As mulheres machadianas
“A honestidade é como a chita; há de todo o preço, desde meia pataca.”
Machado de Assis
Resumo: As personagens como Capitu, Helena, Virgília, Estela, Sofia, Flora e Fidélia traçaram o perfil das mulheres do século XIX a narrativa de Machado de Assis repleta de ambiguidades trouxe a denúncia ora irônica, ora caricatural e, por vezes, psicológica da questão de gênero dentro das relações sociais, econômicas, culturais e históricas do feminino no Brasil. Essas personagens representam as formas de burlarem a sociedade e a santa instituição do casamento. Pois, afinal, a mulher sempre representou no romantismo o amor, a emoção, o coração e o afeto ao passo que o homem o trabalho, a força, a razão e o cérebro. Rebatendo o cartesianismo do penso, logo existo, da superioridade da razão humana sobre as emoções e do positivismo que diz que todo fenômeno deve passar pelos sentidos e analisados via razão, ou seja, o homem deve repetir e conseguir os mesmos resultado do fenômeno via experiência e não via raciocínio ou dedução.
Palavras-chave: Feminino. Mulher. Século XIX. Machado de Assis. Literatura. História. Filosofia. Direito.
É indispensável recordar que um das funções desempenhadas pela História é o de retratar com fidelidade e verdade a realidade social bem como suas transformações ao longo do tempo e, a literatura segue a mesma trilha funcional.
Porém, as mudanças observadas e registradas pelos historiadores diferem em muito na forma de como os romancistas anotam tais ocorrências, afinal, cabe à literatura o retratar das múltiplas possibilidades a partir de uma visão plurissignificativa do mundo ao nosso redor, além de retratar esse mundo visto, o idealizado e também até o futuro.
O artista ou literato utiliza a palavra para trabalhar o mundo e, para tanto, a palavra deve ser superada e, para enfim se tornar a expressão do mundo dos outros e a expressão da relação do escritor com esse mundo.
Enfim, a literatura[1] tem conseguido registrar com agudeza e acuidade e, mesmo nos momentos de forte repressão e violência manifestados pela censura, os escritores brasileiros conseguem driblar a versão oficial e, por meio da ficção retratar e denunciar o proibido, o irregular e até o ilícito. Conforme aduz Compagnon (1999) a literatura produz a dissenção, o novo e a ruptura.
E, somente a literatura tenha sido mesmo capaz de desempenhar tal função, pois traz consigo uma carga de liberdade e libertação que a torna soberana e capaz de mostrar o real sem o pesado compromisso com a unilateralidade ou com as forças de poder constituídas e vigentes.
Antônio Candido (2000) confirma que a literatura tem sido instrumento poderoso de instrução e educação[2], entrando nos currículos e sendo proposta tanto como equipamento intelectual como afetivo. Assim, a literatura confirma e nega além de propor e denunciar e apoiar o combate, fortalecendo a possibilidade de sobrevivermos dialeticamente os problemas.
Confirma Antônio Candido (1995) que a literatura se apresenta como imagem e transfiguração da realidade reinante, e em sua ambivalência, presta-se ao leitor como meio de exposição de conflitos ou até mesmo de risco, e diante as múltiplas interpretações, esta tem uma das funções mana de retratar o humano. Humano demasiadamente humano.
O século XIX, especialmente, seu segundo quartel, em nosso país representou momento significativo e, propagação e popularização do romance brasileiro que deveria divertir e instruir os leitores. E, assim os escritores brasileiros conseguiram, de certo modo, fixar, consolidar e projetar a literatura brasileira para além dos limites e fronteiras.
A sociedade burguesa brasileira do século XIX constituiu, campo fértil e suporte interessante para os poetas e romancistas realizassem as análises de seu contextos e informassem a seus leitores. E, ao retratar a ética circulante dessa sociedade, ao desvendar as tradições, sua formação e sua cultura, os escritores brasileiras construíram autênticos clássicos, que se revelam extremamente contemporâneos.
É verdade que o início do século XIX, os românticos ainda esculpiam enredos, ações, personagens e tramas revestidas de aura iluminada, quando os leitores adentravam no devaneio, nos sonhos e, caminho em busca da identidade.
Tinha a literatura a missão de entretenimento e, os românticos assim procederam na tentativa de agradá-los, pois os leitores aspiravam a um modelo de vida pessoal, que espelhassem os moldes europeus. E, assim, os romances e o romantismo atendiam bem aos interesses da sociedade dominante naquele período histórico.
A ficção brasileira criou personagens bem construídos e que se tornaram marcante, e foram capazes de serem símbolos e representações da sociedade tanto do passado como do presente. E, em tais personagens haviam inseridos princípios e valores que traziam as nuances da construção textual e revelavam o local em que se situavam.
Bakhtin, in litteris, nos ensinou: “Enquanto ponto de vista, enquanto concepção de mundo e de si mesma, a personagem requer métodos absolutamente específicos de revelação e caracterização artística. Isto porque o que deve ser revelado e caracterizado não é o ser determinado da personagem, não é a sua imagem rígida mas o resultado definitivo de sua consciência e autoconsciência, em suma, a última palavra da personagem sobre si mesma e sobre seu mundo”. (BAKHTIN, 1997).
No estudo sobre as personagem, especialmente, as machadianas e tentar entender a posição que assumiram naquele contexto, refletimos sobre o que nos estimula à leitura e releitura de suas obras. Enfim, a criação dos escritores brasileiros e suas personagens é, certamente, um significativo marco na cultura e na literatura nacionais, sendo um capítulo relevante de toda literatura universal.
Machado de Assis ao criar seus personagens, particularmente as femininas, deu-lhes um jaez de fingimento, de ocultação[3], de algo que parece ser e não é. Havia uma intenção consciente do romancista em utilizar esses meandros e subterfúgios de enganar, brincar com o leitor. Mas, no fundo, sua real intenção era mesmo retratar fielmente a realidade social de sua época.
O escritor pode ser o homem de seu tempo e de seu país ainda que trate dos assuntos mais remotos no tempo e no espaço. Ao transpor as relações sociais e afetivas que narra, está a interiorizar o país e o respectivo tempo.
E, Machado de Assis compunha uma expressão da sociedade real, horrendamente dividida, em uma situação bem particular e inconfessável, nos antípodas da pátria romântica. Um paradoxo em si mesmo.
A ousadia de Machado de Assis que adotou uma postura capaz de captar a realidade e dramatizar sobre toda estrutura do país, doravante transformada em escrita. E, em sua dialética, a prosa machadiana constitui espetáculo histórico-social complexo, alternando crítica mordaz, uma ironia sutil e, ainda, as estratagemas de despistamento artístico que os narradores se encarregam de realizar.
A ímpar sensibilidade de Machado de Assim foi hábil em registrar o ímpeto e a contemporaneidade das alterações evolutivas que vinham se sucedendo e, só foram registradas por muito tempo depois, mas ele já as percebias e as anotavam em sua obra.
John Gledson, em sua obra intitulada "Impostura e Realismo" afirmou que a grandeza de Machado era usualmente vista como a capacidade de antever muito dos procedimentos literários do século XX, nos quais as múltiplas perspectivas, os narradores não confiáveis e um profundo ceticismo quanto ao acesso à verdade se tornaram, se não norma, ao menos bastante triviais.
Afinal, Machado de Assis recusou-se a enquadrar-se com preceitos e com as normas vigentes de sua era, adotando posição moderna o que, de certa forma, já antevia muitas das mudanças que iriam ocorrer no século seguinte.
Ao rejeitar o rótulo de realista, Machado de Assis ia na contramão da sociedade burguesa do século XIX e, fazendo percurso inverso as essas regras sociais, traça, em seus romances, principalmente nas últimas obras como Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas[4], Quincas Borba, Esaú e Jacó e Memorial de Aires, onde há um singular perfil das personagens femininas para aquela época.
A grandeza de Machado de Assis, também retratada por José Veríssimo em sua obra História da Literatura Brasileira, in litteris: "Ninguém na literatura brasileira foi mais, ou sequer tanto como ele, estranho a toda a espécie de cabotinagem, de vaidade, de exibicionismo. De raiz odiava toda a publicidade, toda a vulgarização que não fosse puramente a dos seus livros publicados". (VERÍSSIMO, 1977).
Sem dúvida, Machado de Assis foi um escritor diferenciado com sua visão arguta e perspicaz dessa sociedade na qual estava inserido e, com ironia sutil e crítica feroz, algumas de suas características marcantes, e representou bem essa mesma sociedade, a carioca, realçando seus elementos constitutivos, inclusive suas mazelas[5]. E, com fina ironia, Machado ousou retratar comportamentos que, para a época são considerados verdadeiros progressos.
