"O conhecimento é o mais potente dos afetos: somente ele é capaz de induzir o ser humano a modificar sua realidade." Friedrich Nietzsche (1844?1900).
 

Professora Gisele Leite

Diálogos jurídicos & poéticos

Textos


Ao longo da história da humanidade fora dada mínima importância ao insano. Na Idade Média, era visto
como erro, falha da razão. Quando se deu maior ênfase de exclusão e, segundo Foucault, que apontou sobre o 
leproso.

Já com a Idade Moderno há um novo ideal que consistia na exaltação da razão. E, tal ideal de racionalidade, fez com que o louco tenha se tornado uma contradição, de modo que não sera mais tratado como mero erro, porém, como uma ameaça à razão. Na Idade Contemporânea, novas ideias e teorias iriam reforçar o discurso de que o louco não seria mais problema da sociedade, mas sim, puramente do domínio científico.
Com o advento da Psiquiatria e as mistificações da ciência, abriga-se a loucura e até ganha padrastos através de discursos que legitimariam como doença. E, de acordo com certos domínios científicos, a loucura passaria a
ser criminosa, perigosa e, quiçá contagiosa.
A loucura sob a crueldade do monopólio do discurso passa ser diligenciada por toda a sociedade em sua exaustiva complexidade que concomitante a exclui e a deporta, não apenas os loucos, mas também, qualquer indivíduo que ameaçar a "suposta" tranquilidade.
Michel Foucault ao pesquisar o discurso sobre a loucura durante dos séculos ao XIX identifica como forma de poder, e o isolamento e punição surgem no fito de mostrar que tanto o conhecimento médico, como a internação compulsória  tornara-se alguns dos instrumentos de poderes institucionais da época  

Ipso facto, este saber médico adicionado com outras ciências pode ter sido o principal responsável por estabelecerem a fronteira entre a racionalidade a loucura, sem ao menos ter total conhecimento de o que esta realmente é. A loucura é vista pelo mundo psiquiátrico como uma grave ameaça de doença à sociedade. E, como tal, também deveria existir uma cura.

Ainda no século XVII, a exclusão dos loucos se tornara evidente com as internações e, os hospícios e manicômios
teriam sido transformados para fins terapêuticos e penitenciários. Eis que surge o questionamento a respeito da real necessidade do aprisionamento do louco. Ao fim da Idade Média quando, afinal, os leprosários não mais recebiam mais doentes, surgira novo problema que seria nova forma de substituir os internatos e ocupá-los com os doentes acometidos de louco.

Foucault in litteris:
"É sob a influência do modo de internamento, tal como ele se constituiu no século XVIII, que a doença venérea se isolou, numa certa medida, de seu contexto médico e se integrou, ao lado da Loucura, num espaço moral de exclusão. De fato, a verdadeira herança da lepra não é aí que deve ser buscada, mas sim num fenômeno bastante complexo, do qual a medicina demorará para se apropriar. Esse fenômeno é a Loucura.”

O filósofo francês denuncia que a medicina demorou para se apropriar-se da Loucura e utilizava medidas pouco científicas, isto é, como alguns métodos de punição. Na Idade Moderna, a exclusão dos loucos era feita em navios Stultifera Navis (a nau dos loucos) que era lançada no mar.

Após o século XVIII quando, enfim, a loucura deixa de ser apenas um erro ou ilusão, para se tornar uma ameça, surgira o internamento, uma ilha dentro da própria civilização cuja maior preocupação, não seria talvz  a perturbação da mente do louco, mas sim, a perturbação que o louco poderia causa com seu modo de agir. Já no século XIX, a Psiquiatria tomou as rédeas da loucura trazendo promessas de curas o que justificava as muitas formas de alistamento, a saber:
1. Assegurar sua segurança pessoal e de sua família;
2. Libertá-los das influências pessoais;
3. Submetê-los à força a um regime médico;
4. Impor-lhes novos hábitos intelectuais e morais;

Percebe-se que todas estas justificativas estão eivadas de um discurso de poder, isto é, de questões de poderes dirigidos à própria relação institucional, onde se construiria um saber acerca da loucura em total domínio da medicina.

