociedade capaz de dogmatizar seu direito é o que se pode denominar de relativa emancipação da ordem jurídica frente às outras ordens normativas, a autorreferência do sistema jurídico, agora exposta sucintamente.
Foi visto que um elemento importante nos primórdios da civilização era a indiferenciação das ordens normativas, uma indistinção entre o que é jurídico e o que é religioso, o jurídico e o moral, o moral e o religioso, direito e economia, direito e magia etc.
A autorreferência significa que os critérios para a definição do que é lícito e do que é ilícito, juridicamente falando, são em larga medida independentes em relação aos demais modos de organização da vida social, com as regras internas do sistema, as normas jurídicas, definindo e tratando o que é juridicamente relevante (fechamento), ainda que em permanente interação com os demais subsistemas (abertura).
Dentro dos limites simplificadores deste texto, pode-se denominar esta autorreferência de autopoiese (autopoiesis), reservando-se a expressão alopoiese (allopoiesis) para descrever as interferências entre os diversos subsistemas em sociedades menos diferenciadas.
"O direito de uma sociedade será tão mais complexo quanto mais nitidamente separado desses subsistemas, quanto mais esteja ele imunizado contra as interferências deles, entre outras várias características."
E, ao contrário, uma sociedade pode ser dita mais indiferenciada na medida em que ocorre essa interferência, como, por exemplo, quando o fato de alguém pertencer ao grupo dos amigos (subsistema de contato, de boas relações) do presidente de determinado tribunal interfere na afirmação da jurisdictio, no dizer o direito .
Um exemplo real de alopoiese no Brasil parece ser o subsistema jurídico-penal carcerário: se, digamos, metade da população brasileira é economicamente carente (independentemente dos critérios usados para definir a carência) e 95% dos condenados encarcerados ajustam-se ao mesmo conceito, está havendo interferência da condição econômica na decisão sobre o lícito e o ilícito, pois a distribuição de assistência judiciária a todos não cumpre seu papel.
Se se argumenta, por outro lado, que uma maior proporção de condenados pobres se deve ao fato de estes estarem mais sujeitos a ingressar na criminalidade, sendo o procedimento jurídico igualmente aplicado a quaisquer classes, a alopoiese é diferente, mas ainda clara: não ter certas condições econômicas interfere e corrompe o código jurídico em nível material, pelo menos.
Pode funcionar quanto aos crimes contra a vida e o patrimônio, há ilícitos penais praticados em proporção semelhante por ricos e pobres, sem serem correspondentes os índices de condenação. Quanto ao subsistema de boas relações, basta lembrar o dito "aos amigos tudo, aos inimigos a lei". (“Epistemologia Jurídica[1] Contemporânea - Jornal Jurid”)
Isso pode gerar problemas graves de legitimação, os quais, em sistemas menos complexos, são tratados e contornados por outras estratégias extrajurídicas.
Este conceito simplificado de "modernidade", três ressalvas epistemológicas devem ser feitas. A primeira é que nosso conceito é qualitativo e não meramente temporal. As sociedades assim estruturadas podem ser ditas modernas porque sua forma de organização obedece ao padrão ora escolhido para definir "modernidade". (“Epistemologia Jurídica[1] Contemporânea - Jornal Jurid”)
Deste modo, nem tudo o que é contemporâneo, nem tudo o que vem após a Revolução Francesa ou a II Grande Guerra, é moderno, como o exemplificam os sistemas jurídicos teocráticos fundamentalistas ou as formas de organização do direito em comunidades no interior do Brasil.
Uma segunda ressalva é que não se pretende ligar o conceito de modernidade a qualquer juízo de valor, afirmando que os tipos ideais de "modernidade" ora descritos sejam melhores ou piores para as sociedades e as pessoas.
Não se deve pensar que sistemas alopoiéticos sejam necessariamente mais disfuncionais ou em si mesmos menos complexos e sofisticados do que o direito característico da modernidade. São menos complexos apenas do ponto de vista da diferenciação funcional.
