"O conhecimento é o mais potente dos afetos: somente ele é capaz de induzir o ser humano a modificar sua realidade." Friedrich Nietzsche (1844?1900).
 

Professora Gisele Leite

Diálogos jurídicos & poéticos

Textos


O decálogo e o Código Penal brasileiro

 

Resumo: A ética religiosa tem certeira influência na positivação do direito penal no mundo e, na punição dos infratores, bem como a política de ressocialização dos apenados. Há forte influência do cristianismo sobre a ética e sobre todo o direito brasileiro. Afinal, a chamada civilização ocidental ainda é como civilização cristã. Conclui-se que a ética cristã influenciou e, ainda, influencia de forma marcante o direito e a hermenêutica jurídica no Brasil.

 

Palavras-chave: Dez mandamentos. Código Penal brasileiro. Pecados. Decálogo. Constituição Federal brasileira de 1988.

 

O decálogo ou os dez mandamentos são um conjunto de princípios relacionados a ética e à adoração. Esses mandamentos apareceram duas vezes na Bíblia hebraica, no Êxodo e no Deuteronômio. A depender de cada tradição religiosa, os mandamentos podem ser numerados e interpretados diferentemente.

E, estudos contemporâneos argumentam que advém de prováveis influências em leis tratados hititas e mesopotâmicos. O judaísmo guarda a mandamental apresentação, conforme expõe a coluna que exibe sua particular concepção, observando, naturalmente, com interior rigor, a prescrição sabática como sendo o quarto mandamento.

De acordo com a doutrina católica, os dez mandamentos sintetizam todas as prescrições do Antigo Testamento e, essa nova lei exposta pro Jesus no Sermão da Montanha que é a base e o fundamento da moral católica e, a Igreja exige dos fiéis o cumprimento destas regras.

O protestantismo concorda, em geral, com a estrutura mandamental original talmúdica, divergindo no que se refere à  composição do primeiro e segundo mandamentos e às seitas protestantes, em maioria, corresponde a Exodus 20:2-3 A partir do terceiro mandamento, as concepções talmúdica e protestante reformada sobre o Decálogo coincidem.

As primeiras leis, inclusive penais, a serem aplicadas no Brasil Colônia, foram as de Portugal, chamadas de “Ordenações do Reino”. As Ordenações Afonsinas vigoraram até 1512 e as Manuelinas até o ano de 1605, após esse período passou a vigorar as Ordenações Filipinas, que permaneceu em vigor até que foram instituídas as próprias leis brasileiras.

O Livro V das Ordenações Filipinas era a parte que tratava dos crimes, fundamentando-se nos preceitos religiosos. O crime era confundido com o pecado e com a ofensa moral, punindo-se

severamente os considerados hereges, apóstatas, feiticeiros e benzedores segundo os princípios do catolicismo. Além das punições severas, havia a previsão de sua cominação com a pena de morte, executadas por meios extremamente cruéis, havendo diferenciação para as punições aplicadas aos nobres e aos pobres.

Previa a Constituição de 1824, a elaboração de uma legislação penal que fosse de fato brasileira e, portanto, adequada a sociedade que ali se encontrava. Em 16 de dezembro de 1830 Dom Pedro I sancionou o primeiro Código Criminal do Império. Uma legislação considerada liberal para a época, inspirada no Código francês de 1810.

A nova lei trouxe em seu bojo a individualização das penas, com previsão de situações atenuantes e agravantes para aplicação das mesmas, estabelecendo-se um julgamento especial para os menores de 14 anos. Também havia a previsão, apesar da discordância de diversos legisladores que trabalharam no projeto, da pena de morte a ser utilizada para coibir a prática de crimes por parte dos escravos.

Já em 1832, surge o primeiro Código de Processo Penal, pois uma vez existente a legislação penal pátria, houve a necessidade de se regulamentar a aplicação dessas normas de Direito.

Em 11 de outubro de 1890, já assinada a lei áurea, nasce o Código Penal do Brasil Republica, muito criticado e considerado pior que o anterior a ele, talvez por ter sido feito às pressas, pois com a assinatura da Lei Áurea em 1888, houve a necessidade urgente de se reformular o antigo Código, uma vez que o mesmo previa penalidades para os escravos, os quais passaram a ser livres. Além disso, em 1889, com a proclamação da República, já havia o projeto para uma nova Constituição, que entraria em vigor em 1891, abolindo a pena de morte, motivos pelos quais o Código se tornou rapidamente obsoleto.

O Código de Menores que brotou em 1927 trouxe também alterações significativas a muitas penalidades relativas aos menores de idade, regulamentando esta especificidade, já que o Estatuto da Criança e do Adolescente veio a ser criado apenas em 1990.

Em 1932, surgiu a Consolidação de Piragibe (Decreto 22.213 de 14 de dezembro de 1932). Essa Consolidação das Leis Penais passou a ser o Estatuto Penal Brasileiro de observância e cumprimento obrigatório até o início da vigência do Código de 1940.

Depois de tanto ser remendado, no ano de 1940 finalmente nasce um novo Código Penal, porém, apesar de ter sido promulgado em 7 de dezembro de 1940, entrou em vigor penas em janeiro de 1942, no intuito de coincidir com o início da vigência do novo Código de Processo Penal. Essa foi uma legislação moderna e democrática, considerada um grande avanço jurídico, do aspecto técnico e estrutural.

