Delação no processo penal alemão
Resumo: O cenário alemão contemporâneo referente aos acordos entre acusação e defesa para imposição antecipada de uma sanção penal. O que permite observar curioso transcorrer do desenvolvimento da barganha no campo jurídico-penal fundamentalmente pautado respeito à legalidade. O avanço da justiça negocial, inicialmente realizada pela atuação prática dos atores da persecução penal, sem qualquer autorização legal, até a recente regulamentação e declaração de constitucionalidade.
Palavras-chave: Processo Penal. Alemanha. barganha judicial. plea-bargaining. Acordo de não persecução penal[1].
Os acordos no processo penal alemão denunciam progresso que foi da barganha da informalidade até a regulamentação normativa e, que consagrou a delação premiada até sua regulamentação legal.
Afirma-se que até a década de setenta do século passado não havia qualquer vestígio de instituto semelhante à barganha no processo penal alemão, o que é justificado pelo afastamento entre os atores processuais, comum à prática judiciária da época.
Embora existam motivos para o questionamento de tal declaração, pode-se dizer que o desvelamento da ocorrência de acordos informais se deu em 1982 com a publicação de um artigo anônimo, momento em que se iniciou o intenso debate doutrinário acerca desse fenômeno.
Apesar de que a confissão consentida por meio da barganha não acarretasse a extinção imediata do processo, havia uma expressiva aceleração do procedimento, ao passo que, conforme a posição majoritária, tornava desnecessária a produção de mais provas incriminatórias se a descrição fosse detalhada e plausível. Assim, ainda havia um "julgamento", embora geralmente se concretizasse somente como uma homologação formal.
Em maio de 2009 surgiu a Lei de Regulamentação dos Acordos no Processo Penal, a qual fundamentalmente adicionou um parágrafo (§ 257c) ao Código de Processo Penal alemão (StPO), regulando a realização de barganhas de modo semelhante ao determinado pelo BGH nas referidas decisões paradigmáticas.
Conforme o texto aprovado, a Corte poderá, nos casos adequados, pactuar com os participantes do processo acerca de seu desenvolvimento e de seu resultado, fixando limites mínimos e máximos à sanção penal (proibindo, assim, os acordos sobre imputações charge bargaining), embora se mantenha o dever do magistrado de buscar de ofício a verdade nas investigações.
A confissão do réu é pressuposto à barganha e sua veracidade deve ser analisada, visto que, em caso de dúvida, a Corte deverá rejeitar o acordo.
Em casos excepcionais, os limites fixados no acordo podem não ser respeitados na sentença, se o juiz considerar que não refletem a gravidade do delito e a culpabilidade do acusado, ou se as atitudes do réu no decorrer do processo não se adequarem às previsões.69
Diversas são as objeções apontadas à barganha e aos novos dispositivos, tanto em relação ao rompimento das premissas do processo penal alemão, quanto da primazia de interesses economicistas às necessidades garantistas de limitação ao poder punitivo estatal.
Além disso, a regulamentação é criticada em razão do excessivo poder discricionário fornecido aos julgadores para incentivar o acordo (pressionar e ameaçar os acusados) e, posteriormente, optar por cumprir ou não as promessas realizadas (limites da sanção penal definidos).
Ademais, parte da doutrina germânica se mostra cética à concretização dos limites impostos pela nova legislação, ao passo que, se a barganha surgiu de modo informal, não há que se acreditar em uma possível (e repentina) vinculação da atuação dos atores do sistema criminal às previsões legais.
Nesse sentido, estudo empírico realizado entre juízes alemães em 2011 apontou que 18% do total de casos em Cortes locais e 23% em Tribunais distritais eram resolvidos por meio de acordos, quantidade expressiva tendo-se em mente que são desconsiderados os casos de oportunidade em termos amplos e aqueles em que houve confissão em sede policial; mas, além disso, 59% dos julgadores admitiram que realizam as negociações de modo informal, sem atender aos requisitos determinados pelo recente regramento legal.
Em recente manifestação de julgamento datado de março de 2013, o Tribunal Federal Constitucional alemão (BVerfG) analisou a constitucionalidade da nova legislação de 2009 acerca dos acordos no processo penal.
Conforme a doutrina, diante do papel fundamental desempenhado pela barganha no sistema criminal germânico, uma declaração de inconstitucionalidade era inviável, de modo que o BVerfG focou seus esforços na regulamentação de requisitos e de limitações que condicionem a validade dos pactos, afirmando a necessidade de respeito aos princípios da busca da verdade, da publicidade e da proporcionalidade das punições.