A terceira ressalva é que os parâmetros de organização do direito definidos como modernos não constituem necessariamente um caminho pelo qual evoluirão todos os povos e a sociedade globalizada dos neoliberais; (“Epistemologia Jurídica[1] Contemporânea - Jornal Jurid”) nada parece indicar que o mundo esteja caminhando na direção desse tipo de complexificação social.
Muitos dos sistemas jurídicos alopoiéticos contemporâneos apresentam outras formas também altamente complexas e estáveis, estrategicamente bem-sucedidas de positivação do direito. Só que funcionam diversamente.
Os modernos os sistemas jurídicos emancipados e autorreferentes do Primeiro Mundo basicamente por dois motivos. O primeiro é seu caráter inusitado, sem precedentes na história do direito. Um ordenamento jurídico identificado com a religião ou a influência da riqueza econômica sobre a jurisdição, sobre o poder de separar o lícito do ilícito, são fatos conhecidos dos historiadores do direito. Mas o direito dogmático, autopoiético , este é uma grande novidade da modernidade.
O segundo motivo é a tendência dos países contemporâneos, bem-sucedida ou não, no sentido de dogmatizar o seu direito, com os Estados arvorando-se progressivamente o monopólio da jurisdição, fixando agrupamentos de normas positivas pretensamente omnicompreensiva e inequívocas, além de eficazes, com corpo de funcionários específico para decidir o direito etc.
Exemplos de argumentos tipicamente modernos têm sido divulgados pela imprensa brasileira, como o caso daqueles servidores públicos que declaram saber que o alto valor de seus proventos é certamente imoral, mas como é legal, torna-se necessário aceitá-lo, alegações provavelmente ininteligíveis para quem vê no direito uma moral mínima positivada e não percebe como algo pode ser intrinsecamente imoral e ao mesmo tempo de acordo com o direito.
"Este é um preço a ser pago pela autopoiese, cujos eflúvios localizados podem-se sentir até no Brasil." (“Ética, jusnaturalismo e positivismo | Manuais, Projetos ”)
Como afirmam os positivistas, a legitimidade torna-se palavra oca ao ser equiparada à legalidade, pois o direito legítimo, nos sistemas modernos, é aquele produzido de acordo com as regras do sistema.
Verifica-se, por exemplo, na teoria da inconstitucionalidade das leis e atos jurídicos. Válida e assim legítima é toda norma elaborada de acordo com o conteúdo das normas superiores (compatibilidade "material"), emanada do poder competente e elaborada de acordo com o procedimento prescrito pelo ordenamento jurídico (compatibilidade "formal").
No topo do sistema de normas, ato de vontade do Poder Constituinte originário fixa livremente os conteúdos do direito. Advogando o fim da "ideologia" do direito natural, o positivismo coloca como modernidade exatamente essa autofixação dos critérios do lícito e ilícito.
Não é justo (e assim não é jurídico) um sistema que proíba a liberdade de imprensa ou consagre a desigualdade entre homens e mulheres é peremptoriamente antipositivista, antidogmática, jusnaturalista, até, neste amplo sentido ora dado.
Isto porque parte do princípio de que há normas superiores e anteriores à fixação das regras positivas de direito e que essas normas superiores valem por si mesmas, qualquer que seja seu fundamento (já se trata de uma discussão entre os antipositivistas), servindo como critério para aferir a legitimidade do direito posto.
O sistema jurídico piramidal, imaginado por um antecessor de Kelsen, Adolf Merkl, estabelece a partir da "norma fundamental" os seus critérios, os quais não têm qualquer conteúdo axiológico aprioristicamente válido.
A inconstitucionalidade por conteúdo, por exemplo, chamada inconstitucionalidade material, só é possível porque foram fixados conteúdos normativos na primeira constituição pelo poder constituinte originário, mas a inconstitucionalidade permanece um conceito interno do direito positivo.