O Código de 1940 (Decreto-Lei 2.848) ainda se encontra em vigência ainda hoje, mas, logicamente, sofreu diversas alterações, e assim como no contexto de sua promulgação, atualmente se faz mais do que necessária a urgente elaboração de um novo Código Penal.

Em 1984 foi alterada a Parte Geral da Legislação Penal Brasileira, pela Lei 7.209 (Lei de execução Penal), sendo uma lei especifica para regular a execução das penas e das medidas de segurança.

Em 1998 sua estrutura foi alterada mais uma vez pela Lei 9.714/98 no que diz respeito às penas, agora, restritivas de direitos, sendo incluídos mais dois tipos de penalidades, quais sejam, a prestação pecuniária e a perda de bens e valores.

No Código de 1890 e 1940 não mais houve previsão de pena de morte para o homicídio, sendo aumentado o tempo da pena de prisão, para no máximo 30 anos em 1890, podendo pela lei 12.720 de 2012 ser acrescida em 1/3 até a metade quando se tratar de homicídio praticado por milícia privada, sob o pretexto de prestação de serviço de segurança, ou por algum grupo de extermínio. Do crime de homicídio vieram outros crimes como o infanticídio e o genocídio.

Apesar de a lei 11.106 de 2005 ter excluído o adultério do rol de crimes do Código de 1940, o Código Penal de 1830 e também o de 1890, traziam a punição para quem adulterasse, sendo considerado crime não só para a mulher, mas também para o homem.

Com o passar do tempo e em uma sociedade altamente machista o adultério deixou de ser crime para o homem e conforme as mulheres foram conquistando espaço e exigindo o mesmo tratamento dado àqueles do sexo masculino, não se viu mais como punir a mulher por esta prática que se tornou tão comum.

Já na bíblia é possível perceber que os homens sempre tiveram dificuldade em cumprir com este mandamento, motivo pelo qual a pena foi sendo reduzida até finalmente deixar de existir na prática jurisdicional, para depois ser extirpada do texto Penal.

O Código penal de 1830, já passou a tipificar o crime de furto e de roubo, não sendo possível até os dias de hoje extinguir a punição para este crime, uma vez que os furtos vêm aumentando ao longo da história da humanidade. Talvez, se a pena fosse novamente como nos códigos anteriores, ou seja, fossem mais severas, não existissem tantos furtos e roubos pelo Brasil.

O Código de 1890 assim como o de 1940 também tipificaram o crime de furto e roubo, porém, com menos rigidez nas penalidades, pois nunca mais se determinou pena de prisão com trabalho, o que seria perfeito para este século, evitando o ócio dentro das prisões e o alto custo do sistema prisional do país.

O furto é o ato de subtrair coisa alheia, tornando-se roubo quando se pratica mediante violência ou grave ameaça. Outra vertente do crime de furto é o latrocínio, sendo tipificado como roubo seguido de morte.

Na lei penal este crime é chamado de perjúrio, já sendo previsto desde o Código de 1830. Do desdobramento do perjúrio foram previstos outros crimes referentes a proferir inverdades contra o próximo. O Código de 1830 previa penas para quem cometesse o crime de calunia e injuria, porém, a difamação foi tipificada apenas em 1940.

Da cobiça nascem os outros crimes relacionados até o momento, pois a pessoa primeiramente, no seu íntimo, cobiça a mulher do próximo e depois adultera com ela; cobiça a casa do próximo e depois a furta ou rouba; primeira cobiça a reputação do seu próximo e depois atribui a ele conduta que fará com que a sociedade o repudie; muitas vezes por cobiça se mata o próximo.

Com isso, não restam dúvidas sobre a relação também do décimo mandamento nos tipos previstos no Código Penal. Em alguns mandamentos se nota a relação com o Direito Penal logo de imediato, outros precisam ser analisados de forma mais profunda, observando seus elementos intrínsecos.

Os dez mandamentos, portanto, seriam normas gerais, das quais emanaram tantas outras regras que deveriam ser seguidas a fim de que o povo não sucumbisse.

Comparando a Bíblia ao Direito atual, o Decálogo seria a Constituição Federal e os demais regramentos que se seguem depois dele, são os diferentes ramos do Direito que existem atualmente, os quais devem respeitar os preceitos contidos na Constituição, tratando de forma especifica certos temas.

Aliás, há influência da Bíblia no atual Código de Processo Civil ao inserir a conciliação no âmbito judicial como extrajudicial e, esses métodos alternativos de solução de conflitos por meio de mediação e da arbitragem é um dos objetivos a serem alcançados, deixando à cargo da decisão judicial apenas nos casos extremos.

Mas, a influência do cristianismo não se opera apenas sobre o direito brasileiro, mas também sobre a ética, inclusive a jurídica e que se aplica à realidade brasileira. Frise-se que tal influência não fere a laicidade do Estado brasileiro.

Apontou De Coulanges: "Com o cristianismo, não só o sentimento religioso foi revivescido, mas assumiu também uma expressão mais alta e menos material. Ao passo que antes se haviam criado deuses da alma humana ou das grandes forças físicas, começou-se a conceber Deus como realmente estranho, por essência, à natureza humana, por um lado, ao mundo, por outro."

O cristianismo mudou a nova forma de adoração. Representou a adoração de todos os homens a um Deus único.

 

 

 

Referências

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GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 15/07/2024
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