Tal discurso demonstra o domínio da loucura e é repetitivo na história, principalmente, no período marcado pelo método e meditação cartesiana, e no célebre século da razão ou das luzes, que temerá o alienado tido como ameaça racional. Tratava-se os loucos como se fossem animais, isolando-os para que não promovam a desordem.

Foi influenciado por Nietzsche ao fazer a genealogia da loucura e traçar novo modo de analisar o insano, isto é, não pela via médica especulativa e neurológica e nem mesmo pela via psicológica, e sim, por uma ótica que busca identifica a raiz da patologia mental na história das relações humanas.

A História da Loucura tornou-se uma obra ousada mesmo porque Foucault, no início de seus estudos, possuía um grande interesse pela psicologia, chegando a se especializar em psicopatologia fazendo estágios em hospitais psiquiátricos e mantendo contatos com os internos (LOGOS, 1990).

Mesmo assim, procurou através da história do internamento, as ilusões da ciência psiquiátrica e as mistificações da própria ciência moderna. Ao contrário do que se poderia pensar, não será uma descrição sobre uma história da loucura, baseada em teorias relativas ao tratamento dos doentes mentais, mas a partir das práticas de isolamento: práticas de isolamento se assemelham a práticas discursivas, pois talvez seja através dos discursos que surgirá esta sina de isolamento e punição da loucura. 

Enfim, o louco tido como propriedade da ciência tem seu chão permanente no isolamento, a casa dos loucos onde há as práticas discursivas restam imbricadas às práticas concretas de asilamento, porém, procura-se justificar as internações como fruto de saber médico e como instrumentos de poder, basta relembrar os exemplos históricos e experiências da loucura.

A existência errante dos loucos colocados numa nau, onde as cidades escorraçavam-nos de seus muros,e deixava-se que corressem pelos campos distantes. Ou eram entregues aos mercadores e peregrinos.
In litteris:
"Água e navegação têm realmente esse papel. Fechado no navio, de onde não se escapa, o louco é entregue ao rio de mil braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incerteza exterior a tudo. É um prisioneiro no meio da mais livre da mais aberta das estradas: solidamente acorrentado à infinita encruzilhada. É o passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da passagem, E a terra à qual aportará não é conhecida, assim como não se sabe, quando desembarca, de que terra vem. Sua única verdade e sua única pátria são essa extensão estéril entre duas terras que não lhe podem pertencer. É esse ritual que, por esses valores, está na origem do longo de toda a cultura ocidental? Ou, inversamente, é esse parentesco que da noite dos tempos, exigiu e em seguida fixou o rito do embarque? Uma coisa pelo menos é certa: a água e a loucura estarão ligadas por muito tempo nos sonhos do homem europeu. (FOUCAULT, 1972)."

A insolente ambiguidade do louco perpassa desde a idade medieval indo até a Renascença para se tornar a ameaça do destino, ou simples defeito, erigido em perigo constante e identificado com a ideia do mal. E, sua denúncia grita pela arte, pela literatura que traz consigo o pensamento crítico e, então, a sua imagem marginal tornou-se o centro e o reflexo da verdade no jogo de poder.

Assim se identifica na literatura uma sutil transposição, in verbis:

"A substituição do tema da morte pelo da loucura não marca uma ruptura, mas sim uma virada no interior da mesma inquietude. Trata-se ainda do vazio da existência, mas esse vazio não é mais reconhecido com termo exterior e final, simultaneamente ameaça e conclusão; ele é sentido do interior, como forma contínua e constante da existência. E, enquanto outrora a loucura dos homens consistia em ver apenas que o termo da morte, agora a sabedoria consistirá em denunciar a loucura por toda parte, em ensinar aos homens que eles não são mais que mortos, e que se o fim está próximo, é na medida em que a loucura universalizada formará uma só e mesma entidade com a própria morte. (FOUCAULT, 1972)."

A morte se remete ao vazio. Certifica-se da contingência humana e visa sua aniquilação como espetáculo. A loucura, por sua vez, por meio de sua ilusão, demonstra sua entidade reflexa nos homens, da forma mais presente de seu espírito: “ela reina sobre tudo o que há de mau no homem. Mas não reina também, indiretamente, sobre todo o bem que ele possa fazer? “(FOUCAULT, 1972).