As decisões de uma assembleia constituinte originária não podem ser inconstitucionais, vez que, em princípio, esquecendo as pressões da comunidade internacional, dentre outras extradogmáticas, ela é juridicamente incondicionada.
Exemplos de argumentos tipicamente modernos têm sido divulgados pela imprensa brasileira, como o caso daqueles servidores públicos que declaram saber que o alto valor de seus proventos é certamente imoral, mas como é legal, torna-se necessário aceitá-lo, alegações provavelmente ininteligíveis para quem vê no direito uma moral mínima positivada e não percebe como algo pode ser intrinsecamente imoral e ao mesmo tempo de acordo com o direito.
"Este é um preço a ser pago pela autopoiese, cujos eflúvios localizados podem-se sentir até no Brasil." (“Ética, jusnaturalismo e positivismo | Manuais, Projetos”)
Como dizem os positivistas, a legitimidade torna-se palavra oca ao ser equiparada à legalidade, pois o direito legítimo, nos sistemas modernos, é aquele produzido de acordo com as regras do sistema. (“Epistemologia Jurídica[1] Contemporânea - Jornal Jurid”)
Por exemplo, na teoria da validade das normas, na teoria da inconstitucionalidade das leis e atos jurídicos.
Válida e, assim, legítima é toda norma elaborada de acordo com o conteúdo das normas superiores (compatibilidade "material"), emanada do poder competente e elaborada de acordo com o procedimento prescrito pelo ordenamento jurídico (compatibilidade "formal").
No topo do sistema de normas, ato de vontade do poder constituinte originário fixa livremente os conteúdos do direito. Advogando o fim da "ideologia" do direito natural, o positivismo coloca como modernidade exatamente essa autofixação dos critérios do lícito e ilícito.
A afirmativa, por exemplo, de que não é justo (e assim não é jurídico) um sistema que proíba a liberdade de imprensa ou consagre a desigualdade entre homens e mulheres é peremptoriamente antipositivista, antidogmática, jusnaturalista, até, neste amplo sentido. (“Ética, jusnaturalismo e positivismo | Manuais, Projetos)
Isto porque parte do princípio de que há normas superiores e anteriores à fixação das regras positivas de direito e que essas normas superiores valem por si mesmas, qualquer que seja seu fundamento (já se trata de uma discussão entre os antipositivistas), servindo como critério para aferir a legitimidade do direito posto.
O sistema jurídico piramidal, imaginado por um antecessor de Kelsen, Adolf Merkl, estabelece a partir da "norma fundamental" os seus critérios, os quais não têm qualquer conteúdo axiológico aprioristicamente válido.
A inconstitucionalidade por conteúdo, por exemplo, chamada inconstitucionalidade material, só é possível porque foram fixados conteúdos normativos na primeira constituição pelo poder constituinte originário, mas a inconstitucionalidade permanece um conceito interno do direito positivo.
As decisões de uma assembleia constituinte originária não podem ser inconstitucionais, vez que, em princípio, esquecendo as pressões da comunidade internacional, dentre outras extradogmáticas, ela é juridicamente incondicionada. Eis o cerne da doutrina jurídica positivista.
Pois bem. Mas ao mesmo tempo em que a modernização do direito assume o alto risco da instabilidade de um direito emancipado das certezas da religião e
Um sistema jurídico emancipado de ordens normativas outras permite uma maior diversidade de condutas, assumindo o monopólio da coercitividade, o monopólio da violência legítima, apenas no que concerne à suas próprias regras.
Então, há uma tendência no Estado dogmático de permissividade em relação a comportamentos que não seguem a ortodoxia moral, religiosa, de etiqueta, desde que de acordo com o subsistema jurídico.