O referido caso abordou três reclamações realizadas por distintos acusados condenados por meio de acordos que não atenderam aos pressupostos definidos no § 257c do StPO, sendo, portanto, inconstitucionais por, no caso concreto, não terem informado ao réu da possibilidade de não respeito da Corte às limitações da pena acordadas, não verificarem a adequação da confissão aos fatos e expandirem o objeto da barganha para além das consequências jurídicas.
Embora tenha aceito as impugnações nos casos concretos, o BVerfG atestou a constitucionalidade em abstrato da reforma de 2009, visto que, se atendidas na prática, as limitações previstas respeitam as garantias essenciais aos acusados e as premissas do processo penal germânico.
Ademais, o judiciário requisitou a contínua verificação da atenção às determinações legais e, se necessário, incitou o legislativo a eventuais mudanças visando à concretização das limitações.
Além disso, certos requisitos para a legalidade da barganha foram ressaltados: 1) a confissão precisa necessariamente ser verificada por provas complementares, de modo que por si só não pode fundamentar um veredicto condenatório; 2) o acusado deve ser avisado de seus direitos e das consequências do acordo; e, 3) as negociações devem ser descritas publicamente e registradas nos autos do processo.
Contudo, aponta-se que importantes aporias não foram analisadas, como certas incompatibilidades dos acordos com o sistema criminal alemão e as consequências práticas da legislação.
Diante do exposto, percebe-se que a barganha se desenvolveu no campo jurídico-penal alemão de modo a paulatinamente se consolidar na prática judiciária e dominar as relações entre os atores do sistema, impregnando suas posturas e condutas na instrumentalização do poder punitivo estatal. Segundo Thomas Weigend, semelhantemente à descrição histórica estadunidense.
Os acordos se implementaram no processo penal germânico passando por fases de sigilo e ilusória negação, de reconhecimento em cortes inferiores, de debate e crítica doutrinária, até sua aceitação jurisprudencial em razão de uma suposta necessidade prática, juntamente com uma pretensa tentativa de limitação a partir da definição de requisitos legais, que hipocritamente legitimam tal instituto diante das imposições constitucionais e convencionais.
Mesmo que haja problemas pragmáticos reais devido à evidente sobrecarga do sistema jurídico alemão, a tendência de negociar justiça ameaça o sistema penal como um todo.
No emblemático caso, Bernie Ecclestone resolveu o problema da acusação penal a ele imputada da mesma forma que a criou: pagando muito dinheiro para um funcionário público tomar uma decisão favorável a ele. Assim, evidencia-se que o sistema penal corre sério risco de perder essencialmente a sua coerência axiológica.
A partir do exemplo alemão dos acordos no processo penal, pode-se afirmar que o fortalecimento e a generalização da barganha como mecanismo de imposição antecipada de uma sanção penal demonstram a primazia da atuação dos atores do campo jurídico-penal no incentivo à justiça negociada.
Percebe-se que o mecanismo consensual adere integralmente aos interesses de juízes e promotores, ou seja, aqueles que detêm o poder na persecução penal, e, portanto, se solidifica na prática jurídica ainda que acarretando incontornáveis violações a premissas do processo penal de um Estado Democrático de Direito.
O exemplo alemão, onde os acordos surgiram no sistema jurídico de modo informal, em completa desatenção às imposições normativas, representa panorama que confirma a descrição de George Fisher do "triunfo da barganha", em que esse instituto se expande a partir do poder daqueles que são beneficiados por suas consequências, até um ponto que, conforme George Fisher, adquire poderes próprios e influencia todo o sistema de justiça criminal, fortalecendo aquilo e aqueles que a defendem e fragilizando qualquer tentativa de redução em sua atuação.
Assim, trata-se de "uma construção dos atores processuais, algo criado por eles e para satisfazer antes de tudo interesses deles"
A Alemanha conseguiu, por um certo período, reduzir as taxas de criminalidade com a devida adoção de medidas substitutivas à privação da liberdade, tem seu início centrado na década de oitenta, terminando em 1990. Pois, com a queda do muro de Berlim e a reunificação da Alemanha marca o aumento das taxas de criminalidade, até então estabilizadas por uma década.
Entre os fatores para a mudança foi o aumento da taxa de delinquência entre a população jovem, pois até então, eram comunistas e, agora vislumbram-se nos crimes contra o patrimônio, uma viável alternativa ante a ausência de renda e a necessidade de atender a satisfação do ímpeto capitalista.
