"O conhecimento é o mais potente dos afetos: somente ele é capaz de induzir o ser humano a modificar sua realidade." Friedrich Nietzsche (1844?1900).
 

Professora Gisele Leite

Diálogos jurídicos & poéticos

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Sociedade & Literatura

Sociedade & Literatura

 

Resumo: A obra de Antonio Candido procurou focalizar os vários níveis de correlação entre literatura e sociedade, evitando o ponto de vista mais usual e até paralelístico, mostrando os aspectos sociais, e de outro lado, a sua ocorrência nas obras, para chegam ao melhor conhecimento de efetiva interpenetração e interpretação. A obra sofreu influência da antropologia social inglesa e se aproximou da noção de forma orgânica relativa a cada obra e constituída pela inter-relação dinâmica dos seus elementos, exprimindo-se pela coerência.

 

Palavras-chave: Literatura. Sociologia. Filosofia. Realidade social. História da Literatura.

 

 

 

 

O presente artigo se inspirou na obra de Antonio Candido citada nas referências. De fato, se deseja chamar a atenção sobre uma verdade, nada mais eficaz do que exagerá-la. Também, é perigoso pois pode haver uma reação que a relega à categoria do erro, até que um dia venha a complexa operação de se atingir um ponto objetivo, sem desfigurar a verdade de um lado nem de outro.

 

Afinal, o estudo entre a relação entre a obra e o seu condicionamento social, que a certa altura do século passado chegou a ser encarada como uma chave para compreendê-la. Com o ar de paradoxo que avaliamos o vínculo entre a obra e o ambiente, pois além da análise estética, literária, merece outras considerações como sociológicas, filosóficas, políticas e, principalmente, humanas.

 

Realmente, antes de evidenciar o valor e o significado de uma obra, se exprime ou não a realidade, pode-se chegar a posição contrária, e mostrar que a obra é secundária e que deriva de operações formais em jogo, conferindo-lhe uma peculiaridade que a torna de fato independente de quaisquer condicionamentos, principalmente social, considerado inoperante como elemento para sua intelecção.

 

Antonio Candido leciona que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas, e só a podemos entender fundindo o texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra. O aspecto externo, ou seja, o social importa não tanto como causa nem significado, mas como elemento que influencia a constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno.

 

Cumpre estabelecer distinção de disciplinas, lembrando que o tratamento externo de fatores externos pode ser legítimo quando se refere de sociologia da literatura, indicando que tudo é condicionamento. O elemento sociológico na forma dramática apenas a possibilidade de realização do valor estético, mas não é determinante.

 

Já na crítica literária analisa-se a intimidade das obras e, o que interessa é averiguar que fatores atuam na organização interna, de modo a constituir uma estrutura peculiar.

 

Tomando o fator social, procuraríamos determinar se ele fornece apenas matéria ambiente, tais como costumes, traços dos grupos, ideias, práticas e comportamentos humanos que serve de veicula para conduzir a criação, conforme nos termos de Georg Lukács , ou se apenas possibilitou a realização do valor estético, ou se, além disso é elemento atuante na constituição do que há de essencial da obra (vista como obra de arte) ou se é determinando do valor estético.

 

Vários estudiosos contemporâneos se interessam por fatores sociais e psíquicos, e os enxergam como agentes da estrutura, não como enquadramento nem como matéria registrada pelo trabalho criado além de alinhá-los entre os fatores estéticos. Indo além, procura-se os elementos responsáveis pelo aspecto e significado da obra, formando um todo indissolúvel, como Fausto do Macrocosmos que é tecido num conjunto onde cada coisa vive atua sobre a outra.

 

De fato, o tema repousa sobre condições sociais que é preciso compreender, para finalmente adentrar ao significado da obra. Como exemplo, vejamos o do romance “Senhora”, de José de Alencar. O romance possui certas dimensões sociais evidentes, cuja indicação faz parte de qualquer estudo, histórico ou crítico, referências aos lugares, modas, usos, manifestações de atitudes de grupo ou de classe, expressão de um conceito de vida situado entre o burguês e o patriarcal. A tarefa de rotina e não basta para definir, o caráter sociológico.