Tomemos outro exemplo bem prosaico. No Brasil de até hoje, mesmo nas capitais mais tolerantes, um jurista que use brincos, por melhor que seja, dificilmente será presidente do tribunal de justiça ou coordenador do curso de doutorado em direito.
Este é um sintoma de alopoiese, na medida em que se supõe que a aparência das orelhas interferirá indevidamente no comportamento do jurista.
E, de fato, interfere, posto que a sociedade está assim organizada e os advogados, as partes e os serventuários talvez não interagissem devidamente diante de um desembargador heterodoxo, provocando disfunções naquele subsistema, ainda que todos saibam, em sã consciência, que uma coisa nada tem a ver com a outra. (“Ética, jusnaturalismo e positivismo | Manuais, Projetos”)
Uma sociedade será tanto mais diferenciada quanto mais esses subsistemas (no caso, a forma de apresentar-se e a competência jurídica) estejam imunizados uns diante dos outros.
Assim, a inusitada complexidade do mundo moderno traz para o direito o problema de precisar lidar com os mais diversos conteúdos, valores por vezes incompatíveis.
Há o subsistema moral daqueles que querem a pena de morte para os homossexuais; (“Epistemologia Jurídica[1] Contemporânea - Jornal Jurid”) há os que pretendem permitir que os homossexuais tenham direito à vida, mas reclusos a guetos, sem cidadania; (“Ética, jusnaturalismo e positivismo | Manuais, Projetos .) outros querem que eles tenham direito de votar, mas não possam se casar entre si ou adotar; há os que defendem a igualdade de direitos para homossexuais e heterossexuais; e há até aqueles que pretendem tornar o homossexualismo obrigatório.
Dentre as diversas características do direito dogmático, vamos ressaltar apenas duas, que parecem as mais importantes. A primeira característica é o que podemos chamar a inegabilidade dos pontos de partida.
Então, o direito é dogmático quando os pontos de partida são inegáveis. (“Epistemologia Jurídica[1] Contemporânea - Jornal Jurid”) O que significa isso? Significa que um argumento é juridicamente aceitável se, e na medida em que, toma por base uma norma jurídica do sistema, pois é exatamente a norma que constitui o dogma deste tipo de direito.
Isto não implica que não se possa rejeitar esta ou aquela norma jurídica, mas sim que uma norma jurídica só pode ser recusada com base em outra norma jurídica. (“Epistemologia Jurídica[1] Contemporânea - Jornal Jurid”)
Um juiz alternativo pode não querer despejar um inquilino inadimplente porque ele é pobre e o proprietário, rico, mas não pode basear sua decisão expressamente neste argumento, posto que não há no sistema brasileiro uma norma que garanta direitos subjetivos meramente pela pobreza ou que penalize alguém por possuir mais imóveis do que necessita para morar.
Por isso, o juiz vai às normas constitucionais, algumas das quais são vagas e ambíguas justamente para permitir que os mais diferentes argumentos caibam nelas, e lá toma a norma que protege a dignidade da pessoa humana para embasar seu argumento de que a moradia é essencial à dignidade e que a Constituição deve prevalecer sobre a Lei do Inquilinato, lei esta que seria a via normal de aplicação naquele caso concreto.
O argumento não vale por ser racional, não vale por ser empírica ou cientificamente demonstrável. É por isso que, para muitos, a atividade dogmática nada tem de científica , podendo, quando muito, ser objeto da ciência do direito.
Do outro lado, temos Kelsen, afirmando que a dogmática é a única ciência puramente jurídica, vez que as normas preponderam sobre os fatos Ambos têm razão, a depender do conceito de ciência adotado. Por exemplo, o conceito jurídico de pai, que pode diferir daquele definido pela biologia, pelo DNA, a não ser que uma norma jurídica prescreva que pai é aquele que a ciência biológica entende como tal.
O pai pode não ser aquele cujos espermatozoides geraram a criança interferência externa de perspectivas da biologia , mas sim aquele que o sistema jurídico, em sentença transitada em julgado, apontou como pai. É o caso da paternidade socioafetiva.