Antes da unificação, a Alemanha empreendeu um substancial processo de substituição da privação da liberdade através da colocação da possibilidade de sanções, tais como, a suspensão condicional e serviços comunitários, modalidades essas que foram institucionalizadas na década de 70. Assim, entre 1982 e 1990 as taxas de criminalidade juvenil reduziram em 50%, enquanto que a população adulta apresentou uma variação negativa da ordem de 15%.
Os estudos realizados, na Alemanha, ao longo da década de 80, demonstraram que o envio de jovens a prisão, ainda que por curtos períodos de tempo, aumentavam substancialmente as chances de ele reincidir, algo que não ocorria quando o mesmo delito era punido com uma sanção substitutiva da privação da liberdade.
Constatou-se, ainda, que a ausência de trabalho durante a privação da liberdade e a dificuldade de encontrar uma ocupação formal no período pós-cárcere eram os principais determinantes do retorno ao crime.
Assim, as sanções substitutivas adotadas na Alemanha procuraram reverter exatamente esses fatores negativos, imputando ao criminoso trabalho e formação suficiente para conseguir uma colocação no mercado formal de trabalho.
A necessidade de as sanções alternativas procurarem ocupar o criminoso com um ofício ou uma contratação formal foram confirmadas por uma pesquisa acerca do perfil criminal do ofensor.
A pena de prestação de serviços comunitários deveria permitir ao condenado auferir renda suficiente para o ressarcimento da vítima e ainda profissionalização adequada a sua inserção no mercado formal de trabalho, o qual se prolongaria no período pós condenação.
Dessa forma, foram instituídas agências responsáveis pela alocação do ofensor conforme sua capacidade intelectual e, ainda, seu encaminhamento a cursos profissionalizantes, os quais se constituiriam enquanto parte da punição.
A postura adotada pelo judiciário à aplicação de medidas substitutivas a privação da liberdade, essas são prioritariamente concedidas a jovens infratores.
Os juízes acreditam que a prestação de serviços à comunidade é a punição mais eficaz aos delinquentes dessa idade, na medida em que imputa, a esses infratores, a necessidade e importância do trabalho como meio de alcançar não apenas os propósitos do capitalismo, mas também os da cidadania e da liberdade que norteia a social-democracia.
Alguns juízes alemães acreditam que a privação da liberdade é mais efetiva para os adultos criminosos. Isso porque o cárcere é meio mais propedêutico a efetivar o propósito de prevenção geral da pena, principalmente, dentre os mais jovens.
Nesse caso, a determinação da pena substitutiva estará intimamente relacionada as circunstâncias do crime e ao clamor público que ele suscita, em detrimento da personalidade do agente.
A variável inadimplência na prestação de serviços à comunidade deve ser entendida como a omissão do sentenciado em realizar o determinado na sanção penal transitada em julgado.
No que se refere a sua magnitude, a taxa é extremamente baixa em todas as faixas etárias, na medida em que existem trabalhadores sociais especialmente encarregados de acompanhar os punidos com essa modalidade de sanção, adaptando-os às tarefas e às entidades cadastradas, além de remeter relatórios acerca da evolução do comportamento do ofensor ao longo do cumprimento da pena.
No que se refere a reincidência dos condenados à sanção de prestação de serviços à comunidade, o índice encontra-se em torno de 23,9% o qual é muito próximo dos estimados para o Brasil. Entretanto, na Alemanha, observa-se uma queda vertiginosa no número de crimes contra o patrimônio, os quais são punidos com a substituição do cárcere, algo que não ocorre no nosso país.
A eficiência do sistema de justiça criminal germânico no que se refere a determinação, modalidade de cumprimento e fiscalização da pena de prestação de serviços à comunidade reflete em uma queda da taxa de crimes de menor potencial ofensivo, bem como redução do encarceramento de modo geral.
Isso porque o judiciário procura sensibilizar a sociedade, imputando-a a responsabilidade pela punição e recuperação do criminoso, além de desenvolver um trabalho específico com criminólogos, os quais orientam todo o processo de execução da pena, a partir de relatórios sobre o perfil do sentenciado e impactos da sanção substituta sobre a personalidade do mesmo. no Brasil.
Ao determinar uma sanção substitutiva a privação da liberdade, o juiz visa não apenas a prevenção geral e especial, mas também a retribuição tal como ocorre no direito brasileiro.