O estilo de Machado de Assis corresponde a uma fotografia exata do seu espírito, de sua índole psicológica e, maneirosa, pois ele apalpa e tropeça e, sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da palavra. Enfim, sabemos que Machado era gago, além de epilético e negro.
O Sílvio Romero[6] foi feroz crítico e, ainda confundiu a obra de Machado de Assis e a vida do escritor, o que certamente é uma falácia. E, demonstrou desconhecer não apenas a obra do escritor como também os fundamentos da teoria da literatura, já amplamente divulgados naquela época.
Foi a crítica do século XX através de nomes expressivos da literatura brasileira, a exercer a tarefa de desvelamento das complexas enunciações de Machado de Assis e, assim a metalinguagem usada por Machado traçava um modo dialógico que implícita de desdizer o dito no mesmo passo em que este se dizia. Abrindo lacunas entre as reiterações, e por onde insinua o distanciamento irônico da diferença.
Do ponto de vista filosófico, a obra Machado de Assis, percebe-se que predomina a ironia que também parece humorista. Quando nós chamamos, por exemplo, um indivíduo pouco inteligente de gênio, estamos fazendo ironia. O humorismo[7] é ao contrário, ele é realista, não é idealista, ele vê a realidade, reproduz a realidade tal como ela mas, finge estar de acordo ou defender esta realidade. E, é este o caso de Machado de Assis. (CARDOSO, 1997).
O romancista construiu personagens femininas singulares, diferenciando-as daquele modelo visto, preferido e adotado pela sociedade burguesa dominante do século XIX. Aliás, modelo que já se formara desde a sociedade clássica da antiga Grécia.
Ao refletir sobre o gênero deve-se depositar o olhar sobre o mundo, considerando com propriedade o caráter biológico, o cultural, o histórico, o social, o ideológico e, até o religioso. Nesse sentido, o gênero apresenta-nos uma função analítica que traz à luz conflitos entre homens e mulheres e define formas de representar a realidade social e de intervir nesta. Ninguém nasce mulher, mas torna-se mulher. O “ser mulher” é uma construção social e cultural” (Simone de Beauvoir).
Essa função analítica a que o gênero se propõe, a humanidade tem presenciado, ao longo da história, transformações que têm levado a sociedade humana a uma inquietação, e, por que não confessar, de perplexidade. E, no plano de mutações sociais, não se limita apenas a uma evolução, ou até mesmo, a uma revolução dos costumes.
Tais mudanças sociais não somente questionam nossos comportamentos como igualmente nossos valores. E, tange ao mais íntimo ser e essência e a nossa identidade, nossa natureza humana seja de homem ou de mulher.
O pensamento têm sido fatores determinantes na construção do ser humano e, a cada fase humana traz uma relação com o masculino e com feminino e, ainda, com características próprias e cada uma destas traduz as prementes contradições de seu contexto.
Se na época primeva, em meio hostil, a espécie humana teve que lutar pela sobrevivência mediante a predominância masculina, dotada de maior força e agressividade. Já em outras eras, em meio mais domesticado e menos ameaçador a sobrevivência, poderiam florescer dimensões mais suaves, e prover atmosfera propícia à predominância da mulher.
A própria história se imbuiu de moldar esse viver em sociedade, o interagir com seus parceiros e, até levá-lo a reconhecer que é um ser de incompletude e, para tanto precisa de complementaridade. E, na tentativa de se adaptar as transformações que eram tão complexas e intrínsecas, o ser humano tem sido levado a um papel histórico, social e cultural.
O pensamento patriarcal como meio de adaptação da humanidade não foi feita pela violência, mas sim, pela solidariedade. E, jamais houve relações igualitárias entre homens e mulheres e cada um desempenhava uma função relacionada com seu papel. Assim, enquanto homem partia para a conquista do mundo e a mulher, que era considerada mais próxima dos deuses, porque desta dependia a reprodução das espécies, tinha suas atividades relacionadas ao lar e à família.
Nas sociedades de caça iniciavam-se as relações de força e o masculina passou a ser ao gênero predominante, e se tornou hegemônico. E, coube ao homem o domínio do espaço público e à mulher, o do privado.
A relação homem e mulher passou a ser estruturada com base no domínio desses espaços. E, com a complexidade desse espaço público, o homem passou a ter primazia sobre a mulher. E, daí o poder masculino veio a governar o mundo durante séculos.
De fato, a humanidade vivenciou diferentes formas de relacionamento de gênero e, no matriarcado, que era centrado na mulher e no patriarcado, com foco no homem, e atualmente, com alvorecer de novo paradigma civilizacional, conseguimos vislumbrar um muito além da distinção dicotômica dos papéis sexuais.
No decorrer da história, mesmo a realidade nos tendo mostrado a divisão homem e mulher nos vários tipos de sociedade, como a submissão da mulher ao domínio do homem, a figura feminina não pode ser totalmente apagada, pois o ser-mulher é algo essencial.
A mulher pode ser eclipsada, subordinada, submissa[8] e até tornar-se publicamente invisível, porém, jamais destruída, apagada ou desaparecida.
Ao falar e descrever o homem também falamos e descrevemos a mulher e vice-versa, pois, ambos formam a humanidade. Há de se enxergar a unidade da diferença e a diferença na unidade. Ambos fundamentam dois modos diferentes de viver, porém, relacionados intimamente posto que sejam seres humanos.
A complexidade do que seja o humano, entende-se que o masculino e feminino sejam princípios e, como tais significam e traçam um jogo de relações que continuamente constrói o humano seja como homem e mulher, sendo as principais forças construtoras e organizadoras da vida.
E, jamais entenderemos a totalidade do real, pois ao integrar-se a este, por meio de representações, de modelos, de símbolos e projeções que vão no servindo de referência para a construção de nossa realidade sócio-histórica.
Eis que uma das funções que a Filosofia visa cumprir é o pensar o que somos, e o que sabemos. Sendo também papel da Filosofia colocar em questão quem é esse singular ser, diferenciado que é, e ainda ser humano.
E, atenta ao questionamento, obtivemos muitas angústias que acompanham a evolução e a construção histórica, econômica, social e cultural, pois o que é dito, escrito e revelado sobre ambos se refere à questão essencial e restamos sem resposta. Afinal, o que é o ser humano? O que é ser mulher? O que é ser o homem e o patriarca nesse mundo? E, finalmente, qual é o sentido de vier? Particularmente, viver em sociedade.
Neste sentido, a questão do gênero, a saber, o masculino ou feminino que ultrapassa a distinção de homem e de mulher, enquanto papéis políticos, sociais, culturais, religiosos, ideológicos que desempenham em uma sociedade em determinado tempo e lugar.
Na sociedade grega, a condição feminina seria ainda mais precária do que a que se encontra no cenário cultural que foi focalizado por Machado de Assis. Basta apenas olhar um documento insuspeito para comprovar-se a afirmação. Abra-se a “Poética” de Aristóteles, na parte em que o filósofo fala de “Caracteres, Verossimilhança e Necessidade”, mais precisamente, no capítulo XV.
Na visão do filósofo, a inferioridade da mulher e de sua posição social ficam atestadas, justificando, assim, o pensamento masculino como instrumento de poder. Isto nos leva a pensar que há, por natureza, comandantes e comandados: o homem livre comanda o escravo, o homem comanda a mulher; esta desprovida de razão, de vontade, caracterizando-se como elemento subordinado à autoridade masculina.
Para Aristóteles, apesar de pertencer ao gênero humano e possuir a capacidade de deliberar, a mulher é distinta em relação ao homem, pois a ela falta a capacidade de decidir.
O modelo de mulher da época clássica aparece, no cenário social, como um bem precioso a ser guardado e preservado e que transmite prestígio e valor enquanto guardiã dos filhos e do ambiente doméstico.
Como mãe, ela se identifica a um ser intimamente ligado à sua casa, à sua terra, a seu lar. Como mulher, não é senão um ser que se submete às ordens do homem, às leis do Estado, incapaz de gerir a própria vida.
Se a mulher, inserida nessa sociedade, tem o mesmo status que os escravos, portanto, sem o poder de expressão, a tragédia grega evidenciará perfis que fogem um pouco à regra, ainda que tal audácia seja severamente punida.
Sófocles[9], em duas de suas tragédias, Antígona e Electra, traça o perfil de uma mulher diferenciada, avançada para os padrões da época. Suas personagens femininas apresentam um comportamento inovador, singular e contemporâneo.
Retrata uma mulher desafiadora, que põe em questão regras sociais, que é capaz de contestar as leis do Estado e as da família. Revela-nos, portanto, nesse traço feminino, um caráter de ação e atitude tipicamente masculinos na sociedade do período Clássico.