 

Enfim ocorre ao mesmo tempo a representação e o desmascaramento de costumes da época, como o casamento por razões financeiras. Ao inventar a situação crua e primitiva do esposo que se vende em contrato, mediante pagamento estipulado, o romancista desnuda as raízes da relação, e faz análise socialmente radical.

 

Para a composição de Senhora, veremos que repousa numa espécie de longa e complicada transação, com cenas de avanço e recuo, diálogos construídos como pressões e concessões, um enredo latente de manobras secretas, no correr da qual a posição dos cônjuges se vai alterando.

 

Enfim, o comportamento do protagonista exprime, em cada episódio, uma obsessão com o ato de compra a que se submeteu e, que as relações humanas se deterioram por causa de motivos econômicos.

 

A heroína, endurecida no desejo de vingança, possibilitada pela posse do dinheiro, inteiriça a alma como se fosse agente duma operação de esmagamento do outro por meio do capital, que o reduz a coisa possuída. E as próprias imagens do estilo manifestam a mineralização da personalidade, tocada pela desumanização capitalista, até que a dialética romântica do amor recupere a sua normalidade convencional. No conjunto, como no pormenor de cada parte, os mesmos princípios estruturais enfermam a matéria.

 

Saímos dos aspectos periféricos da sociologia, ou da história sociologicamente orientada, para chegar a uma interpretação estética que assimilou a dimensão social como fator de arte. Quando isto se dá, ocorre o paradoxo assinalado inicialmente: o externo se torna interno e a crítica deixa de ser sociológica, para ser apenas crítica.

 

O elemento social se torna um dos muitos que interferem na economia do livro, ao lado dos psicológicos, religiosos, linguísticos e outros. Neste nível de análise, em que a estrutura constitui o ponto de referência, as divisões pouco importam, pois ludo se transforma, para o crítico, em fermento orgânico de que resultou a diversidade coesa do todo.

 

Está visto que, segundo esta ordem de ideias, o ângulo sociológico adquire uma validade maior do que tinha. Em compensação, não pode mais ser imposto como critério único, ou mesmo preferencial, pois a importância de cada fator depende do caso a ser analisado.

 

Uma crítica que se queira integral deixará de ser unilateralmente sociológica, psicológica ou linguística, para utilizar livremente os elementos capazes de conduzirem a uma interpretação coerente.

 

Mas nada impede que cada crítico ressalte o elemento da sua preferência, desde que o utilize como componente da estruturação da obra. E nós verificamos que o que a crítica moderna superou não foi a orientação sociológica, sempre possível e legítima, mas o sociologismo crítico, a tendência devoradora de tudo explicar por meio dos fatores sociais.

 

Aliás, na própria sociologia, cuja evolução modificou as suas relações com a crítica. Os estudiosos estão habituados a pensar, neste tópico, segundo posições estabelecidas no século XIX, quando ela estava na fase das grandes generalizações sistemáticas, que levavam a conceber um condicionamento global da obra, da personalidade literária ou dos conjuntos de obras pelos sistemas sociais, principalmente do ângulo histórico.

 

Todavia, a marcha da pesquisa e da teoria levou a um senso mais agudo das relações entre o traço e o contexto, permitindo desviar a atenção para o aspecto estrutural e funcional de cada unidade considerada.

 

Em ponto de vista sociológico nos estudos literários deveria significar coisa bastante diversa do que foi há cinquenta anos. A mudança nos dois campos provocará certamente um refluxo sobre a sociologia da literatura, que não apenas tenderá à pesquisa concreta (como vem sugerida, por exemplo, no livro de Robert Escarpit, La Sociologie de la Littérature), mas deixará de lado as ambiciosas explicações causais de sabor oitocentista.

 

O perigo, tanto na sociologia quanto na crítica, está em que o pendor pela análise oblitere a verdade básica, isto é, que a precedência lógica e empírica pertence ao todo, embora apreendido por uma referência constante à função das partes.

