"O conhecimento é o mais potente dos afetos: somente ele é capaz de induzir o ser humano a modificar sua realidade." Friedrich Nietzsche (1844?1900).
 

Professora Gisele Leite

Diálogos jurídicos & poéticos

Textos


Entre o Bardo e o Bruxo.

Entre o Bardo e o Bruxo.

Entre le barde et le sorcier.

 

Resumo:

O ilustre e renomado escritor inglês William Shakespeare fora chamado em seu tempo de "O Bardo", em referência aos antigos poetas, cantores, trovadores e contadores de histórias da Europa, que viajavam levando as histórias colhidas nas mais diversas culturas. Já o “Bruxo do Cosme Velho” adquiriu o apelido devido a queimar papéis num caldeirão em seu quintal da sua casa situada no bairro do Cosme Velho, no Rio de Janeiro. Entre ambos os escritores, a crítica e a ironia, além do pessimismo foram as marcas indeléveis dos que se debruçaram sobre o abismo da natureza humana.

Palavras-chave: Machado de Assis. William Shakespeare. Filosofia. Sociologia. Direito.

Résumé:

L'illustre et renommé écrivain anglais William Shakespeare était appelé "The Bard" à son époque, en référence aux anciens poètes, chanteurs, troubadours et conteurs d'Europe, qui voyageaient avec des histoires recueillies auprès des cultures les plus diverses. La « sorcière de Cosme Velho » a acquis le surnom en raison de la combustion de papiers dans un chaudron dans le jardin de sa maison située dans le quartier de Cosme Velho, à Rio de Janeiro. Entre les deux écrivains, la critique et l'ironie, ainsi que le pessimisme, étaient les marques indélébiles de ceux qui ont fouillé dans l'abîme de la nature humaine.

Mots clés : Machado de Assis. William Shakespeare. Philosophie. Sociologie. Droite.

 

 

Machado de Assis foi um grande leitor de Shakespeare, principalmente das obras Othelo, Hamlet e Macbeth. O personagem principal de “Ressurreição” (1872), seu primeiro romance, era o rico, entediado e ciumento Félix.

Luís Batista torna-se Iago, o segundo-tenente do general mouro, disposto a provocar ciúmes no incauto Félix. Othello mediado por Iago envolvido com ciúmes, ao encontrar provas da traição de Desdêmona, demonstra-se descontrolado. Todo amor se transforma em fúria e ódio em exaltação sem medida.

No romance “A Mão e a Luva” (1874), o tímido e apaixonado Estevão decidiu morrer logo no primeiro capítulo. Esta passagem é muito semelhante à terceira cena do Primeiro Ato de Othello. Rodrigo, desanimado com a anunciada ida de Desdêmona para Chipre, toma uma decisão extrema: “Vou me abater incontinente”

Na primeira cena da peça, Iago diz ao amigo Rodrigo, referindo-se a Otelo: “Servindo a ele, estou servindo apenas a mim mesmo” (In following sim, I follow but mel). Em “Helena”, há três referências a Othello.

Em “Iaiá Garcia” (1878) o escritor revelou que o viúvo Luís Garcia, pai da protagonista, não se casou por amor ou interesse, casou-se apenas por ser amado.

Othello, referindo-se a Desdêmona, admitiu que me amava pelos perigos por que passei, e eu a amava porque ela se comovia com eles. Toda a idealização da relação entre amantes é completamente shakespeariana.

O escritor é tão convincente que o leitor não pode deixar de ver em Capitu uma autêntica Desdêmona brasileira e, portanto, inocente. Capitu não morre como Desdemôna, mas seu banimento assemelha-se a uma morte em vida.

Machado de Assis deu o título de “Uma Ponta de Iago” ao Capítulo LXII de Dom Casmurro, devido ao ciúme sofrido por Bentinho. Já no capítulo LXXII, Otelo, Desdêmona e Iago são mencionados nominalmente. Há também neste capítulo uma bela tradução machadiana da fala de Othello acima mencionada.

O mouro rolou de raiva convulsivamente e Iago destilou sua calúnia. Tais eram as ideias que me passavam pela cabeça, vagas e obscuras. No romance seguinte, “Esaú e Jacó” (1904), o autor se pergunta, no capítulo LVIII, ‘como se mata saudades’.

Assim como o apaixonado Rodrigo, em Othello, outros dois personagens dos contos machadianos fingem ser tolos a ponto de se afogarem por amor. Em “Um Capitão de Voluntários”, um dos personagens confessa: “Pensei em entrar no barco de Niterói e, no meio da baía, me jogar no mar”.