Se o sistema jurídico, um belo dia, entender que todos os velhos são pais de todos os jovens, os quais são seus filhos, como queria Platão na República, esta será a "realidade jurídica" dogmática. Parece estar aí o ponto de Kelsen.
A Escola do Direito Livre falou na revolta dos fatos contra as normas, mas Kelsen defende uma revolta das normas contra os fatos. pois, em um sentido bem literal, as normas fazem os fatos.
Os fatos, sobretudo os fatos jurídicos, não são dados puros da realidade, não se confundem com os eventos do mundo, fatos são versões linguísticas sobre eventos.
Assim, um fato jurídico, para a dogmática, é aquilo que a norma determina como tal. Por isso os profissionais do foro repetem que "o que não está nos autos não está no mundo".
Presumem-se do marido os filhos da mulher casada havidos na constância do casamento , mesmo que as evidências empíricas indiquem o contrário, como no caso de Dom Casmurro de Machado de Assis.
Daí o dogma fundamental: argumentar a partir do texto de alguma norma jurídica do sistema. A segunda característica desse direito dogmático, a ser destacada nesse momento, é a proibição do non liquet ou a obrigatoriedade de decidir. Só com o moderno Leviatã, o Estado passa a decidir, sempre, tudo o que é juridicamente relevante, pretendendo o monopólio da violência legítima e do dizer o direito, em última instância.
E, esse é o drama do magistrado brasileiro e do magistrado de uma maneira geral, o ter que entender de tudo para decidir a respeito de tudo. O direito vai se tornando cada vez mais complexo e, é impossível que um juiz consiga apreender lhe todos os matizes.
Não é raro verse um jovem juiz, ainda na casa dos vinte anos, recém- concursado, defrontando-se com uma causa no valor de milhões de reais, de cujo teor pouco entende, posto que se refere, digamos, a detalhes de direito econômico-financeiro, envolvendo fórmulas matemáticas complexas; sem contar que o processo traz dois pareceres opinando em sentidos diametralmente opostos, ambos com argumentos altamente complexos e assinados por juristas renomados, pagos a peso de ouro.
O juiz probo tem o complexo de Atlas, o titã que carregava a abóbada celeste sobre os ombros. Imaginemos lides de conteúdo jurídico simples, mas que envolvam um valor profundo, não necessariamente econômico, uma causa com conteúdo axiológico importante: uma das partes é esta mulher exemplar, cujo único problema é não conseguir viver com este homem exemplar, que por seu turno também não quer viver com ela; o objeto do litígio é a guarda de dois filhos amorosos e extremamente unidos; acontece que a mãe acaba de receber proposta profissional irrecusável para mudar-se para a Austrália e o pai não pode abandonar seus igualmente excelentes negócios no Brasil.
Ao contrário do que pensa o aluno iniciante, apaixonado pelos filmes envolvendo direito penal, as relações jurídicas quase nunca confrontam o bem e o mal, o mocinho e o bandido, vez que o direito, comunicação humana interativa que é, reúne materiais axiológicos os mais diversos e antagônicos.
A proibição do non liquet não era um problema para o Rei Salomão, por exemplo, famoso na Bíblia, entre outros motivos, justamente quando não seguiu esta regra. O “Livro dos Reis” conta que, julgando um caso de duas mulheres que reclamavam a maternidade da mesma criança, Salomão, por falta de prova conclusiva, decide pela destruição do objeto controverso, ou seja, manda dividir ao meio a criança.
Diante da reação das mulheres, uma das quais prefere que o filho seja entregue à outra ao invés de morto, o rei exercita sua sabedoria.
Um juiz contemporâneo que, após estudo dos autos, se pronunciasse pela destruição da coisa, alegando não dispor de elementos para decidir, seria considerado como insano.