 

Outro perigo é que a preocupação do estudioso com a integridade e a autonomia da obra exacerbe, além dos limites cabíveis, o senso da função interna dos elementos, em detrimento dos aspectos históricos, — dimensão essencial para apreender o sentido do objeto estudado.

 

Convém evitar novos dogmatismos, lembrando sempre que a crítica atual, por mais interessada que esteja nos aspectos formais, não pode dispensar nem menosprezar disciplinas independentes como a sociologia da literatura e a história literária sociologicamente orientada, bem como toda a gama de estudos aplicados à investigação de aspectos sociais das obras, — frequentemente com finalidade não literária.

 

Pode-se tentar uma enumeração das modalidades mais comuns de estudos de tipo sociológico em literatura, feitos conforme critérios mais ou menos tradicionais e oscilando entre a sociologia, a história e a crítica de conteúdo. Um primeiro tipo seria formado por trabalhos que procuram relacionar o conjunto de uma literatura, um período, um gênero, com as condições sociais.

 

É o método tradicional, esboçado no século XVIII, que encontrou porventura em Taine o maior representante e foi tentado entre nós por Sílvio Romero. A sua maior virtude consiste no esforço de discernir uma ordem geral, um arranjo, que facilita o entendimento das sequências históricas e traça o panorama das épocas.

 

O seu defeito está na dificuldade de mostrar efetivamente, nesta escala, a ligação entre as condições sociais e as obras. Daí quase sempre, como resultado decepcionante, uma composição paralela, em que o estudioso enumera os fatores, analisa as condições políticas, econômicas, e em seguida cogita das obras segundo as suas intuições ou os seus preconceitos herdados, incapaz de vincular as duas ordens de realidade. Isto é tanto mais grave quanto, para a maioria dos estudiosos desta linha, há entre ambas um nexo causai de tipo determinista.

 

É o que se pode observar não apenas em obras de menor alcance intelectual, mas em trabalhos de rigorosa informação e bom nível, como Drama and Society in the Age of Johnson, de L. C. Knights.

 

Alguns estudos são decepcionantes quando se deixa de relacionar com a sociedade o conjunto de uma literatura, ou um gênero, realizando paralelismos na interpretação de obras e escritores apartados, que servem para apontar problemas sociais, cuja exposição não precisaria desta mediação duvidosa, como é o caso do livro de autoria de Heitor Ferreira Lima sobre Castro Alves.

 

Segundo tipo poderia ser formado pelos estudos que procuram verificar a medida em que as obras espelham ou representam a sociedade, descrevendo os seus vários aspectos.

 

Trata-se de modalidade mais simples e mais comum, consistindo basicamente em estabelecer correlações entre os aspectos reais e os que aparecem no livro. Quando se cogita sobre crítica sociológica, ou a sociologia da literatura, cogita-se no arquétipo no La Fontaine et ses Fables, de Taine. Bom estudo é o de W. F. Bruford sobre a fidelidade com que a sociedade russa do tempo de Checov é representada nas suas peças (Chekhov and his Rússia).

 

No estudo da relação entre a obra e o público, — isto é, o seu destino, a sua aceitação, a ação recíproca de ambos. Exemplo conhecido é o ensaio de Lewin Schücking, no Handwörterbuch der Soziologie, de Vierkandt, Sociologia do Gosto Literário, mais tarde posto em volume e traduzido em várias línguas. Apesar do renome, não passa de uma indicação das pesquisas a serem feitas neste sentido.

 

E em compensação mais ancorados nos fatos, como Le Public et la Vie Littéraire à Rome, de A. M. Guillemin. Fiction and the Reading Public, de Q. D. Leavis, explora a função da literatura junto aos leitores.

 

Quando o autor aborda o problema histórico da aceitação pública através do tempo, surge uma variante geralmente menos sociológica e mais baseada nos levantamentos tradicionais da erudição; é o que se observa igualmente em estudos similares de literatura comparada, como o Byron et le Romantisme Français, de Edmond Esteve.