Desta forma, ela ocupa o primeiro lugar do agir humano, sendo mãe de todos os pecados. Assim, se evidencia a loucura como uma razão própria. Foucault apontou para a personificação mitológica e satírica da loucura feita por Erasmo quanto à própria sociedade e seus sistemas de governos: “tantas formas de loucura nelas abundam, e são tantas e novas a nascer todo dia, que mil Demócrito não seriam suficientes para zombar delas.” (FOUCAULT, 1972).

A loucura, ainda no Renascimento, terá seu aspecto sombrio, burlesco e natural no espírito humano. Razão pela qual, seria justificável o seu afastamento se esta, ao mesmo tempo, representasse o que há de trágico e defeituoso no homem.

Nos séculos XVI e XVII, a loucura aos poucos se encontra com uma nova figura de si: a ilusão.  Segundo Foucault (1972), “o amor decepcionado em seu excesso, sobretudo o amor enganado pela fatalidade da morte, não tem outra saída a não ser a demência”. E será assim que, expresso pelos movimentos literários (sobretudo com Cervantes e Shakespeare), a loucura toma seu lugar como delírio ou a paixão demasiada.

O louco como uma ferida heterogenia, um mal-estar profundo perante a sociedade moderna, racionalista e sobretudo burguesa. Eliminar estes elementos não sociáveis era a constituição do sonho burguês. “O internamento seria assim a eliminação espontânea dos ‘a-sociais’.” (FOUCAULT, 1972).

Nesta dinâmica social, faz-se as exigências concretas dos asilos, prisões, hospícios e hospitais na afirmação de instituições que ordenam o sonho burguês de sociedade, promovendo assim, estas réplicas de exclusão já de tempos ulteriores. A evidente discriminação dos a-sociais retomam seus famosos ciclos na história revelados pelas práticas de exclusão.

A perturbação essencialmente política e moral perpassa através dos anos como discursos defensivos, para o bem e a segurança do grupo, dos contratos não observados, da incapacidade de observá-los, para a sua punição. Fator pelo qual está incluso num sistema correcional onde desta forma se constrói o que chamamos de disciplina, ou seja, todo um conjunto de coação, regras e contratos, sobre o indivíduo a favor de uma eficácia técnica e política de uma sociedade.

Um amor que ultrapassa as barreiras da vida humana e se entrega aos mais primitivos instintos do homem. É neste olhar que a psicanálise atribuirá, no século XX, à loucura o resultado de alguma sexualidade perturbada. “Sempre dentro dessas categorias da sexualidade, seria necessário acrescentar tudo o que se diz respeito à prostituição e à devassidão.” (FOUCAULT, 1972).

É assim, nestes desejos impuros, que se condena a sodomia e a homossexualidade. Obviamente que estes sentimentos possuíam no Renascimento formas toleráveis, sobretudo a homossexualidade. Entretanto, agora, encontram suas indulgências sob a via de severos castigos.

A sodomia tinha sua perseguição na França constando apenas a condenação e não o seu internamento. Assim vemos o veredicto dado pelo tenente de polícia Hérauldt: Étienne Benjamin Deschauffours é declarado devidamente culpado de ter cometido os crimes de sodomia mencionados no processo. Como reparação, e outros casos, o dito Deschauffours é condenado a ser queimado vivo na Place de Grève, suas cinzas jogadas ao vento, seus bens confiscados pelo Rei. (FOUCAULT, 1972).

No entanto, a sodomia só deixará de ser perseguida com as punições da homossexualidade. Esta, pertencente ao amor desatinado, perde sua “liberdade de expressão” permanecendo apenas no interdito de uma sensibilidade que escandaliza e dessacraliza o amor. 

Em todos os tempos, e provavelmente em todas as culturas, a sexualidade foi integrada num sistema de coações; mas é apenas no nosso, e em data relativamente recente, que ela foi dividida de um modo tão rigoroso entre a Razão e o Desatino, e logo, por via de consequência e degradação, entre a saúde e a doença, o normal e o anormal.

Encontra-se nos perigos da sociedade Clássica e na sua escandalização, as presentes categorias de profanação e blasfêmia já vistas no século XVI sob formas violentas e furiosas no campo do sagrado, mesmo pertencendo aos seus interditos religiosos.