É que o Direito se dogmatizou. O mundo mudou: ao tempo de Salomão, o Estado podia dizer o non liquet. Mas, não o fazia. Quando diante do Rei Salomão duas mulheres disputavam o mesmo filho, decidira então dividir ao meio a criança e dar as metades a cada mulher. Diante, disso, uma das mulheres renunciou ao filho, para que permanecesse vivo e inteiro.
Hoje, o Estado arvora-se o monopólio da jurisdição e competência para decidir tudo o que é juridicamente relevante.
Daí Kelsen, talvez o maior teórico do direito dogmático, entender como redundante a expressão "direito positivo estatal", pois todo direito é positivo e todo direito é posto pelo Estado.
Não se deve ver no positivismo dogmático que ainda luta por se implantar no Brasil motivo para a angústia existencial que se percebe em alguns antipositivistas, no Brasil e fora dele.
O direito moderno não é mau por ser assim organizado, da mesma maneira que a ligação ontológica pré-moderna entre direito e moral não constitui um bem em si mesma. Se Jesus Cristo era um jusnaturalista , Hitler também o foi .
Com a ascensão de Adolf Hitler e pelas atrocidades do regime nazista. No entanto, positivistas, como Hans Kelsen, se opuseram ao ditador, defendendo a democracia a o papel das instituições. Mas, prevaleceu a tese de Carl Schmitt de que o guardião da Constituição de Weimar era o presidente do Reich. Com o Judiciário enfraquecido, Hitler teve carta branca para impor suas vontades.
No livro "O guardião da Constituição", publicado em 1929, Schmitt questiona nessa obra o papel do Judiciário como guardião da Constituição. Para ele, somente o presidente do Reich poderia desempenhar essa função, pois o povo é quem o escolhe. Na visão do referido jurista, o presidente, alicerçado pelo artigo 48 da Constituição de Weimar , representava a unidade da autoridade política que traz consigo os anseios sociais do povo. Assim, a revisão dos atos legislativos por um tribunal independente é uma afronta clara à soberania estatal.
O direito natural parte do princípio antidemocrático de que há um conteúdo de justiça apriorístico em relação ao direito positivo, o qual precisa se curvar a seus princípios e deve ser imposto a todos os desviantes e recalcitrantes.
Eis a contribuição ética do positivismo, no amplo sentido, tal como definido: como não há uma justiça evidente em si mesma, os próprios cidadãos é que têm de tomar em suas costas o fardo de dizer, de pôr (daí positivismo) o direito.
Foi o que mudou: o direito continua axiológico como inevitavelmente o é, mas seu valor não está prefixado por qualquer instância a ele anterior ou superior. Ele não é imposto pela infalibilidade do Papa ou da Santa Madre Igreja, pela natureza ou por qualquer escatologia, nem é fixado a partir desta ou daquela concepção que alguém tenha de "justiça" ou de "razão".
A racionalidade, tenha dimensão ética ou meramente instrumental e tecnológica, não se impõe por si mesma ao direito e há profundas e inconciliáveis divergências quanto ao seu significado.
Portanto, se a emancipação cobra um preço alto, como dito, por outro lado, gera essa ética tolerante, democrática. Evidente que é preciso aperfeiçoar o conteúdo do direito, sempre na direção de mais tolerância, mas a modernidade não é em si um mal e ninguém tem de estar desesperado por não ter nascido na Idade Média ou na época das luzes europeias.
Se o mundo atual é ruim, parece que já foi pior e pode ficar pior do que jamais foi se as pessoas não abrirem os olhos e fixarem esse conteúdo axiológico do direito da maneira que lhes parecer mais "justa".
Afinal, temos a certeza de que a incerteza do futuro dos sistemas sociais, jurídicos e políticos, passam pelo mesmo caminho, os riscos que são criados pela imprevisibilidade sistêmica. Para essa imprevisibilidade, necessitamos de uma teoria apta aos novos padrões que surgem cotidianamente na sociedade multicultural.
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