 

Quase exclusivamente dentro da sociologia se situa o quarto tipo, que estuda a posição e a função social do escritor, procurando relacionar a sua posição com a natureza da sua produção e ambas com a organização da sociedade.

 

No terreno genérico, temos uma série de obras fora do âmbito literário, como a de Geiger sobre o estatuto e a tarefa do intelectual (Aufgabe und Stellung der Intelligenz in der Gesellschaft), ou as importantes considerações da sociologia do conhecimento, em particular de Mannheim.

 

É exemplar, no campo histórico, o espírito com que Henri Brunschvicg utiliza este ângulo para analisar a situação e o papel dos intelectuais na formação da sociedade alemã moderna (La Crise de L’'État Prussien à la Pin du XVII Siècle). No campo literário, é conhecida a monografia de Alexandre Beljame sobre o homem de letras na Inglaterra setecentista.

 

O quinto tipo, que investiga a função política das obras e dos autores, em geral com intuito ideológico marcado. Nos nossos dias têm tido a preferência dos marxistas, — compreendendo desde as formulações primárias da crítica.

 

Na Itália, além dos fragmentos de Gramsci, há uma floração significativa de obras deste tipo, com uma liberdade pouco frequente nos autores de orientação marxista em outros países, como é o caso de Galvano delia Volpe.

 

Um sexto tipo, voltado para a investigação hipotética das origens, seja da literatura em geral, seja de determinados gêneros. Estão nesta chave certas obras clássicas, como a de Gunmere sobre as raízes da poesia, a de Bücher sobre a correlação entre o trabalho e o ritmo poético, ou a investigação marxista de Christopher Caudwell sobre a natureza e as origens da poesia.

 

Muito mais substancial é o estudo de George Thomson sobre as raízes sociais da tragédia grega, norteado igualmente pelas diretrizes do marxismo (Aeschylus and Athens).

 

Frise-se que todas as modalidades retromencionadas e suas numerosas variantes são legítimas principalmente quando bem conduzidas, quando se nota o deslocamento de interesse da obra para os elementos sociais que formam a sua matéria, para as circunstâncias do meio que influíram na sua elaboração, ou para sua função na sociedade.

 

Tais aspectos são principais para o historiador e sociólogo, mas podem até ser secundários, e mesmo até inúteis para o crítico, interessado em interpretar a obra. A literatura como fenômeno da civilização depende, para se caracterizar, do entrelaçamento de diversos fatores sociais.

 

Em muitos críticos de orientação sociológica já se nota o esforço de mostrar essa interiorização dos dados de natureza social, tornados núcleos de elaboração estética. O próprio Lukács, quando não incorre em certas limitações do sectarismo político, indica de maneira convincente que, por exemplo, I Promessi Sposi, de Manzoni, é um supremo romance histórico porque a construção literária exprime uma visão coerente da sociedade descrita (Der Historische lioman).

 

O fator social é invocado para explicar a estrutura da obra e o seu teor de ideias, fornecendo elementos para determinar a sua validade e o seu efeito sobre nós. Num plano menos explícito e mais sutil, mencionemos a tentativa de Erich Auerbach, fundindo os processos estilísticos com os métodos histórico-sociológicos para investigar os fatos da literatura (Mimesis — Dargestellte Wirklichkeit in der Abendländischen Literatur).

 

Foi a propósito de tentativas semelhantes que Otto Maria Carpeaux aludiu a um método sintético, a que chamou “estilístico-sociológico”, na Introdução da sua magnífica História da literatura ocidental.

 

O referido método, cujo aperfeiçoamento será decerto uma das tarefas desta segunda metade do século, no campo dos estudos literários, permitirá levar o ponto de vista sintético à intimidade da interpretação, desfazendo a dicotomia tradicional entre fatores externos e internos, que ainda serve atualmente para suprir a carência de critérios adequados.