Nas tragédias citadas acima, o papel feminino diferenciado de Antígona e Electra: mulheres que transgrediram a determinação social que era imposta à mulher na época, conseguindo sair do espaço privado e fazendo a sua inserção no espaço público.
Antígona, protagonista da tragédia homônima de Sófocles, apresenta-se como uma mulher altiva, digna, instigante, corajosa, ciente da responsabilidade familiar que tem sobre seus ombros.
Ao desafiar seu tio Creonte, contrariamente aos padrões femininos da época, Antígona demonstra um espírito de coragem incomum para os moldes de mulher típica da Antiguidade Clássica. A sua figura talvez seja uma das mais complexas da tragédia grega. Isto porque seu estatuto de heroína solitária nos faz crer que seria quase impossível para uma mulher agir de tal forma.
A filha de Édipo e Jocasta foi, ao mesmo tempo, modelo de piedade filial e de dedicação fraterna. Depois de servir de guia a seu pai cego e de ter assistido seus últimos momentos, voltou a Tebas e testemunhou a luta entre Eteócles e Polinices.
Depois da morte dos dois príncipes, seus irmãos, Antígona não obedece a Creonte, seu tio e então rei de Tebas, que proíbe que se dê sepultura ao corpo de Polinices, que morrera combatendo contra a cidade.
Reconhecendo-se essa lei absurda, Antígona resolve infringi-la para cumprir um dever sagrado: o de enterrar Polinices. Esforça-se inutilmente para que sua irmã Ismene a ajude nessa tarefa. Sem êxito, vê-se sozinha nessa empreitada. À noite, fugindo à vigilância dos guardas de Creonte, deu a seu irmão Polinices o rito funerário adequado. Descoberta a sua transgressão, foi então presa e conduzida à presença do rei, que, impiedosamente, a condenou à morte.
Tal tragédia representa o infortúnio de Antígona, mas simultaneamente, a sua grandeza, simboliza, o poder da recusa e da legitimidade da resolva diante de qualquer poder, tirânico ou político, que queira, por direito, reinar ao mesmo tempo sobre a cidade e sobre o mais-além, sobre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos.
Enfim, a Antígona, de Sófocles atesta a dignidade da guardiã do ambiente doméstico frente ao poder totalitário da cidade. Antígona[10] encarnou a afirmação da autonomia feminina não identificada até então. E, sua audácia representa o ato de honradez, de fidelidade, de justiça, enfim, de um mais-além: a própria imagem da essência do ser humano.
Essa tragédia de Sófocles tem antecedentes na história da Guerra de Tróia. Agamêmnon, rei de Argos, é o mais poderoso dos chefes da Grécia lendária. Após a vitória dos gregos na luta que os manteve afastados de seus lares por dez anos, regressa a Micenas, onde Clitemnestra, sua esposa, apaixonara-se por Egisto, primo do infeliz chefe grego.
Clitemnestra, no mesmo dia do retorno do marido, mata-o, ajudada por seu amante, sob o pretexto de que o esposo sacrificara, antes de partir para Tróia, uma de suas filhas: Ifigênia.
Há duas versões da peça Ifigênia em Áulio, de Eurípides[11]. Uma delas narra o assassinato de Ifigênia por Agamêmnon. A outra narra o desaparecimento milagroso da princesa, sendo substituída por uma oferenda à deusa Ártemis, salvando assim Ifigênia da morte.
Ao assassinar Agamêmnon, Clitemnestra perturbou violentamente a ordem natural das coisas, e, portanto, não merecia permanecer impune. Por um processo também perfeitamente natural, o crime deveria provocar uma reação equivalente.
E por mais violenta que a cena possa parecer, fica evidente que, para restabelecer o equilíbrio, outro ato de violência deveria ocorrer. Clitemnestra cometera uma falta, contrariando os deuses, e, assim, inapelavelmente, deveria ser punida.
Devido ao referido crime, Electra se dispõe de forma corajosa e comovente a gritar pela morte de Clitemnestra, sua mãe, assassina de Agamêmnon. E, por mais que Clitemnestra pedisse, Electra exorta o irmão que golpeie com força a mãe, que em vão pede por misericórdia.
Ao insistir na punição de Clitemnestra e clamar por justiça, Electra demonstra uma firmeza irredutível, mesmo que, com esse ato, a heroína possa ser vista como uma mulher dura e implacável.
Tudo isso faz com que a figura da personagem Electra, nessa tragédia, se transforme e se enalteça, pois seu caráter vai além de revelar apenas a justiceira, mas aquela que, por um amor fraternal, é capaz de zelar pela organização social, a determinação dos deuses e a prática da justiça. O amor guia a justiça.
Tanto Antígona como Electra[12], personagens femininas que figuram nas tragédias da Antiguidade Clássica, são mulheres de comportamentos tão diferenciados para a época que valeria afirmar que, apesar de viverem em um tempo tão distante de nós, podem ser caracterizadas como mulheres de atitudes compatíveis com as também singulares mulheres machadianas.
As personagens femininas machadianas foram projetadas por seu criador não como objeto de posse do masculino, mas como sujeito atuante e identificado com o seu papel de mulher e como peça fundamental de uma sociedade.
Os narradores dos romances machadianos vivem envolvidos em tramas, memórias, reminiscências, falsas artimanhas, artifícios que têm à mão para envolver os leitores em inumeráveis embustes, que os conduzem a reflexões e enigmas muitas vezes indecifráveis.
Machado de Assis teceu suas narrativas de modo que seus leitores, mesmo os “distraídos”, vão aderindo ao pacto de leitura, na tentativa de buscar os deciframentos para as situações que lhes são postas. Isso faz parte da estratégia machadiana em colocar o seu leitor a par dos questionamentos do ser humano e dos reveses da vida.
O principal objeto da escrita de Machado de Assis é o comportamento humano. E, tal horizonte é galgado mediante a percepção de palavras, pensamentos, obras e silêncios de personagens que representam tanto homens como mulheres que viveram no Rio de Janeiro, durante o Segundo Império.
No ensaio “Dom Casmurro começou na imprensa com José Dias”, publicado em Literatura e dissidência política (2006), ilustra muito bem a estratégia de despistamentos da narrativa machadiana.
A partir do confronto entre o texto “Um agregado”[13], publicado primeiramente no periódico República em 1896, no Rio de Janeiro, e que coincidentemente apresenta o subtítulo entre parênteses “Capítulo de um livro inédito”, e alguns capítulos do romance Dom Casmurro, a autora aponta “modificações, cortes e acréscimos” que
Machado quis, deliberadamente, fazer com a intenção de “apagar” pistas, cortar evidências a fim de tornar as questões apresentadas no romance mais ambíguas e indecidíveis.
Malard (2006) destaca similitudes entre os textos, apontando para uma “reengenharia artística” entre Um agregado e Dom Casmurro. Como exemplo, a autora enfoca a apresentação da casa de Bentinho.
Excetuando-se a apresentação da casa do Bentinho criança, algumas alterações factuais são de menor interesse. Em “Um agregado”, o enredo começa em dezembro de 1855, e a casa fica na Rua do Resende. No romance, o começo é em novembro de 1857, e a moradia se localiza na Rua de Mata-cavalos[14].
A apresentação da casa foi deslocada para o capítulo II, intitulado “Do livro”, e se configura bem mais detalhada. No capítulo do jornal, “é um grande prédio de sete janelas, vasto saguão, extensa chácara ao fundo. Era mui bem pintada e algumas salas a fresco, - alguns tetos lavrados”. (Assis, 1969).
Essa última frase me soa mal no escritor maduro. A única coincidência entre a descrição do jornal e a do romance é os “tetos lavrados”. Isso comprova que o capítulo II ainda não existia àquela altura, pois o autor não iria apresentar duas vezes a mesma casa. (MALARD, 2006).
A autora ressalta que Machado cuidadosamente trabalhou a linguagem no sentido de “falsear” os possíveis caminhos para deciframentos de enigmas propositalmente colocados por ele nos textos citados. Malard ainda cita diferenças entre o romance e o conto publicado no jornal: o sobrenome de Pádua é Fialho; no romance, a aproximação das famílias concretiza-se por uma enchente, no jornal, ela é feita por um favor que D. Glória prestou à mãe de Capitu.
Ainda que a ensaísta tenha destacado que os romances machadianos, excetuando Ressurreição, Esaú e Jacó e Memorial de Aires, foram publicados com várias modificações e Quincas Borba sofreu alterações profundas em duas versões integrais. Ressalta também que, nesse aspecto, Dom Casmurro é singular.
Significando que Machado de Assis, ao escrever suas obras, intencionalmente adota a estratégia da reescritura como uma das formas de “dissimular”, dando trabalho a seus leitores, principalmente àqueles que ingenuamente creem estarem decifrando o indizível, o enigmático de seus textos.