O magistrado pretende alcançar uma melhor ordem pública reduzindo os efeitos maléficos do crime e do encarceramento sob a sociedade e o criminoso, além de levar os desempregados a uma ocupação formal no mercado de trabalho, indispensável a eficiência da economia capitalista, objetivos esses que deveriam constituir-se primórdios não apenas da política penal alemã, mas mundial.
Desde 1943 a vítima de um delito tinha a possibilidade de apresentar pretensões no âmbito do direito civil, por meio de um processo de responsabilidade civil unido a um processo penal (Adhãsionsverfahren).
Além disso, as reparações de perdas e danos estiveram e estão disponíveis para a vítima no âmbito do direito civil desde a entrada em vigor do Código Civil (Bürgerliches Gesetzbuch – BGB) no início do século XX. Mas, a vinculação com a ação penal objetiva simplificar e agilizar o reconhecimento judicial dessas indenizações por danos e perdas ou de reparação (Wiedergutmachung).
Chama a atenção que esse instituto jurídico não desempenhou nenhum papel maior. Como consequência das transformações ocorridas na conscientização da sociedade acerca da responsabilidade na persecução penal, os direitos das vítimas que são dignos de tutela foram modificados desde os anos 80.
Em dezembro de 1986 entrou em vigor a Lei de Proteção das Vítimas. Ela atribui à vítima de um delito na fase de instrução do processo penal e no curso da própria ação penal a posição de parte autônoma no procedimento.
Por intermédio de um advogado, a vítima tem o direito ao exame dos autos, pode apresentar requerimentos processuais, etc. Uma reparação de danos sofridos ainda não está prevista nessa lei.
Em 1992, com a promulgação da Lei de Combate ao Crime Organizado, entraram em vigor prescrições jurídicas destinadas à proteção de testemunhas de delitos. Assim a identidade da testemunha pode ser protegida isentando-a de prestar informações referentes à sua pessoa ou à sua residência e ao seu domicílio na audiência principal, quando se deve temer que tais informações ameaçam a sua vida, a sua incolumidade física ou a sua liberdade.
A Lei de Combate à Criminalidade de 1994 introduziu pela primeira vez no direito penal (sobre delitos cometidos por adultos) prescrições referentes à compensação de danos, que se fundamentam em ideias modernas acerca da compensação entre autor e vítima e da reparação de danos por parte do autor.
E posteriormente a sociedade alemã deu outro passo decisivo em 1998, quando o Parlamento Federal promulgou a Lei da Garantia das Pretensões Juscivilistas das Vítimas de Delitos.
Essa lei entrou em vigor em 8 de maio de 1998. Autores de delitos tinham extraído, em grau crescente, vantagens comerciais por meio da imprensa sensacionalista, auferindo assim receitas consideráveis sem que a vítima ou as vítimas tivessem obtido assim uma indenização.
A sociedade percebeu como imoral e injusta essa situação na qual o autor ainda extrai vantagens financeiras do seu delito, ao passo que a vítima permanece sem indenização. Por isso a referida lei prevê que a vítima tenha um direito legal à penhora dos créditos do autor resultantes de contratos de publicação.
No final do ano de 1998, os suportes fáticos da reparação de danos e perdas foram completados por meio de prescrições abrangentes de proteção em benefício das testemunhas de delitos (Lei de Proteção das Testemunhas de 1 de dezembro de 1998).
Na audiência principal, as testemunhas especialmente necessitadas de proteção, assim sobretudo aquelas com menos de 16 anos, que foram feridas no delito, mas também pessoas doentes, de saúde frágil, devem ser protegidas do confronto direto com o autor (e.g., vítimas menores de delitos sexuais). Por isso, o tribunal tem agora a possibilidade de interrogar testemunhas que se encontram “em outro lugar” (isto é, não na sala do tribunal).
Nesse procedimento todas as partes do processo, inclusive o tribunal, permanecem na sala de audiências e a testemunha é interrogada através de uma linha de áudio/vídeo especialmente instalada. Essa modalidade permite uma interrogação muito mais intensa, direta e flexível do que a já antes existente possibilidade da leitura de atas como meios de prova no processo judicial.
Interrogatórios também já podem ser gravados em fita de vídeo durante a fase de instrução do processo, podendo a fita ser utilizada na posterior audiência principal. Os direitos do réu permanecem assegurados, pois tanto ele quanto, se for o caso, o seu defensor tem direitos de coparticipação nesses interrogatórios. Tal procedimento permite poupar especialmente as crianças, enquanto vítimas, de múltiplos interrogatórios com consequências danosas para os interrogados.