 

Provavelmente, que os elementos de ordem social serão filtrados através de uma concepção estética e trazidos ao nível da fatura, para entender a singularidade e a autonomia da obra.

 

E, isto será o avesso do que se observava na crítica determinista, contra a qual se rebelaram justamente muitos críticos deste século, pois ela anulava a individualidade da obra, integrando-a numa visão demasiado ampla e genérica dos elementos sociais, como se vê no seu exemplo maior: o brilhante esquematismo de Taine, ao estudar a literatura inglesa.

 

Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, é justamente esta concepção da obra como organismo que permite, no seu estudo, levar em conta e variar o jogo dos fatores que a condicionam e motivam; pois quando é interpretado como elemento de estrutura, cada fator se torna componente essencial do caso em foco, não podendo a sua legitimidade ser contestada nem glorificada a priori.

 

Não se pretende expor uma teoria sociológica da arte e da literatura, nem fazer contribuição original, mas apenas focalizar os aspectos sociais que envolvem a vida artística e literária nos seus diferentes momentos.

 

Desde século XIX aos nossos atuais dias, este gênero de estudos tem permanecido insatisfatório, ou ao menos, incompleto, em face da falta de um sistema coerente de referência, ou seja, um conjunto de formulações e conceitos que permitam limitar objetivamente o campo de análise e escapar, tanto quanto possível ao arbítrio dos pontos de vista.

 

De fato, os sociólogos, psicólogos e outros estudiosos manifestam os intuitos imperialistas, ocorrendo momentos em que julgaram poder explicar a totalidade do fenômeno artístico. E, assim, os problemas que desafiavam gerações de filósofos e críticos pareceram de repente facilmente solúveis, graças ao simplismo que não raro acarretou o descrédito das orientações sociológicas e psicológicas como sendo instrumentos de interpretação do fato literário.

 

Sobre as relações entre o artista e o meio, afinal, o poeta não é uma resultante, nem mesmo simples foco refletor, pois possui seu próprio espelho, a sua mônada individual e única. Tem o seu núcleo e o seu órgão, através do qual tudo o que passa se transforma, porque ele combina e cria ao devolver à realidade.

 

Como primeiro cuidado é o delimitar os campos e fazer sentir que a sociologia não passa, neste caso, de disciplina auxiliar, não pretende explicar o fenômeno literário ou artístico, mas apenas esclarecer alguns dos seus aspectos. Em grande número de fatos dessa natureza, a análise sociológica é ineficaz e, só desorientaria a interpretação.

 

Quanto aos outros, pode ser considerada útil, para um terceiro grupo, finalmente, é indispensável. Eis que surge o seguinte questionamento: qual a influência exercida pelo meio social sobre a obra de arte? Deverá ser imediatamente completada por outro questionamento: qual a influência exercida pela obra de arte sobre o meio? Assim nos aproximamos da interpretação dialética, superando o mecanicismo das que geralmente predominam.

 

Algumas das tendências mais acesas da estética moderna estão empenhadas em estudar como obra de arte plasma o meio, cria o seu público e as suas vias de penetração, agindo em sentido inverso ao das influências externas.

 

Aliás, esta preocupação é palpável e visível na obra estética de Malraux e notória em trabalhos de Étienne Souriau e Mikel Dufrenne. Há, neste sentido, duas respostas tradicionais, ainda fecundas conforme o caso, que devem todavia ser afastadas numa investigação como esta.

 

A primeira consiste em estudar em que medida a arte é expressão da sociedade, a segundo, em que medida é social, isto é, interessada nos problemas sociais.

 

Afirmar que esta exprime a sociedade constitui hoje verdadeiro truísmo; mas houve tempo em que foi novidade e representou algo historicamente considerável. No que tange mais à literatura, isto se esboçou no século XVIII, quando filósofos como Vico sentiram a sua correlação com as civilizações, Voltaire, com as instituições, Herder, com os povos.

Talvez tenha sido Madame Staél , na França, quem primeiro formulou e esbolou sistematicamente a verdade que a literatura é também produto social, exprimindo condições de cada civilização em que ocorre.

