"O conhecimento é o mais potente dos afetos: somente ele é capaz de induzir o ser humano a modificar sua realidade." Friedrich Nietzsche (1844?1900).
 

Professora Gisele Leite

Diálogos jurídicos & poéticos

Textos


Ovelha negra

Pagã legítima.

 

É uma sincera verdade, toda família ilustre ou modesta existe um membro desajustado, dado realizar pomposamente escândalos. É a chamada ovelha negra ou black lamb, brebis noir ou Shaf schwarze. Em rebanho trata-se de um animal indócil e difícil de lidar. A ovelha, o cordeiro e o anho são símbolos da castidade, inocência e pureza.

 

Lembremos do Cordeiro de Deus, a ovelha pascal, Agnus Dei, animais votivos por excelência aos deuses, são as representações de mansidão, obediência, doçura, em milênios de história religiosa, que tomam as formas rebeldes e duras na imagem popular, significando a exceção condenada, sofrendo a triste prerrogativa da exclusão dentro do âmbito da bondade normal.

 

E, seu prejuízo decorre da presença da cor negra que é tida como devotada aos deuses subterrâneos, a cor dos atrozes abismos, a ideia da Noite, o Erebo, o Caos, as Parcas sem piedade e da negra Miséria.

 

É a cor denunciadora de muito sofrimento, crueldade, paixão interna, desejos materiais e esmagadores. Há ainda a célebre alma negra. O negro destino. As horas negras. E, quando Gerard de Nerval falava no soleil noir de la mélancolie, aduzia à etimologia da palavra melancolia que é a “bílis negra”, ou mélas-kholé.

 

Há muito tempo que o animal negro fora dedicado às forças obscuras da terra, aos deuses telúricos, à grandeza misteriosa da Tellus Mater na Grécia Antiga e Roma, Tétis e Gaea, a mãe de todos os seres e inesgotável nutridora dos viventes.

 

Na obra de Homero, Ilíada, quando Páris desafiou Menelau para singular combate, terminando desta forma a luta entre gregos e troianos, uma cerimônia prévia era imposta: o sacrifício do cordeiro branco ao Sol e de uma ovelha negra à Terra. E, dois arautos, enviados por Heitor, trouxeram os animais e Agamênon mandou Taltíbios buscar as vítimas.

 

E, o próprio Rei Príamo oficiou, degolando as ovelhas com o impiedoso bronze. Então, Tétis, com Hélios e as Erínias, tinha a missão suprema da vigilância, fazendo observar a santidade dos juramentos e a fiel observância da palavra dada, encarregando-se, com seus companheiros, de fazer castigar no Inferno o feio pecado da violação aos compromissos de honra.

 

Por essa razão, Páris e Menelau a homenagearam antes do duelo, prometendo fiel cumprimento do pacto, oferecendo-lhe pela mão do Rei Príamo a ovelha negra, como o penhor do trato formalizado. (1.180 a.C.). Era essencial que ovelha fosse negra, porque negra seria a cor indispensável para qualquer animal destinado à expulsão de todos os males, emissário de pecados, cujo mais ilustre tipo era o famoso Azazel, o bode expiatório de Israel.

 

No rebanho, a ovelha negra é a marcada, logo de antemão, já escolhida para o sacrifício, eleita então para o destino da pelagem à imolação fatal, para remissão de pecados alheios. Pode ser ou não má, pouco importa, pois sua morte a distanciará de todas as companheiras do rebanho.

 

Era a exceção da normalidade da espécie, excluída do comum, habitual, rotineiro ou usual. E, seu caráter de animal sagrado não afastaria a crença de sua finalidade inapelável. Com o advento do Cristianismo, não havia mais sentido da explicação litúrgica mas não desapareceu do vocabulário vulgar, fixou-se como um tabu dos animais marcados, entes de evidente sinal que os diferencia do normal.

 

O Velho Testamento mandava afastar do altar (Levítico, XXI, 18-21) homens e animais (Deuteronômio, XV, 21)portadores de anomalias dentro do culto consuetudinário. A ovelha negra era uma exceção como vítima protocolarmente escolhida. Não havendo a função e resistindo à tradição, estaria marcada para o Mal porque para o Bem não mais era possível, dissipado o cerimonial onde era elemento propiciatório.

 

Enfim, a ovelha negra na visão cristã é uma reminiscência viva da religião condenada do paganismo, destinada à expiação sacra entre gregos e romanos, encarnou a expressão sacrificial ao pecado, ao erro e à desobediência de preceitos divinos.

 

Muito tempo depois, na época do Imperador Teodósio que mandou fechar o Templo das Vestais em Roma, o derradeiro recanto onde os deuses ainda recebiam oferendas, os costumes prolongaram a existência religiosa antiga entre os camponeses, aldeias e campos e, a ovelha negra, muito depois da oficialização cristão, continuou sendo abatida aos defuntos do Olimpo. E, também o bode e a cabra que não tiveram acolhida nas lendas cristãs. Portanto, a ovelha negra é uma sobrevivente pagã legítima.

 

Ao longo da história, o termo “ovelha negra” carregou um significado significativo, simbolizando indivíduos que se desviam das normas sociais e expectativas. Suas origens podem ser rastreadas até a Grécia antiga, onde os pastores costumavam ter rebanhos de ovelhas brancas com a ocasional ovelha negra. Esta expressão não é brasileira nem restrita à língua portuguesa. Vários outros idiomas também a utilizam para designar alguém que destoa de um grupo, assim como uma ovelha da cor preta se diferencia em um rebanho de animais brancos.

 

Como expressão ovelha negra: sendo utilizada para descrever alguém que se comporta de maneira não convencional. No entanto, sua origem tem conotações racistas ao associar pessoas negras a aspectos negativos. Deve ser banido o uso de tal expressão.

 

 

Referências

 

CASCUDO, Luís da Câmara. Coisas que o Povo Diz. São Paulo: Global, 2012.

 

GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 28/06/2024
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