A lei enfatiza expressamente que a utilização dessas gravações de áudio/vídeo é exclusivamente admissível para fins de persecução penal e somente à medida que ela se faz necessária para estabelecer a verdade dos fatos. Objetiva-se assim prevenir o abuso na utilização de fitas de vídeo.
A lei institui adicionalmente a possibilidade de que testemunhas vítimas com menos de 16 anos e em determinados casos também outras testemunhas possam receber um assistente advocatício para a realização do interrogatório (depoimento testemunhal), às expensas do erário público. Além disso, é possível colocar à disposição das vítimas de delitos especialmente graves mediante requerimento e igualmente às expensas do erário público um
advogado da vítima (Opferanwalt) durante todo o período de tramitação da ação penal. As discussões de política jurídica continuam, com a finalidade de reformar o direito penal tradicionalmente referido ao autor de tal forma que todas as partes tenham assegurado um processo justo, especialmente as vítimas de delitos.
Para Luiz Otávio de Oliveira Amaral, o original no sistema alemão é a apuração da responsabilidade totalmente livre da questão do discernimento, que é substituída pela avaliação da maturidade intelectual, moral e volitiva, daí podendo-se concluir da responsabilidade ou não do menor. Entende, todavia, que este critério oferece as mesmas dificuldades do sistema de discernimento.
Assim, para que o menor seja declarado imputável, é preciso – como no direito antigo – que ele, ao tempo da infração, compreenda que prática uma ação proibida (maturidade intelectual). Além disso, é preciso que ele próprio, com base nas noções de valor que fez suas, assim o considere (maturidade moral).
Há que se notar, neste critério, a diferença entre capacidade intelectual e moral do menor; assim, ele pode entender o sentido da norma, mas não a aceitar com a seriedade das exigências morais. Por outro lado, é indispensável que o menor tenha capacidade suficiente para resistir à prática da infração (maturidade volitiva), sobretudo nos casos de crimes contra o patrimônio e a propriedade.
A lei alemã, de 1953, que coincide com a italiana, estabelece a inimputabilidade absoluta até os 14 anos, mas para os menores entre 14 e 18 anos, agrega uma causal de imaturidade, pendente de verificação individual, que consiste na suficiente maturidade psíquica e moral para compreender e atuar.
Como vimos no estudo dos diferentes critérios, o sistema alemão, que, na verdade, acolheu a antiga teoria do discernimento, depois de mais de quarenta anos de experiência nesse particular, oferece dificuldades consideráveis na aplicação do diagnóstico psíquico, conforme aponta Hild Kaufmann: por so la Administración de justicia penal juvenil es insegura respeito de la selecione de consequências jurídicas orientadas por el pensamento educativo.
Impende registrar que a JJG (lei judicial juvenil), de 1953, representou um significativo avanço no chamado Direito Penal de Menores, uma vez que veio expurgar da legislação alemã os aspectos punitivos-intimidativos, introduzidos pela Lei do Reich sobre Tribunais de Menores (Reichjugendgerichtsgesetz), como, por exemplo, pena de morte, prisão perpétua, etc.
Importa mencionar que a substituição da chamada vigilância protetora pela assistência educativa, introduzida pela Jugendwohlfahrtsgesetz, de 11 de agosto de 1961, vem produzindo excelentes resultados e provando que a prevenção social é a solução mais recomendável à questão da criminalidade juvenil.
Foi com grande atraso que a Alemanha introduziu o direito criminal de menores. Tal só ocorreu mesmo, apesar dos clamores generalizados, aos 16 de fevereiro de 1923, com a Lei sobre Tribunais de Menores (Jugendgerichtsgesetz – JGG). Os menores de 14 a 18 anos (podendo a regra estender-se aos menores de 21 anos) são sujeitos a órgãos especializados.
Em havendo coparticipação de maiores (18 anos), os processos são separados, para que o menor compareça perante a justiça especial. O órgão do Ministério Público deve ser também especializado.
A prisão preventiva é bastante restringida, o inquérito social é sempre seguido de exame médico do acusado.
O Ministério Público pode deixar de propor a acusação, bem assim o tribunal pode recusar a acusação, arquivando-se o processo, sempre que houver outra forma melhor para recuperar o menor, sem medidas repressivas.
Original é a apuração da responsabilidade, sempre totalmente livre da questão do discernimento, que é substituída pela avaliação da maturidade intelectual, moral e volitiva. Daí pode-se concluir da imputabilidade ou não do menor. Apesar de original, parece-nos este critério contar com as mesmas dificuldades do sistema do discernimento.