 

Durante o século XIX não se foi além desta verificação geral, adequada mais aos panoramas do que aos casos concretos, mesmo quando Taine introduziu o conceito mais flexível e rico de momento, para completar o meio e a raça dos tratadistas anteriores.

 

Chegou-se à posição criticamente pouco fecunda de avaliar em que medida certa forma de arte ou certa obra correspondem à realidade. E, pulularam análises superficiais, que tentavam explicar a arte na medida em que ela descreve os modos de vida e interesses de tal classe ou grupo, verdade epidérmica, pouca satisfatória como interpretação.

 

Um exemplo típico é o livro sobre Martins Pena, onde Sílvio Romero se limitou a descrever os tipos criados pelo teatrólogo e indicar que espelham os da vida corrente.

 

A segunda tendência é a de analisar o conteúdo social das obras, geralmente, com base em motivos de ordem moral ou política, redundando praticamente em afirmar ou deixar implícito que a arte deve ter um conteúdo deste tipo e, que esta é a medida do seu valor.

 

Como se vê, é mais afirmação de princípios do que hipótese de investigação, representa o retorno, em vestes de sociologia ou filosofia do século XIX, da velha tendência sectária que levava Bossuet a proscrever o teatro e, hoje irmana marxistas sectários e católicos rígidos na condenação de obras que não correspondam aos valores das suas ideologias respectivas.

 

Talvez a formulação mais famosa nesta ordem de ideias e, sem dúvida, a mais coerente no seu radicalismo, seja o estudo em que Tolstoi julga, sem apelo, as obras que não lhe parecem transmitir uma mensagem moral adequada ao anarquismo místico da sua velhice.

 

Enfim, para o sociólogo moderno, ambas as tendências tiveram a virtude de mostrar que a arte é social nos dois sentidos: depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na obra em diversos graus de sublimação e, produzi sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção do mundo, ou reforçando neles o sentimento de valores sociais. E, decorre da própria natureza da obra e independe do grau de consciência que possam ter a respeito os artistas e os receptores de arte.

 

É preciso investigar as influências concretas exercidas pelos fatores socioculturais sendo difícil discriminá-los, na sua quantidade e variedade, mas pode-se ser os mais decisivos por se ligarem à estrutura social, aos valores e ideologias, às técnicas de comunicação.

 

O grau e a maneira porque influem estes três grupos de fatores variam conforme o aspecto considerado no processo artístico. Desta forma, os primeiros se manifestam mais visivelmente na definição da posição social do artista ou na configuração de grupos receptores; os segundos, na forma e conteúdo da obra; os terceiros, na sua fatura e transmissão.

 

Estes marcam, em todo o caso, os quatro momentos da produção, pois: a) o artista, sob o impulso de uma necessidade interior, orienta-o segundo os padrões da sua época, b) escolhe certos temas, c) usa certas formas e d) a síntese resultante age sobre o meio.

 

Como se vê, não convém separar a repercussão da obra da sua feitura, pois, sociologicamente ao menos, ela só está acabada no momento em que repercute e atua, porque, sociologicamente, a arte é um sistema simbólico de comunicação inter-humana, e como tal interessa ao sociólogo.

 

Ora, todo processo de comunicação pressupõe um comunicante, no caso o artista; um comunicado, ou seja, a obra; um comunicando, que é o público a que se dirige; graças a isso define-se o quarto elemento do processo, isto é, o seu efeito.

 

Aliás, este caráter não deve obscurecer o fato de a arte ser, eminentemente, comunicação expressiva, expressão de realidades profundamente erradicadas no artista, mais que transmissão de noções e conceitos. Neste sentido, depende essencialmente da intuição, tanto na fase criadora quanto na fase receptiva, dando impressão a alguns, como Croce, que exprime apenas traços irredutíveis da personalidade, desvinculados, no que possuem de essencial, de quaisquer condicionantes externos.