As palavras país desconhecido fazem parte do famoso solilóquio “Ser ou não ser, eis a questão”. A expressão país descoberto aparece no poema de Machadiano como “este eterno país misterioso”. O famoso solilóquio aparece como referência em alguns contos. Em “A Mulher de Preto”, Estêvão reconhece: “Aqui estou na dúvida de Hamlet”

No conto “Aurora Sem Dia', há a seguinte descrição da personagem Luís Tinoco: “Colheu de outras produções um acervo de alusões e nomes literários, com os quais fez as despesas da sua erudição” Nos contos “Troca de Datas”, Machado de Assis citou no original: That is the rub, sem traduzir a frase ou referir-se à sua origem. O mesmo ocorre na crônica “História de 15 Dias”.

Machado fez muitas referências a Ofélia, namorada do príncipe Hamlet. Um de seus poemas é justamente uma paráfrase chamada "A Morte de Ofélia". No conto “A Chave”, Machado cita no original a famosa frase de Laerte: Água demais tens, pobre Ofélia!

No conto “A Cena do Cemitério”, a passagem é incorporada a um sonho do protagonista. Machado registra o seguinte comentário sobre a resposta evasiva de Hamlet a Polônio: “Se eu tivesse que dar o título de Hamlet em linguagem puramente carioca, traduziria a famosa resposta do Príncipe da Dinamarca”

Machado de Assis era um leitor de Macbeth e usou a frase "O que está feito está feito" em várias ocasiões. Os exemplos mais expressivos estão nos romances. Em outra linha bem conhecida, Lady MacBeth, sonâmbula, tenta lavar as mãos de manchas de sangue imaginárias.

Madame Macbeth também é destaque na crítica “A Nova Geração”, em versos do poeta e ensaísta francês Charles Baudelaire. As três bruxas que apareceram ao general Macbeth e seu colega Banquo estão presentes em dois romances de Machado. Em “Esaú e Jacó”, as promessas das feiticeiras são devidamente parodiadas.

O fantasma do general Bancho, que tanto assombrou Macbeth, é mencionado de passagem na crônica “História de 15 dias”. Na peça original, ao comentar sobre a escuridão da noite, Bânquo diz ao filho Fleance: “Há economia no céu, suas velas estão todas apagadas”.

A tragédia dos infelizes amantes de Verona é outra das predileções de Machado. Curiosamente, há poucas referências a eles nos romances. A presença mais expressiva do casal apaixonado encontra-se nos contos. A inimizade familiar não impediu os jovens de se amarem, mas é necessário ir a Verona.

"Romeu e Julieta" estão presentes em três poemas de Machado de Assis, todos do livro “Falenas”. O conto” Lágrimas de Xerxes” é um curioso diálogo entre Frei Lourenço e os noivos antes do casamento. Em “Pálida Elvira”, nosso poeta disse: "Bem sei que é um preceito dominante Não misturar comida com amor".

A magia e o encanto dessa comédia sofisticada, que envolve fadas e um elfo desajeitado, a tornaram a mais presente na obra de Machado de Assis. Em “Iaiá Garcia”, no capítulo XI, o personagem Procópio Dias diz que “nada se deve imputar aos dementes e aos amantes”

Numa crônica de 23 de abril de 1893, aniversário de Shakespeare, Machado encerra sua crônica aludindo à data assim: “E vamos acabar aqui, vamos acabar com ele, que a gente vai acabar bem”. Na crítica intitulada “O Teatro de José de Alencar”, de março de 1866, Machado comenta a peça de Alencar “O Demônio Familiar”.

A tragédia de “Júlio César” é mencionada em apenas duas crônicas machadianas. Na primeira, Machado se refere à “multidão, a eterna multidão forte e móvel, que execra e grita contra César, ouvindo Bruto”. que pode ser convocado para comparecer ao serviço a qualquer momento?

Machado de Assis usou uma de suas falas da comédia “Medida por medida” como prólogo de seu romance Ressurreição. O autor volta a referir-se à peça numa crónica de 16 de setembro de 1888, traduzindo o título original “Como queres” para “Como aprovador a Vossa Excelência”.

Machado de Assis se referia a um personagem de Otelo como “o pão amargo do desterro”. O chamado “pão amargo” também aparece no capítulo XXVI do romance Helena. Também é possível que Charmian, uma das criadas de Cleópatra, tenha inspirado o nome da “bela Charmion, palmeira única, deitada ao sol do Egito”.