Assim, para que o menor seja declarado imputável, é preciso – como no direito antigo – que ele, ao tempo da infração, compreenda que praticou uma ação proibida (maturidade intelectual). Além disso, é preciso que ele próprio, com base nas noções de valor que fez suas, assim o considere (maturidade moral).
Há que se notar, neste critério, a diferença entre capacidade intelectual e moral do menor; assim ele pode entender o sentido da norma, mas não a aceitar com a seriedade das exigências morais. Por outro lado, é indispensável que o menor tenha capacidade suficiente para resistir à prática da infração (maturidade volitiva), sobretudo nos casos de crimes contra a honestidade e a propriedade.
Uma nova orientação foi introduzida, nesta época, na Alemanha, através da Lei do reich sobre Tribunais de Menores (Reichsjugendgerrichtsgesetz – RJGG), de 16 de novembro de 1943. Esta lei revogou a Jugendgerichtsgesetz – JGG (Tribunais de Menores) de 1923, determinando pena aos menores, antes absolutamente inaplicáveis (por exemplo, morte, prisão perpétua, etc.). Volta-se mais para o evento crime que para a pessoa do delinquente na aplicação da pena, chegando a cominar sanções para maiores de 16 anos, antes apenas atribuíveis aos adultos.
A evolução do direito criminal de menores continuou com a Jugendgerichtsgesetz JGG de 1953; esta lei veio expurgar da legislação criminal atinente aos menores os malefícios do período nazista. Ressurge a suspeição da pena e a extensão, em alguns casos, desta norma especial aos jovens adultos (18 a 21 anos).
Nota-se que esta legislação menorista é mais dirigida ao agente que ao ato praticado, as medidas não tem por fim tão-somente censurar, mas sim corrigir ou reeducar.
É, enfim, prevenção especial o que se busca através da correção do jovem delinquente, para que ele não venha a ser um adulto criminoso.
Com referência à imposição de normas de conduta, a lei não é taxativa ao enumerá-las, deixando o juiz utilizar a imaginação e a capacidade pedagógica para descobrir a norma mais adequada a cada menor. Acredita-se que o valor pedagógico destas normas de conduta se assenta precisamente na grande possibilidade de individualização que oferecem.
É certo que há limites nesta liberdade dada ao juiz, primeiro, limitações constitucionais e, depois, a natureza e o fim da medida. O tratamento médico pode ser complemento desta leve medida, mas para isso é mister a autorização dos educadores legítimos e do representante legal do menor e, se ele tem mais de 16 anos, o seu consentimento é imprescindível.
Estas normas devem ser claras e de fácil controle para serem eficazes. Em face do insucesso, por culpa do menor e se tiver sido alertado, pode ser-lhe aplicada a detenção juvenil.
É de se destacar a solução trazida pela Jugendwohlfahrtsgesetz, de 18 de agosto de 1961, que, ao substituir a vigilância protetora pela assistência educativa, deu um passo largo em direção ao fim da pecha da irrecuperabilidade, lançada a certos menores, que só chegaram a tal extremo por abandono total (material, afetivo e até judicial), a não ser que se tome tal irrecuperabilidade como carma, o que não nos parece científico.
Esta medida vem provando, em plagas distantes, que a prevenção social é a solução mais recomendável à questão da delinquência juvenil.
Outra medida de realce doutrinário é a detenção de curta duração para o jovem, porém com rigor extremado. Com efeito, tenta-se compensar a duração mínima por dureza máxima.
É uma detenção que atinge apenas as horas livres do menor (por exemplo, aos sábados e domingos), cumprida em absoluto isolamento celular, sem qualquer conforto, além do estritamente necessário. Tais detenções não ultrapassam três dias (sem que haja a sujeição ao regime comum de maior duração).
Tal reação criminal distingue-se da pena de prisão comum, acentuadamente pelo seu caráter de prevenção especial (ressocialização). Isto não significa que não possua também a função retributiva, que ao nosso entender é importante, na medida em que leva o delinquente a assumir responsabilidades por seus atos.
Assim já se expressou a culta colega Professora Armida Bergamini Miotto, “o preso é sujeito de direitos e deveres e responsabilidade”, é a culpabilidade normativa (consciência de ilícito cometido) conforme a lição da precitada professora.