Nos romances machadianos, por diversas vezes, as referências e as citações que o romancista faz nas grandes obras e grandes escritores e muitas das citações são literais. Comprova-se, então, que Machado não escrevia para um leitor qualquer.
Seus leitores necessitavam de outras leituras para que pudessem compreender o sentido que pretendia, pois muitos deles estavam encobertos sob o “manto diáfano da fantasia”, o que tornava imperativo um sistema de chaves para abrir os esconderijos da sólida verdade, e deste modo, ele se justificava.
Machado, está sempre a se referir às tragédias shakespearianas em suas obras. Não teria o romancista também buscado em Sófocles e em Shakespeare o modelo de mulher forte e transgressora, tais como Antígona e Electra, Desdêmona e Cordélia[15], para construir suas personagens femininas?
Não teria ele adotado essa postura como forma de colocar em questão as instituições daquele século? Não seria uma maneira de não só “escancarar” aquela sociedade dominante mas também por considerar que já era tempo de a mulher transgredir a norma vigente?
Machado de Assis estabeleceu um novo paradigma para a mulher dentro da sociedade de seu tempo, e, da mesma forma que nos chama a atenção no sentido de atentarmos para as mudanças e as novidades que só viriam a se concretizar em décadas posteriores. Isso significa dizer que o escritor fluminense conseguiu expressar, através da literatura, não só as marcas do feminino daquela sociedade, agindo no espaço sócio-histórico do masculino, mas também conseguiu vislumbrar um mais além, ou seja, a essência do ser humano.
É notório que o leitor machadiano tenha sua atenção voltada para o que se poderia identificar como uma questão de alteridade, vendo as mulheres que transitam nos romances de Machado como seres diferentes, no sentido de ostentarem uma condição que as identifica como seres que incomodam por suas posturas, atitudes e reivindicações que vão de encontro aos princípios culturais historicamente marcados.
Há uma evidente manifestação de desconforto diante do que se assistia na sociedade de sua época, em que a mulher, praticamente, desaparecia como sujeito social, envolvida por preconceitos e restrições que lhe negavam direitos e lhe subtraíam a condição de decidir o seu próprio destino. A mulher não desfrutava o privilégio do saber e da palavra, pois estes eram próprios do masculino.
Machado de Assis ficcionalizou figuras femininas que pudessem pôr em xeque a situação dominante. É uma atitude, sem dúvida, avançada, motivo por que se costuma dizer que as mulheres machadianas se colocam como sujeitos revolucionários, antecipando, em pelo menos um século, as condições de reconhecimento e as conquistas que as mulheres vieram a obter no século XX.
Mas é forçoso também reconhecer que as leis e mecanismos que relativizam o tempo encontram na obra literária um terreno propício para o seu exercício. Tanto é assim que tais perspectivas podem ser encontradas na origem mesma da expressão artístico literária da cultura ocidental. É o que se pode verificar no mundo grego, em épocas que distam mais que 2500 anos dos nossos dias.
Através da Revolução Industrial[16], a história da humanidade que conhecemos tem sido a história de personagens masculinos, sejam eles guerreiros, sacerdotes, heróis ou artistas: os faraós do Egito, os profetas da fé islâmica, os evangelistas que disseminaram o culto cristão, os imperadores da China, os samurais do Japão, sem exclusão, foram todas personagens masculinos.
Não encontramos nessa história[17] menção à figura feminina que pudesse ser considerada, na ótica do historiador, a expressão de valores com dimensão universal.
Quando a mulher surge nas criações artísticas é invariavelmente como musa inspiradora, objeto de desejo, campo de sonhos, o ponto fraco nas muralhas do inimigo. Os nomes podem variar, mas a imagem é sempre esta, de objeto, jamais de sujeito da ação.
Personagens como Antígona e Electra, criadas por Sófocles[18], são quase exceções. Estas personagens femininas, contestadoras e inconformadas com as leis masculinas que definiam o comportamento do conjunto da sociedade, foram punidas e tiveram trágico fim, como se impunha na tragédia grega aos transgressores da moral convencional. Assim, por serem transgressoras, desempenharam, naquela sociedade, um papel diferenciado para a época.
O discurso literário, tal como os demais discursos, está sujeito a condições sociais, históricas, culturais e de grupos que com ele interagem. A questão do gênero não é certamente um fato episódico, pois o gênero apresenta aspectos específicos em face aos momentos históricos vivenciados por ele.
Michelle Perrot (2007) enfatizou que a relação entre homem e mulher baseada na diferença sexual (relação, portanto, biológica) é questionada pelos movimentos femininos contemporâneos que passam a empregar o conceito de gênero (uma construção social, cultural). A autora questionou a maneira como se abordar a relação entre masculino e feminino: “O sexo é a determinação primeira? Ele não pertence ao gênero, num corpo cuja historicidade seria prioritária?
E, embora a definição de gênero[19] não seja pautada única e exclusivamente na diferença anatômica do sexo, é a partir dessa constatação que é dada a largada no processo de definição do masculino e do feminino. Nesse quesito pode-se fazer um paralelo com as considerações salientadas por Bourdieu.
O século XIX foi um período extremamente diferente dos anteriores em todo o Ocidente. Ao contrário do que ocorrera no passado, o mundo ocidental vivencia, nesse século, mutações e mudanças de conceitos e paradigmas que servirão de suporte para uma visão inovadora da humanidade sobre o mundo contemporâneo.
Também para a sociedade brasileira, esse século representou transformações, tais como: a consolidação do capitalismo, a urbanização das cidades, o que levou a novas alternativas de convívio social. A ascensão da burguesia e o surgimento de uma nova mentalidade acerca das relações sociais, que envolvem o homem e a mulher, representaram alterações na concepção e na ocupação dos espaços público e privado.
Machado de Assis, ao escrever a sua obra, traduziu, de forma inovadora, as relações sociais e humanas dessa sociedade em transformação. Utiliza-se desse mesmo contexto como matéria-prima para suas histórias, retratando criticamente os problemas, as preocupações, os costumes e as tradições, os ideais da vida burguesa carioca na época do Segundo Reinado.
Nenhum escritor foi tão atento às mudanças que ocorreram nessa época quanto Machado, pois, no seu exercício literário, foi capaz de expressar, de forma significativa e contundente, os fenômenos e as manifestações sociais de seu tempo.
Bentinho, em “Dom Casmurro”, é bom exemplo de como o escritor fluminense realçou as personagens que se identificam com o modelo social das famílias endinheiradas do século XIX. D. Glória, para citar um outro exemplo, depois da morte do marido, reverte as propriedades rurais que possuía em casas de aluguel, apólices, escravos.
Convida seu irmão, Cosme, advogado, e a prima, Justina , ambos viúvos, para virem morar com eles na casa de Mata-cavalos. Todos os membros da família Santiago viviam na ociosidade, usufruindo do prestígio e das comodidades que, como toda família abastada, possuíam.
Em “Machado de Assis na Literatura Brasileira”, a visão que o romancista carioca tinha acerca dessa sociedade. O crítico aponta o retrato que Machado fornece da sociedade de seu tempo: as condições da família patriarcal, impondo as conveniências sociais aos direitos do amor nos casamentos forçados, “complicação do natural com o social”; os reflexos psicológicos e sociais das condições criadas pela escravidão; as repercussões da guerra externa; os costumes políticos da época, os problemas financeiros, o espírito crítico ligado à renovação cultural provocada pelo Positivismo e Naturalismo na década de 1870, em consonância com o movimento de afirmação da consciência literária nacional. (COUTINHO, 1966).
Coutinho destacou, a sociedade, na visão do escritor fluminense, reflete a vida burguesa das famílias mais abastadas do Rio de Janeiro bem como os aspectos psicológicos e culturais de seus integrantes.
Vale dizer ainda que Machado, além de retratar essa sociedade carioca, tipicamente marcada por exterioridades, também usou a sua genialidade para penetrar no interior do ser humano e analisar a sua essência.
O romancista, ao compor diversas personagens de seus romances, traça seus perfis de modo que o leitor venha a conhecê-las pelos seus valores ou contra-valores, sua subjetividade, sua interioridade e sua essência.
Sem voz, a mulher era colocada em lugar de submissão, e caracterizada por um leque de estereótipos quase sempre equivocados. O que se exigia delas era que fossem símbolos da harmonia e do equilíbrio no âmbito doméstico, para que, além de tudo e acima de tudo, pudessem exercer o papel de mães[20].