Além de Ofélia, Machado citou outras três personagens femininas das peças de Shakespeare. A primeira dessas três é Imogene, a infeliz filha do rei na peça Cymbeline. A segunda é Miranda, a filha caçula de Próspero em “A Tempestade” A terceira personagem é a destemida Viola, de “Noite de Reis”

Ao reler Machado de Assis o que representou a maior homenagem que se pode prestar a Shakespeare. Que deu frutos como, por exemplo, de Helen Caldwell, que viu nele “uma joia que deveria causar inveja ao mundo inteiro”. , ele só poderia compô-lo, pois não deixou intacta nem uma fibra do coração humano”.

Shakespeare quebra as unidades de tempo, espaço e ação. Machado inverte a tragédia, incorpora o drama ao romance e, assim, mescla os gêneros, à semelhança do inglês, reforçando que o trágico tem cores cômicas”, analisa a pesquisadora.

Eis que Machado criou uma terceira via para o romance, uma outra maneira de observar, em que predomina uma descrição mais robusta do universo interior dos personagens, oferecendo-lhes uma psicologia plenamente individualizada.

“E como Machado de Assis fez isso? Optando por uma espécie de anacronismo deliberado e buscando na literatura do Renascimento (Cervantes, Shakespeare, Dante e Camões) determinadas maneiras de falar sobre valores humanos que pertencem à vida moral, ao mergulho do eu, ao terreno da dúvida, à avaliação do indivíduo, e à capacidade de fingir”, analisa.

“Com isso, adensa os personagens fazendo com que tenham uma relação complexa com o tempo , ou seja, que eles percebam que mudaram entre o começo e o fim da história.”

O procedimento de paródia peculiar na obra de Machado de Assis se apresenta como uma ironia à tragédia, à ideia da morte e todos os valores mais requintados. No texto de Machado de Assis não há preocupações metafísicas e tudo é colocado no mesmo nível - o material.

Machado de Assis está, assim, vulgarizando e materializando a própria ideia da morte, mostrando as caveiras sendo exploradas, em seu aspecto material através das companhias “Batatas econômicas” “Balsâmica” e, também, no aspecto espiritual, pelas companhias “Salvadora” e “Pronto alívio”. Isso porque, para o próprio narrador, essas não eram “bem títulos nem caveiras; eram as duas cousas juntas, uma fusão de aspectos, letras com buracos nos olhos, dentes por assinaturas”.

Cumpre notar que o ciúme é tema principal na tragédia de Shakespeare, na obra Othello, por causa dele, Desdêmona é estrangulada pelo marido que crê que esta tenha cometido adultério com seu amigo Cássio.

Na obra “Dom Casmurro”, o mesmo ciúme compareceu e gerou a desconfiança em Bentinho, com relação ao seu amigo Escobar. Aliás, Bentinho, após assistir à peça teatral de Othello, o Mouro de Veneza, se imaginou no papel de Othello e Capitu, no da personagem Desdêmona.

Capitu é apresentada na obra machadiana através dos olhos de Bentinho, o narrador-personagem e é somente através do seu depoimento, que é possível conhecer as características de Capitu. Cada vez mais, autores e críticos trazem a personagem Capitu para a atualidade, discutindo-a, analisando-a ou comparando-a com Desdêmona. Essa análise contínua comprova a imortalidade do perfil feminino de Capitu.

Em ambas as obras dos escritores, pude realizar interessantes incursões em vários ramos do Direito, como o Direito de Família, o Direito Civil, o Direito Penal, Direito Constitucional e até mesmo o Direito Previdenciário. Os dramas, as tragédias e mesmo as comédias foram muito úteis em casos concretos que não perderam a contemporaneidade sobre preciosos debates doutrinários e jurisprudenciais.

Aproveito para disponibilizar gratuitamente os Links do Bardo Jurídico:

O Bardo Jurídico – parte 01 https://online.fliphtml5.com/dozlr/xsbv/

O Bardo Jurídico – Parte 02 https://online.fliphtml5.com/dozlr/gowu/

O Bardo Jurídico – Parte 03 https://online.fliphtml5.com/dozlr/vvxq/

O Bardo Jurídico – Parte 04 https://online.fliphtml5.com/dozlr/rhjr/

 

Referências

ASSIS, Machado. Dom Casmurro. São Paulo: Ática, 1994.

CALDWELL, Helen. O Otelo Brasileiro de Machado de Assis. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

LEITE, Gisele. A contemporaneidade de Coriolano. Disponível em: https://www.jornaljurid.com.br/colunas/gisele-leite/a-contemporaneidade-de-coriolano Acesso em 08.01.2023.

PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis: estudo crítico e biográfico. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1955.

SHAKESPEARE, W. Otelo. São Paulo: Escala Educacional, 2005.

 

 

GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 19/09/2023
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.


Comentários



Site do Escritor criado por Recanto das Letras
 
iDcionário Aulete

iDcionário Aulete