A concretização de um direito penal ajustado segundo seu tempo e sociedade, passa, antes de tudo, pela definição da atividade estatal. Ao longo de uma trajetória histórica, dá-se a constante evolução do jogo político.
O Estado vai assumindo novos papéis impostos pelas exigências sociais. As modernas sociedades, assimilam as diferenças sem prejuízos. Tornam-se cada vez mais complacentes em relação a condutas antes vistas como prejudiciais. Isso dá o contorno e as dimensões do crime.
O direito penal deve estar intimamente conexionado com outras ciências humanas. A criminologia, em especial, traduz as dimensões da fenomenologia do crime, revelando as áreas de consenso e de maior conflitude. Nesse passo, é estar importante auxiliar do direito penal.
Informa as novas exigências sociais, detecta seus valores mais pungentes, mais significativos, bem como aqueles que já não figuram no rol de prioridades.
Com o acesso constante a esses dados, pode-se determinar a política criminal mais adequada a um determinado tempo. Política criminal inclinada para os valores mais representativos da comunidade, que dita, antes de tudo, a retirada da intervenção penal das áreas relativas à moral.
A política criminal deve encontrar outros meios mais eficazes e menos gravosos para corrigir os desvios prejudiciais à comunidade. Assim, quando a sanção não se apresentar, na ordem de subsidiariedade, como medida idônea e adequada, a descriminalização deverá impor-se.
A barganha tem se solidificado no campo jurídico-penal alemão de um modo intrigante e instigante à análise doutrinária internacional, especialmente diante da proeminência da tradição e da influência germânica no cenário europeu.
Na Alemanha os acordos consensuais surgiram na prática forense, sem qualquer autorização legal, desenvolvendo-se de modo informal até a consagração de sua importância na postura dos atores processuais, o que incitou o judiciário e, posteriormente, o legislativo a atuarem para sua regulação.
Conforme Bernd Schünemann, na instrução judicial vige o “princípio da acumulação dos poderes ou forças processuais”, em que, por exemplo, a produção probatória se pauta essencialmente pela atuação do julgador.
Assim, o oferecimento da denúncia pelo acusador público acarreta a transferência do domínio do processo ao juiz, além de possibilitar o completo acesso deste às investigações preliminares.
Diante de tal cenário, somado à pretensão de busca da verdade material por meio do processo, dois aspectos são relevantes ao desenvolvimento de mecanismos negociais: por um lado, há uma importante resistência à extinção da investigação a partir de um acordo de vontades, ou seja, a tradição jurídica alemã apresenta maiores óbices à barganha, em comparação ao ordenamento estadunidense, por exemplo.
Na Alemanha, assim como nos demais países de tradição civil-continental, inexiste a figura estadunidense do guilty plea, momento inicial do processo em que o réu se declara culpado e aceita a imposição da pena sem processo, ou seja, nos referidos ordenamentos o instituto da confissão é positivado como uma das demais possibilidades de prova previstas na lei, de modo que seu reconhecimento não acarreta a extinção automática do processo, visto que impõe-se a sua confirmação a partir do lastro probatório complementar para que se autorize um pronunciamento condenatório.
Apesar de negar qualquer aderência às influências norte-americanas, princípio da oportunidade se fortalece no processo penal e as negociações foram incentivadas, ainda que de forma indireta, por tais espaços de exceção ao princípio da obrigatoriedade da ação penal por meio de dispositivos que foram introduzidos a partir de 1923 e consolidados em 1974.
Em 1997, uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça (BGH) fixou pela primeira vez importantes diretrizes para a legalidade dos acordos: as negociações devem ser descritas publicamente no momento do juízo oral; seu resultado deve ser gravado e incluído nos expedientes processuais; os juízes leigos e o réu devem participar e poder se pronunciar acerca da barganha (embora conversas preparatórias possam ocorrer sem a sua participação); é proibida a barganha sobre as imputações penais (charge bargaining); a Corte não pode prometer uma sanção penal específica, mas somente determinar um limite máximo; o réu não pode ser indevidamente pressionado, sem ameaças e intimidações, e sua liberdade de escolha deve ser respeitada; a punição deve refletir a gravidade do delito e a culpabilidade do autor; a confissão do acusado deve ser verificada pelo Tribunal, necessariamente precisa ser plausível e precisa de modo a confirmar os atos de investigação existentes; e, o acordo não pode incluir renúncia ao recurso.
Posteriormente, em 2005, uma nova decisão do plenário do BGH ratificou tais pressupostos, atestando seu não cumprimento na prática judiciária e ressaltando, especialmente, a vedação de renúncia ao recurso, visto que sua realização impede o acesso dos casos aos tribunais superiores.