Del Priore, em seu livro “História das Mulheres no Brasil”[21], aponta a importância desse papel de ser mãe para a mulher do século XIX. Destaca-se a perspectiva que se tinha da mulher: a de representante de um sólido ambiente familiar, de um lar acolhedor, de filhos educados e de uma esposa dedicada a seu marido.
Ressalta ainda que o perfil feminino, tido como modelo naquele momento, era marcado pela intimidade das famílias e, principalmente, pela maternidade, o que, certamente, era visto com bons olhos, pois geraria filhos lindos e perfeitos para que pudessem bem circular no meio em que viviam.
Mas, mesmo nessas condições tidas como “desfavoráveis”, um número significativo de mulheres foi se firmando no contexto do espaço público. Machado de
Assis, como nenhum outro escritor daquele momento, soube retratar transgressões de suas personagens femininas que, de certo modo, iam de encontro aos princípios sociais ditados pela classe privilegiada do século XIX.
O estilo de vida da elite burguesa na sociedade brasileira da época era marcado por influências europeias. O espaço urbano, antes usado por todos em festas, convívio social, encontros coletivos, começa a ser governado por um novo interesse, controlado pelas elites dominantes, com atuação eminentemente masculina.
Os homens circulavam no espaço público como gestores do cotidiano e como senhores do privado, de onde governavam e dominavam, retomando concepções e comportamentos de séculos anteriores.
Em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, algo de exemplar. Machado de Assis traduz, através da personagem Brás, os atos ignóbeis a que ele se submete para demonstrar que, para a sociedade, o status quo está acima de tudo.
Brás Cubas faz-se deputado para facilitar as negociatas de Cotrim, marido de sua irmã Sabina. Diferentemente de Brás, que já nasceu rico, o cunhado luta, mesmo que inescrupulosamente, para enriquecer.
Faz tráfico de escravos, caridade pública e a notícia nos jornais para acobertar a violência praticada contra os escravos “fujões”, maltratados por ele até o sangramento. Brás aproveita-se de sua prerrogativa de parlamentar para, sem riscos, adotar o tráfico de influências e favorecer o parente.
Na perspectiva irônica do narrador defunto, a prática política é feita por homens que legitimam a posição de poder, com regras arranjadas por conchavos, corrupção, exploração da mão-de-obra escrava.
Assim, apesar das mudanças históricas e políticas ocorridas, a classe dominante e a classe dirigente as consideram irrelevantes e nada mudam, pois lhes é conveniente manter as coisas como estão.
Do ponto de vista político, no âmbito dessa sociedade elitizada e elitizante, as mulheres eram vistas sob o olhar da “desordem”. Elas eram consideradas símbolos de desequilíbrio, mais sensíveis do que racionais, instintivas e “selvagens”; portanto, incapazes de administrar qualquer coisa de caráter público.
Foram criadas para serem mães, donas de casa, para a família, para as coisas domésticas e não para assumir funções de instâncias políticas ou públicas. Elas tinham que representar o papel da elegância, do luxo, da beleza e do prestígio de seus maridos.
A personagem de “Dom Casmurro” não se enquadra nesse papel, característico de toda mulher de sua época. Por várias vezes, na obra, podemos notar uma Capitu avançada – mulher diferenciada e singular.
Ao assumir a administração da casa, após a morte da mãe e a aposentadoria do pai, ou até mesmo quando coloca em questão o relacionamento entre ela e o marido nas discussões após o casamento[22], por exemplo, Capitu, de fato, adota posições consideradas, para a época, muito mais adequadas ao âmbito masculino.
Nota-se nessa conversa entre Bentinho e José Dias, a condição descentradora de Capitu. Antes, “a pequena era uma desmiolada”, na definição do agregado, agora, moça já feita, é considerada uma boa nora para D. Glória.
Em um outro episódio, Capitu se mostra ímpar na condição de uma mulher além de seu tempo. Quando Bentinho confessa a ela as suspeitas sobre a paternidade de Ezequiel, fica indignada com tal dúvida. Estupefata, Capitu toma a iniciativa de pedir-lhe a separação, pois se só restava ao marido a desconfiança, o que sobrara de seu casamento?
Capitu não hesita em demonstrar sua estupefação diante da acusação do marido que sequer lhe permite defesa. Não fora a personagem transgressora que se conhece, podia se esperar dela uma atitude diferente, ou seja, uma atitude de submissão e silêncio.
A historiografia das mulheres do século XIX[23] relaciona-se inteiramente à condição de submissão, de subordinação à esfera de domínio paterno ou à de seus maridos. Nesse quadro de tradição patriarcal, as camadas femininas raramente escapavam de serem vistas em um papel secundário, inferior.
Percebe-se que o recurso da ironia e da caricatura foi utilizado pela autora, na Revista Nossa História, como um poderoso instrumento de reforço da ideia de inferioridade da mulher, na sociedade carioca do século XIX.
Era essencial que a “boa senhora”, as mulheres chamadas de “boa família”, soubessem conservar um ar modesto e uma atitude séria, e que a todos impusessem respeito.
E mais, que a mulher sensata, principalmente se fosse casada, evitasse sair à rua com um homem que não fosse o seu pai, o seu irmão ou o seu marido. Ou seja, a mulher casada deveria distinguir-se socialmente, respeitando os ditames da moral e dos bons costumes, evitando assim incorrer em injúria grave, definida como o procedimento que consiste em ofensa à honra, à respeitabilidade ou à dignidade do marido.
Caso contrário, iria expor-se à maledicência, comprometendo não só a sua honra como a de seu marido e também a de seus familiares. Isso significa dizer que o julgamento[24] do comportamento do marido pela sociedade dependia em grande parte do comportamento de sua esposa.
Baseando-se na crença de uma natureza feminina, em que a mulher era dotada biologicamente para desempenhar as funções da esfera da vida privada, o discurso era bastante conhecido: o lugar da mulher é o lar, e sua função consiste em casar, gerar filhos para a pátria e plasmar o caráter dos cidadãos do futuro.
Dentro dessa ótica, não existiria realização possível para as mulheres fora do lar, nem para os homens dentro de casa, já que a eles pertenciam a rua e o mundo dos negócios.
A imagem de mãe-esposa-dona de casa como a principal e mais importante função da mulher correspondia àquilo que era pregado pela Igreja, ensinado por médicos e juristas, legitimado pelo Estado e divulgado pela imprensa.
Mais do que isso, tal representação acabou por encobrir o ser mulher, o que a levou a ser considerada um símbolo de esposa exemplar, de dedicação aos filhos e ao lar, e, principalmente, de amor materno. Portanto, à mulher incumbia a tarefa de fazer do lar um templo em que se cultuasse a harmonia, o respeito, a ordem, a obediência, a felicidade perfeita.
Diferentemente do que se esperava da mulher dessa sociedade em que se exigia dela uma representação de amor e dedicação ao marido e aos filhos, Sofia, personagem de Quincas Borba, constrói uma imagem de mulher desembaraçada, desenvolta, mercantilista e surpreendente.
Ela foi capaz de transitar num campo de domínio masculino, fazendo uso de seus atributos, para que pudesse ascender socialmente. Utiliza-se de Rubião para satisfazer seus caprichos e faz dele trampolim para alcançar o que desejava.
O marido e homem de conveniências, mesmo tendo conhecimento do comportamento impróprio da esposa, silencia-se com o intuito de realizar seu grande sonho: fazer parte da sociedade elitista da época e Rubião era o instrumento imprescindível para concretizar o que tanto almejava.
A personagem Estela de “Iaiá Garcia” vai fugir justamente desse constrangimento ao resistir aos assédios do mancebo Jorge Gomes, contrariando inclusive os desejos do pai. Segundo Nizza da Silva (1984), ao longo dos séculos XVII e XVIII havia o incentivo para matrimônios onde houvesse igualdade na idade, na condição social, na conformidade física e moral. É possível, a partir dos indícios nos romances, que essa prática tenha vigorado século XIX a fora.
Um mundo para a mulher fora da esfera familiar e do casamento era praticamente impensável para o século XIX. A observância de uma dupla moral em relação à sexualidade era clara em meados daquele século. Se para o homem atestar sua virilidade era algo louvável e até incentivado, o mesmo não acontecia com a mulher. A mulher deveria permanecer virgem antes do casamento e fiel ao marido depois dele.
A infidelidade conjugal masculina e a iniciação da vida sexual em prostíbulos ou com as escravas era, no século XIX, motivo de orgulho dos mancebos tupiniquins. Com isso o homem atestava a sua virilidade.
Se o mundo feminino no período compreendido pelos romances de Machado era, em muitos casos, um prolongamento do casamento, era imprescindível a observância de certas regras. Portanto, segundo Stein (1984), se o marido por qualquer motivo, principalmente o adultério[25], resolvesse repudiar a esposa, ela estaria liquidada socialmente.