Eram assim condenados por severas penas: “golilha, pelourinho, incisão nos lábios com ferro em brasa, seguida pela ablação da língua e enfim, em caso de nova reincidência, a fogueira.” (FOUCAULT, 1972).

Dois âmbitos, o da Reforma e o da Contra Reforma alternaram as visões de blasfêmias e punições, mas, especialmente com a Contra Reforma (que após as grandes lutas religiosas da Reforma viu-se a relatividade das condenações) trará novamente estes tradicionais castigos: “Entre 1617 e 1649, houve 34 execuções por causa de blasfêmias”. (FOUCAULT, 1972).

No entanto, tais execuções e penas reduzirão e chegarão mesmo a desaparecer não por uma perda do rigor de severidade, mas porque entrasse o internamento como reclusão dos blasfemadores: “as casas de internamento estarão cheias de blasfemadores.” (FOUCAULT, 1972).

A legislação contra a magia durante o século XVII possuía um rigor extremo e impiedoso par aqueles que praticarem estes rituais maléficos e sombrios:

Se se encontrar no futuro pessoas suficientemente más a ponto de misturar à superstição a impiedade e o sacrilégio... desejamos que as que forem culpadas sejam punidas com a morte. (FOUCAULT, 1972).

É interessante observar que as práticas de, por exemplo, queimar bruxas em praças públicas, agora se torna incomum devido ao próprio esvaziamento de seu poder sombrio e de suas intenções malignas.  O internamento torna-se proteção destas condenações, uma vez que estas não se acabarão, nem perderão o seu rigor, mas sim, as suas práticas.

Uma importante inovação de Foucault foi recontar a História da Psiquiatria através de uma abordagem diferente daquela dos historiadores da psicopatologia, psiquiatras e psicólogos.

A história da loucura que constava nos registros científicos do alienismo e da psiquiatria era, na verdade, a história linear de uma suposta doença mental; era contada sob a ótica da ciência e do saber médico [...]. O pano de fundo da argumentação de Foucault é a ideia de que a loucura não é natural, mas cultural, ideia que já existia, por exemplo, na antropologia ou no culturalismo e em correntes sociológicas antecedentes. (AMARANTE; TORRE, 2001).

Os jogos de forças e relações tendem a se desenvolver na produção de saberes muitas vezes excludentes como a Stultifera Navis, e recludentes como as internações. Mas o importante a dizer é como se procurará o domínio sobre a loucura, pois esta é uma preocupação que nascerá após uma longa experiência do desatino e uma suposta evolução da sociedade da razão.

Foucault nos propõe esta libertação para as verdades, para a possibilidade das lutas e das forças, da liberdade do louco. Mas, como ele mesmo diz: “não se trata de chegar a uma conclusão.” (FOUCAULT, 1972). É por isso que não tratamos de resoluções categóricas para os problemas de verdades sobre a loucura.

E, assim a efetuação de uma análise da instituição médica permite ver suas formas explícitas, e por que não, implícitas do poder. Dirigimo-nos então, à procura de um controle que não seja baseado nesta relação de domínio de liberdade, mas que busque primeiramente a necessidade de uma devolução ética para a loucura: iniciasse, portanto, um grande desafio que se encontra sujeito às incertezas da linguagem sã do homem.

 

Referências
AMARANTE, Paulo; TORRE, Eduardo H. História da loucura: quarenta anos transformando a história da psiquiatria. In: Psicologia Clínica. Rio de Janeiro: v.13, n.1, p.11-26, 2001.

ASSIS, Machado de. O Alienista. 27ª ed., São Paulo: Ática, 1996.

BENELLI, Silvio; COSTA-ROSA, Abílio. Geografia do poder em Goffman. Estudos de Psicologia. Campinas, PUC – Campinas, v.20, n.2, maio/ago. p.35 – 49.

CUNHA, Maria Clementina Pereira. O Espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo. 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

DELEUZE, Gilles. Foucault. 2ª ed., São Paulo: Brasiliense, 1991.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.

________. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1972.

________. Microfísica do poder. 14ª ed., Rio de Janeiro: Graal, 1979.

________. Resumo dos cursos do Collège de France. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

________. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1994.

GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 16/11/2023
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