Por fim, tal pronunciamento do judiciário solicitou a atuação urgente do legislativo, de modo a introduzir nova legislação no ordenamento germânico para finalmente regular legalmente a realização dos acordos, pois corrigir tendências falaciosas por meio de instrumentários jurisprudenciais “nunca poderá ser alcançado de forma plena e sempre levam aos limites da produção legislativa pelo judiciário”.
Em maio de 2009 surgiu a Lei de Regulamentação dos Acordos no Processo Penal, a qual fundamentalmente adicionou um parágrafo (§ 257c) ao Código de Processo Penal alemão (StPO), regulando a realização de barganhas de modo semelhante ao determinado pelo BGH nas referidas decisões paradigmáticas.
Conforme o texto aprovado, a Corte poderá, nos casos adequados, pactuar com os participantes do processo acerca de seu desenvolvimento e de seu resultado, fixando limites mínimos e máximos à sanção penal (proibindo, assim, os acordos sobre imputações charge bargaining), embora se mantenha o dever do magistrado de buscar de ofício a verdade nas investigações.
A confissão do réu é pressuposto à barganha e sua veracidade deve ser analisada, visto que, em caso de dúvida, a Corte deverá rejeitar o acordo.
Conforme a doutrina, diante do papel fundamental desempenhado pela barganha no sistema criminal germânico, uma declaração de inconstitucionalidade era inviável, de modo que o BVerfG focou seus esforços na regulamentação de requisitos e de limitações que condicionem a validade dos pactos, afirmando a necessidade de respeito aos princípios da busca da verdade, da publicidade e da proporcionalidade das punições.
Certos requisitos para a legalidade da barganha foram ressaltados: 1) a confissão precisa necessariamente ser verificada por provas complementares, de modo que por si só não pode fundamentar um veredicto condenatório; 2) o acusado deve ser avisado de seus direitos e das consequências do acordo; e, 3) as negociações devem ser descritas publicamente e registradas nos autos do processo. Contudo, aponta-se que importantes aporias não foram analisadas, como certas incompatibilidades dos acordos com o sistema criminal alemão e as consequências práticas da legislação.
Referências
BRITO, Valteir Marcos de. Sistemas de Justiça Criminal: Brasil e Alemanha. Rio de Janeiro: UCAM, 2005
HASSEMER, Winfried. La Ciência Jurídico Penal em La República Federal Alemanha, Anuário de Derecho Penal y Ciências Penale, Tomo XLVI, fasc. I, inero-abril MCMXCIII.
_____________História das Ideias Penais na Alemanha do Pós Guerra., Tradução de Carlos Eduardo Vasconcelos, Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 6, abril-junho de 1994, pp. 36-71.
HERKENHOFF, João Baptista. Crime-tratamento sem prisão. Petrópolis: Ed. Vozes Ltda. 1987
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito., 5.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
KRELL, Andreas. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2002.
LUIZ OTAVIO, de Oliveira Amaral. Direito e Segurança Pública, a Juridicidade Operacional da Polícia (O Manual do Policial): Editora Cônsules, Brasília, 2003.
STERN, Klaus. Derecho Del Estado de La República Federal Alemanha. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1987.
XAVIER NETO, Francisco de Paula. Notas sobre a Justiça na Alemanha. Porto Alegre, 1982. (Coleção AJURIS, 18).
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro. Ed. Revan, 1991.
[1] Uma das principais inovações inseridas no Código de Processo Penal (CPP) pela Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime), o acordo de não persecução penal pode ser definido como uma espécie de negócio jurídico pré-processual entre o Ministério Público (MP) e o investigado, assistido por seu defensor. Nele, as partes negociam cláusulas a serem cumpridas pelo acusado, que, ao final, será favorecido pela extinção da punibilidade. O acordo está previsto no artigo 28-A do CPP: "Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime". Segundo Schietti, o acordo de não persecução penal não se propõe especificamente a beneficiar o réu, mas sim a Justiça criminal de forma integral, visto que tanto ele quanto o Estado renunciam a direitos ou pretensões em troca de alguma vantagem. O Estado – explicou o ministro – não obtém a condenação penal em troca de antecipação e certeza da resposta punitiva. Já o réu deixa de provar sua inocência, "em troca de evitar o processo, suas cerimônias degradantes e a eventual sujeição a uma pena privativa de liberdade".