 

Embora um sociólogo não possa aceitar as consequências teóricas da sua estética idealista, o fato é que ela tem o mérito de assinalar este aspecto intuitivo e expressivo da arte, vendo a poesia, por exemplo, como um tipo de linguagem, que manifesta o seu conteúdo na medida em que é forma, isto é, no momento em que se define a expressão. A palavra seria pois, ao mesmo tempo, forma e conteúdo, e neste sentido a estética não se separa da linguística.

 

Mas, justamente porque é uma comunicação expressiva, a arte pressupõe algo diferente e mais amplo do que as vivências do artista. Estas seriam nela tudo, se fosse possível o solipsismo, mas na medida em que o artista recorre ao arsenal comum da civilização para os temas e formas da obra e, na medida em que ambos se moldam sempre ao público, atual ou prefigurado (como alguém para quem se exprime algo), é impossível deixar de incluir na sua explicação todos os elementos do processo comunicativo, que é integrador e bitransitivo por excelência.

 

O que leva a investigar a maneira por que são condicionados socialmente os referidos elementos, que são também os três momentos indissoluvelmente ligados da produção e, se traduzem, no caso da comunicação artística, como autor, obra, público.

 

A atuação dos fatores sociais varia conforme a arte considerada e a orientação geral a que obedecem às obras. Estas, do aspecto sociológico podem dividir-se em dois grupos, dando lugar ao chamaríamos dois tipos de arte, sobretudo de literatura, e que sugiro para fixar as ideias em vista da discussão subsequente, não com o intuito de estabelecer uma distinção categórica: a arte de agregação e arte de segregação.

 

A primeira se inspira principalmente na experiência coletiva e visa a meios comunicativos acessíveis. Neste sentido, procura, incorporar-se a um sistema simbólico vigente, utilizando o que já está estabelecido como forma de expressão de determinada sociedade.

 

A segunda se preocupa em renovar o sistema simbólico, criar recursos novos expressivos e, para isto, dirige-se a um número ao menos inicialmente reduzido de receptores, que se destacam, enquanto tais, da sociedade.

A objeção imediata é que, na verdade, não se trata de dois tipos, sendo, como são, aspectos constantes de toda obra, ocorrendo em proporção variável segundo o jogo dialético entre a expressão grupai e as características individuais do artista.

 

Se considerarmos apenas a predominância de um ou de outro, a distinção pode ser mantida, o que nos interessa aqui sobremaneira, pois foi feita com o pensamento em dois fenômenos sociais muito gerais e importantes: a integração e a diferenciação. A integração é o conjunto de fatores que tendem a acentuar no indivíduo ou no grupo a participação nos valores comuns da sociedade.

 

A diferenciação, ao contrário, é o conjunto dos que tendem a acentuar as peculiaridades, as diferenças existentes em uns e outros. São processos complementares, de que depende a socialização do homem; a arte, igualmente, só pode sobreviver equilibrando, à sua maneira, as duas tendências referidas.

 

Se encararmos os fatores presentes em bloco na estrutura social, nos valores e nas técnicas de comunicação, veremos logo a necessidade de particularizar o seu campo de atuação.

 

Observemos os três elementos fundamentais da comunicação artística — autor, obra, público — e vejamos sucessivamente como a sociedade define a posição e o papel do artista; como a obra depende dos recursos técnicos para incorporar os valores propostos; como se configuram os públicos.

 

Tudo isso interessa na medida em que esclarecer a produção artística, e, embora nos ocupemos aqui principalmente com um dos sentidos da relação (sociedade-arte), faremos as referências necessárias para que se perceba a importância do outro (arte-sociedade).

 

Com efeito, a atividade do artista estimula a diferenciação de grupos; a criação de obras modifica os recursos de comunicação expressiva; as obras delimitam e organizam o público. Vendo os problemas sob esta dupla perspectiva, percebe-se o movimento dialético que engloba a arte e a sociedade num vasto sistema solidário de influências recíprocas.

 

Referências

 

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9ª edição. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.

 

GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 07/06/2024
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