Machado de Assis, ao desenhar o perfil da personagem Sofia, tem a intenção de evidenciar que a mulher, na sua visão arguta, não mais estaria reclusa ao ambiente doméstico ou submissa às ordens do marido.
E que, de acordo com a mentalidade avançada que o romancista tinha acerca das mudanças ocorridas naquele século, não caberia à mulher simplesmente o papel de dona-de-casa, esposa e mãe. Machado evidencia que a mulher queria mais, um muito além.
O Código Civil daquele século sacramentava a inferioridade da mulher casada em relação ao marido. Ao homem, chefe da união conjugal, cabia a representação legal da família, a administração dos bens do casal como também os particulares de sua esposa.
O eminente jurista Clovis Bevilacqua, autor do projeto do Código Civil brasileiro em 1899,(citado por Andrea Borelli) em um posicionamento muito questionado, já defendia essa igualdade do crime de adultério entre homens e mulheres, trazida no Código Penal brasileiro de1940.
Ou seja, essa ordem jurídica incorporava e legalizava o modelo que concebia a mulher como dependente e subordinada ao homem e este como senhor da ação. Vale dizer ainda que cabia ao marido a administração e o usufruto de todos os bens, inclusive dos que tivessem sido trazidos pela esposa no contrato de casamento.
Delineava-se, cada vez mais e com maior nitidez, a oposição entre as esferas pública e privada. Ao homem cabia a identidade pública, à mulher, a doméstica.
Essa era a base necessária para a harmonização das relações conjugais e familiares. As cidades, que se urbanizavam naquele momento, trocavam a aparência monótona e insípida de antes por uma atmosfera cosmopolita e metropolitana.
Embora ainda guardassem muito da tradição, recebiam uma população nova e heterogênea, composta por representantes das elites que se mudavam do campo para o meio urbano. O desenvolvimento das cidades e da vida burguesa influiu na disposição do espaço no interior dos lares, tornando-os mais aconchegantes. Este espaço serviu para a demarcação mais acentuada dos limites do convívio e das distâncias sociais entre a elite e o povo, permitindo um processo de “privatização” da família, marcado pela valorização da intimidade.
A organização familiar era representada pelo casamento e quando realizado entre famílias ricas e burguesas era tido como símbolo de ascensão social ou como forma de manutenção do status.
Com a personagem Capitu foi diferente, pois ela vinha de uma família pobre e não havia meios de manter o status social que não possuía. O pai, Pádua, era empregado de uma repartição pública e possuía o suficiente para o sustento da família. José Dias, ao se referir ao pai de Capitu no romance, caracteriza-o como Tartaruga.
Esse apelido faz alusão a um réptil aquático que só vem à terra para a desova, assim sendo, pode-se perceber, por inferência, pela voz do agregado, as “verdadeiras” intenções do pai de Capitu em casar a filha com Bento Santiago; já que este era um rapaz de posses e poderia, com o casamento, assegurar-lhe um futuro promissor.
As mulheres tinham, a partir dessa visão burguesa, a função de contribuir para a construção do projeto familiar, através de sua postura nos salões, como anfitriã; e, no cotidiano, como boas esposas e abnegadas mães.
A ideia de que ser mulher é ser quase integralmente mãe dedicada e atenciosa passa a ser reforçada, servindo como máscara social. E esse ideal só podia ser atingido no ambiente familiar.
No cenário das figuras femininas em Machado de Assis, há de se considerar um caso específico: a personagem Fidélia, em Memorial de Aires[26]. Foi feliz no primeiro casamento e – tudo indica – também será no segundo.
O seu comportamento é ideal para uma jovem viúva que conserva o meio-luto depois da morte do marido. Apesar de explicitamente aparentar-se como uma mulher delicada, dócil, gentil, bonita, educada e bem situada, vivendo uma vida de harmonia, habilidosa ao piano e na arte de pintar, Fidélia, entre o velar e o desvelar, faz-se determinada e capaz de decidir por si mesma.
Fidélia, ao encontrar Tristão, seu futuro marido, reage inicialmente às suas investidas. No entanto, percebe que ele, tal qual o primeiro marido, poderia fazê-la feliz. É importante reconhecer que, na aparência, temos uma jovem viúva que se enquadra no figurino da mulher que vê no casamento uma necessidade para sua condição social.
Mas, por outro lado, é necessário ler as entrelinhas do discurso machadiano, através do qual se pode perceber a figura diabolicamente sedutora de Fidélia.
Tudo se caracteriza na forma como o Conselheiro Aires, oscilando entre a sisudez e a respeitabilidade do velho (podia-se até mesmo dizer, a figura do pai) e a entrega aos desejos do homem, acaba produzindo uma narração cheia de ambiguidades e sugestões que fazem a leitura voltar-se sobre si mesma, num jogo de significações que deslizam incessantemente, oferecendo interessantes resultados.
Essa ambiguidade é que pode levar o leitor atento a perceber, em Fidélia, mais do que a recatada viúva que vai recompor sua vida de esposa. Na verdade, o texto machadiano aponta a mulher em quem se projeta uma sensualidade que desarticula o equilíbrio do velho diplomata, pois é ele próprio quem se denuncia na narração que faz.
Esse episódio é cheio de significações. Para citar alguns exemplos, destaca-se o momento em que Aires aponta para a dimensão erótica de Fidélia. “Quero aludir somente à correção das linhas, - falo das linhas vistas; as restantes adivinham-se e juram-se” (2004).
Outro aspecto a ressaltar são as insinuações e as ambiguidades que dão forma à narrativa. No mesmo episódio, Aires recita um verso do poeta inglês Shelley[27]: “I can give not what men call love”[28]. Nota-se que ele é absolutamente ambíguo, pois primeiramente afirma que disse comigo em inglês, ou seja, a língua estranha é um disfarce para enfrentar a si próprio, para dizer a si mesmo algo constrangedor.
Logo em seguida, diz que repetiu em prosa nossa, ou seja, na língua íntima/nossa; mas aí há outro disfarce: não é ele, Aires, quem está dizendo na nossa língua a vexatória verdade, mas se trata da confissão do poeta.
Dubiedade em cima e sucedida de dubiedade, tem-se, a seguir, o que seria uma espécie de confissão. Ainda assim, não se trata de uma confissão (essa é do poeta), mas uma composição, a “minha composição”: “Eu não posso dar o que os homens chamam amor”.
No campo das ambiguidades, vale enfatizar também a personagem Sofia e sua insidiosa relação com Rubião. No capítulo em que são surpreendidos pelo Major Siqueira, temos um texto cheio significações múltiplas.
Notável é perceber uma homologia entre as personagens machadianas. Basta ver como Sofia se recompôs imediatamente, afetando, logo em seguida, a mais cândida naturalidade, enquanto Rubião fica vexado, calado, pondo tudo a perder.
Pode-se ver que Sofia está para Capitu, do mesmo modo que Rubião está para Bentinho. Mais uma vez, tem-se a predominância da mulher sobre o homem, bem de acordo com os princípios projetados pelas duas narrativas.
O estilo de vida da elite dominante era marcado, no Brasil, por influências do imaginário da aristocracia portuguesa, em que se distinguiam a casa-grande e a senzala.
As alcovas, espaço de intimidade e de individualidade, serviam, principalmente, às mulheres como lugar de segredos, de explosão de sentimentos: lágrimas de dor ou de ciúmes, saudades, declarações amorosas contidas, leitura de romances pouco recomendáveis.
A interiorização do espaço doméstico, principalmente de casas ricas, abriu-se para uma espécie de apreciação pública por parte de um restrito círculo de parentes e amigos. As salas de visita e os salões (espaços intermediários entre o lar e a rua) eram considerados “máscaras sociais”, onde se impunham regras para bem receber e bem-representar diante das visitas.
Esses espaços eram abertos de tempos em tempos para a realização de festas, jantares, saraus, cujo objetivo primordial era apresentar as lindas moças aos distintos rapazes, para que eles pudessem escolhê-las e desposá-las.
Uma das formas adotadas para aparentar o requinte e o luxo da família era o vestuário. O tipo de tecido ou o estilo dos trajes indicavam o mundo em que viviam as mulheres. Penteados, veludos, sedas e leques faziam parte do guarda-roupa das mulheres ricas. Os vestidos rodados e embabadados ficavam a cargo das modistas da Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, o centro do burburinho e das futilidades.
Mais uma vez a personagem Sofia, em Quincas Borba, é o exemplo. O narrador faz questão em evidenciar como Palha se sentia orgulhoso da mulher e como este sentia prazer em ostentá-la no meio social.
