Miséria contemporânea
Era quase um ser humano. Eis que o problema maior era apenas o "quase". Sobre sua cabeça, havia o senhor, o sol ou as demais estrelas. Não contabilizei as nuvens porque eram tão dispersas e fugidias que quase não se nota. Esse pobre ser reagia ora com temor absoluto e ora com total indiferença. Apenas era um mero vassalo ou um semi-escravo. Tinha sido despojado de tudo. Comia, às vezes, dormia e, quando ousava pensar, sofria de intensa cefaleia. Talvez fosse melhor ser uma ameba que por ser destituída de sistema nervoso era imune a todo sofrimento. Lia e escrevia, mas não entendia a dinâmica das coisas. Ao seu redor, a dinâmica satânica lhe solapava o lugar e status de sujeito e, ora o reduzia a mero objeto. Ou seria mesmo um dejeto? As circunstâncias históricas, geográficas e sociais tramavam contra sua má genética. E, sinceramente, todos o viam apenas assim um "quase" humano. A maior liberdade que tinha era o desejar a morte. Queria morrer dormindo. Num sonho elevado e terno, capaz de fazer os anéis de Saturno serem próximos e usáveis. Desprovido de vaidade, persistia a sua natureza humana, a de animal acuado no paradigma de ser um animal político e social. Por ser um quase... era totalmente invisível. Ninguém via sua fome. Ninguém via o frio que sofria nem tampouco os pés que quase estavam descalços... A rua parecia ser parte de sua indumentária. O alarido incessante de vozes e buzinas era sua trilha sonora. Saberia o que é música? O que é poesia? Não. Dispensado da vida. Dispensado da própria humanidade, pensar ter dignidade era tamanha ousadia que poderia custar-lhe a vida. Mas, uma pergunta intrigante ainda persiste: qual vida?