Com a descrição da personagem Sofia, Machado realça ironicamente o universo das futilidades e das conveniências que conduziam os integrantes da alta sociedade carioca do século XIX e serve-se dela também para, de certo modo, patentear a história das elites brasileiras.
O teatro e a ópera eram programas cotadíssimos, assim como os bailes da Corte e os saraus literários nas casas dos bem-nascidos. As famílias mais abastadas possuíam bens, propriedades rurais, títulos, enfim, seus descendentes não precisariam “lutar” para ganhar a vida, pois herdavam de seus antepassados o que lhes provia para viver na abastança e no ócio.
Era voz comum, na época, que as mulheres não precisavam trabalhar ou ganhar dinheiro. Cabia aos maridos sustentarem-nas e a seus filhos, pois era responsabilidade destes garantir o bem-estar e o conforto de sua família.
Em “Dom Casmurro”, quando Capitu entrega a Bentinho as libras que economizou, o marido fica furioso, certamente atribuindo a esse ato um caráter de afronta ou até de desrespeito por parte da esposa.
O episódio da revelação que Capitu faz de que possuía dez libras esterlinas. É importante, nesse texto, ver o jogo de significantes, uma vez que a ideia do que existe mas está escondido e o valor do escondido (libras esterlinas), que é muito maior do que o explícito, produz um recobrimento de cenas e de pessoas que apontam na direção de Bentinho (o explícito) e Escobar (o escondido).
É importante ainda ver a presença física de Escobar que, segundo Capitu, fora a sua casa para proceder à conversão do papel em ouro. Explorando-se a articulação dos significantes a que se fez referência, tem-se a troca que Capitu fizera (de Bentinho por Escobar), acrescentado que “eu não disse para que você não desconfiasse”.
Tais considerações não querem, em absoluto, afirmar a comprovação do adultério[29], vendo no episódio uma evidência da traição de Capitu. As palavras que bailam no texto constituem aquele instrumento utilizado por Machado para fazer com que as ambiguidades possam sugerir algo sem afirmações categóricas.
Aliás, essa ideia está no corpo mesmo do texto, logo no início, quando Bentinho, que estivera falando de Marte, afirma: “Realmente era de Marte, mas é claro que só apanhara o som da palavra, não o sentido”. Temos aí, o caso clássico de incompreensão motivada pela não articulação entre significante e significado.
Capitu apenas apanhara o significante, o elemento material do signo, que ela captou através do som. Mas faltou, para que se procedesse a compreensão (o sentido), que ela ajustasse àquele significante o seu significado (que, no texto, é chamado de sentido).
Na verdade, as ambiguidades, os sentidos escamoteados, os enganos representam a própria dubiedade que acompanha todo o livro e que se traduz na impossibilidade de se poder dizer se teria ou não havido o adultério.
Mas, naquele ambiente de frivolidades e ostentação social em cujo cenário o poder era o do masculino, muita coisa estava por mudar; a leitura passa a fazer parte do universo feminino, ainda que as histórias retratassem heroínas românticas, o casamento e idealização das relações amorosas. O ócio entre as mulheres da elite é que as incentivou à absorção das dessas novelas românticas.
Apesar de algumas mudanças nesse cenário social, muitas mulheres nasceram, cresceram, casaram-se e nunca aprenderam a ler. Não estudaram as primeiras letras nas escolas particulares, que eram dirigidas por padres, e também não foram enviadas ao exterior como ocorria com os rapazes de sua categoria social.
Enquanto os homens liam Cícero[30], em latim, ou recebiam noções de grego e do pensamento de Platão e Aristóteles, as mulheres aprendiam a arte de bordar, o crochê, a costura e a música.
Somente às mulheres abastadas cabia a leitura de romances cujas histórias retratavam heroínas virtuosas, possuidoras de valores burgueses e capazes de representar a idealização das relações amorosas e das possibilidades de casamento. Excluindo esses romances, o prazer de outras leituras continuava sendo um ato somente para os homens[31].
O ser mulher no século XIX, no Brasil, foi traçado por um vigoroso e preciso discurso ideológico, que reunia tanto conservadores quanto diferentes segmentos de reformistas e que acabou por desumanizá-las como sujeitos históricos, ao mesmo tempo que cristalizava tipos de comportamento, convertendo-os em rígidos papéis sociais.
O conceito de que a mulher[32], à época, era em tudo “o contrário do homem”, sintetizou a construção e a difusão das representações do comportamento feminino ideal, que reduziram ao máximo suas atividades e aspirações, servindo isso, inclusive, para encaixá-la no papel de “rainha do lar”, sustentada pelo tripé mãe-esposa-dona de casa.
Encontramos em diversos escritores, em todos os tempos, mas, especificamente, em nosso caso, centrado no final do século XIX, a presença de informações deveras significativas. É o exemplo de Machado de Assis e seus perfis de mulheres.
O narrador “escorregadio” em Memórias Póstumas de Brás Cubas. Qual das fisionomias de Brás é a verdadeira? Está claro que nenhuma em particular. Tanto mais que a situação narrativa é troça notória ela também (o defunto autor), o que baralha as coordenadas da realidade ficcional.
Noutras palavras, faltando credibilidade ao narrador, as feições que constantemente ele veste e desveste têm verdade incerta, e tornam-se elemento de provocação, esta sim indiscutível. Idem para a indefinição, ou para a troça, que desestabilizam o estatuto literário: deixam planar, com a dúvida sobre o gênero, o risco de uma estocada não-regulamentar.
O terreno é movediço e perigoso, pois caberá ao leitor orientar-se como pode, desamparado de referências consentidas, e tendo como únicos indícios as palavras do narrador, ditas em sua cara, com indisfarçável intenção de confundir.
Uma espécie de vale-tudo onde, na falta de enquadramento convencionado, a voz narrativa se torna relevante em toda a linha, forçando o leitor ao estado de sobreaviso total, ou de máxima atenção, própria à grande literatura.
Ficamos conhecendo tal personagem pela voz de Brás Cubas, o narrador defunto. Ao narrar as suas memórias, o leitor toma conhecimento de suas peripécias e trapaças e o significado que tiveram Marcela e, principalmente, Virgília em sua vida.
Virgília é astuciosa, ousada e elegante. Tem interesse em ascender socialmente e, para tanto, não mede sacrifícios para alcançar seus objetivos. Participa das festas da vida burguesa carioca e faz questão do bom e do melhor, em que se incluem as audácias da elegância moderna tanto quanto as vantagens da situação tradicional.
Na narrativa, essa protagonista do romance, ainda jovem, conhece Brás cujo pai tinha interesse em casá-lo com a moça com o propósito de fazê-lo deputado, através da influência do futuro sogro. Entretanto, isso não acontece e Virgília casa-se com Lobo Neves, pessoa influente naquele meio social. Apesar de frustradas perspectivas de Brás Cubas, ele, como narrador, apresenta Virgília com todas as características de grandeza de uma mulher diferenciada.
Virgília, além de “uma criaturinha bela”, é “apetitosa”, demonstrando o caráter atraente e sedutor da personagem, que usa desse artifício para “capturar” Brás, o seu amante, e cada vez mais envolvê-lo como faz uma serpente, da mesma forma que ela se utiliza desses dotes para transitar livremente no espaço público.
Era casada com Lobo Neves, Virgília vive uma vida familiar aparentemente “sólida”, aos olhos do social e do político, mas mantém um idílio amoroso com Brás, que lhe proporciona aquilo que lhe faltava no casamento: o ardor da paixão. Assim, ao se tornar amante de Brás, ela lhe faz uma proposta audaciosa de alugar uma casa para ambos onde, distante dos olhares curiosos, pudesse salvaguardar a sua reputação.
Fina e elegante, mulher e casada, adota a arte da dissimulação para disfarçar o seu comportamento adulterino. Essa estratégia utilizada para a sua dupla realização pode ser tomada como característica de mulher avançada e autônoma em sua época.
Nota-se a estupefação e surpresa de Brás ao ver a sua antiga namorada, agora esposa de Lobo Neves, mais radiante, mais “deliciosa” do que nunca. Virgília não esconde a sua atração por Brás, mesmo sabendo o que esse comportamento poderia lhe trazer como consequência. E a partir daí inicia-se a relação adulterina.
Desse modo, Virgília, como mulher fina e membro daquela sociedade aristocrática, esposa de Lobo Neves, um homem tão importante, desafia as convenções da época, demonstrando uma certa independência em seu modo de agir. É Virgília que toma a iniciativa em seduzir Brás e levá-lo ao adultério.
A terceira figura feminina a ser abordada está no romance Quincas Borba. Pela voz de seu narrador, Machado de Assis projetou aos leitores a imagem da personagem Sofia, dando a ver ao leitor a trajetória de elegância, determinação e ousadia dessa personagem que, tal como Virgília, viola as convenções sociais.
A técnica de despistamento utilizada pelos narradores machadianos é ora também reforçada. Ao traçar a história, o narrador, para construir a personagem Sofia, recorre às mesmas artimanhas já conhecidas em outras obras, como Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Tomando a personagem Sofia, vê-se que ela se compõe a partir de uma tríplice visão. Primeiramente, pela perspectiva do narrador que ressalta seus atrativos de sedução e seu charme, o que a aproxima do adultério; em seguida, a Sofia que se comporta avessa à pobreza e consegue ascender socialmente, orgulhosa de seus dotes físicos, com os quais consegue aparecer naquele mundo dos ricos, utilizando-se do marido Palha para alcançar o seu intento; e a Sofia construída pela imaginação de Rubião, a mulher cobiçada que pode satisfazer todos os seus desejos.
Graças à sua habilidade, o narrador que, ao descrever o perfil feminino de Sofia, a envolve efetivamente em um jogo duplo de sedução, fazendo-a mostrar-se e esconder-se, a oferecer-se e a negar-se, a avançar e a recuar, entre idas e vindas em que se projeta numa ambiguidade[33] constante.
Ambiguidade que se explicita também em todos os seus comportamentos. Nesse jogo duplo, que a caracteriza, reside a sua identidade como mulher forte, decidida, dominadora, que ocupa um lugar não próprio para a mulher de seu tempo.
Indo à narrativa, encontramos Sofia, esposa de Cristiano Palha que, pelos disfarces adotados pelo narrador e aos olhos de um leitor desavisado, parece manter um relacionamento “quase íntimo” com Rubião, o rico herdeiro de Quincas Borba.
Relação esta que acontece sob os olhos e o consentimento disfarçado do marido. Cheia de artificialismos, característica marcante daquela sociedade do final do século XIX, aproveita-se de seu parceiro e amigo para circular no mundo de ostentação e riqueza daquela vida carioca, seu maior desejo, ambição e objetivo.
Conforme a narração, desde o encontro no trem, na estação de Vassouras, que Sofia, acompanhada do marido, encontra Rubião, já se sentem atraídos um pelo outro. Através de olhares e poucas palavras, ali já se estabelece o que se poderia considerar como um relacionamento nada comum entre uma mulher casada e um homem solteiro, encantado pela elegância e charme de Sofia.
A partir desse encontro, começam as visitas assíduas de Rubião à casa de Sofia, a troca de olhares profundos, o toque de mãos cada vez mais ardente... A propósito do capítulo XXXV, o narrador desenha o perfil de Sofia.
E nesse mesmo capítulo, o narrador aponta para o poder que Sofia exercia sobre os homens e o prazer do marido em exibi-la em público. Era dado à boa chira; reuniões frequentes, vestidos caros e joias para a mulher, adornos de casa, mormente se eram de invenção ou adoção recente, - levavam-lhe os lucros presentes e futuros. Salvo em comidas, era escasso consigo mesmo. Ia muita vez ao teatro sem gostar dele, e a bailes, em que se divertia um pouco, - mas ia menos por si que para aparecer com os olhos da mulher, os olhos e os seios. Tinha essa vaidade singular; decotava a mulher sempre que podia, e até onde não podia, para mostrar aos outros as suas venturas particulares. [...]
A princípio, cedeu sem vontade aos desejos do marido; mas tais foram as admirações colhidas, e a tal ponto o uso acomoda a gente às circunstâncias, que ela (Sofia) acabou gostando de ser vista, muito vista, para recreio e estímulo dos outros. (ASSIS, 2004, p.669)
Pela descrição da personagem, ressalta-se a juventude, o corpo escultural de Sofia e o ardor da paixão instilado no amante, pois tudo nela favorece ao jogo da sedução. Destacam-se também seus dotes físicos que Palha, o marido, fazia questão de exibir.
Mas, o mais importante é que Sofia usa intencionalmente de seus atributos físicos, não para o simples jogo de sedução barata. Pelo contrário, ela faz com que esse seu poder erótico lhe renda o “status” social pretendido pelos seus objetivos em concorrer com o masculino.
O relacionamento potencialmente suspeito não constrange nem um pouco Sofia, pois em todos os momentos em que eles se acham em situações embaraçosas, ela dissimula e se desvencilha de tais situações com naturalidade.
Inúmeras são as passagens do romance que retratam essa desenvoltura de Sofia em agir com frieza e superioridade diante de situações delicadas. Para citar um outro exemplo, pode-se lembrar de uma das frequentes visitas de Rubião à casa dos Palha.
Essa atitude de Sofia demonstra o duplo da personagem que ora se apresenta sedutora e ardorosa por Rubião e outras vezes manifesta um estranhamento com que até ele mesmo se surpreende. Surpreendente é pouco para caracterizá-la, visto que ela é senhora e dona da palavra, conforme está atestado em “Rubião tremia, não achava palavras; ela achava todas as que queria, [...]” Por mais que tente ser agradável a Rubião, ela, às vezes, não consegue disfarçar o tédio que ele lhe causa, pois o real interesse de Sofia era que Rubião lhe servisse apenas de trampolim para tornar-se uma mulher rica.
A amizade entre o casal e Rubião floresce e este entrega a Cristiano Palha a responsabilidade de administrar-lhe os bens, deixados por Quincas Borba. Palha soube fazê-lo muito bem, pois, aos poucos, vai investindo a herança que Quincas deixara para Rubião em seu nome, tornando-se um homem “valoroso” e “cheio de posses”, bem ao gosto de Sofia.
É o caso, então, de perguntar se a loucura de Rubião, seus delírios, o seu fim trágico não teriam sido aguçados por Sofia? Talvez sim, pois há de se acreditar que, mesmo sendo mulher e inserida naquela sociedade tão arraigada de princípios considerados morais, Sofia não os cumpriu.
E ao transgredi-los, circulou no espaço social público onde só os homens faziam carreira. As outras duas personagens, conforme relação apresentada na introdução desse trabalho, são Flora e Fidélia, dos romances Esaú e Jacó e Memorial de Aires.
A primeira afirmação que se pode fazer sobre elas é que não possuem o brilho e a perspicácia de Capitu, nem mesmo os atrevimentos e insinuações de Virgília e Sofia. Mas, trazem para a nossa reflexão e para o que se intenta, os ingredientes deveras significativos, centrados ora na sua dubiedade ora na sua tomada de decisão precisa, que servem para o exame que se intenciona.
Flora é marcada pela dualidade, e essa forma dual não é visível apenas na construção da personagem feminina, é também compartilhada na construção dos gêmeos Pedro e Paulo, na ambivalência do amor de Flora, na dualidade moral e mental de Batista, que tinha “o temperamento oposto às suas ideias” (ASSIS, 2004), o que se torna evidente até mesmo no ato de narrar. Isso nos autoriza afirmar que o romance Esaú e Jacó é construído sob o signo da dualidade e do deslizamento.
Outra ambivalência que se destaca na obra em análise é a indecisão de Flora entre o amor dos gêmeos Pedro e Paulo, e esta não consegue decidir com qual dos dois quer realizar seu sonho de amor. Ela é apresentada nesse contexto como uma mulher meiga, abnegada, que não aparenta ter arroubos de vivacidade ou ousadia.
Reiteradamente, pela voz do narrador ou pela voz de outros personagens do romance, a dualidade do comportamento de Flora aparece com evidência.
E diante da impossibilidade de decifrar o seu comportamento, o que fica claro durante toda a narrativa, tanto narrador como personagens, num movimento de busca constante, deslizam à procura de deciframentos desse caráter ambivalente da personagem.
Não é à toa que repetidamente ela é designada pelo vocábulo “inexplicável”, o que leva a entender que Flora é marcada pelo caráter da obscuridade. Não se sabe ao certo se ela é vista ou ela se deixa ver, o que leva novamente à questão da dualidade e do jogo de espelhos.
A escritora, ao retratar Flora, a personagem do romance, dá destaque à sua “exterioridade, à sua suavidade, beleza e alvura, de quase transparência” (STEIN, 1984). Sem entrar no mérito do “inexplicável” que existe em Flora, possivelmente esta seria a chave para a revelação da personagem.
Fidélia, quase uma continuidade de Flora – amável, gentil, singela, dócil, alva – só que com diferença radical: uma vez viúva, assume nessa condição a administração geral dos bens herdados e o faz com eficiência, o que a coloca no nível e no espaço impróprio para ela, já que essa atuação era restrita ao homem.
Encontramo-la no último romance escrito por Machado de Assis, Memorial de Aires, cuja apresentação assemelha-se a um diário e, pela voz do Conselheiro Aires, tomamos conhecimento dos envolvidos na trama, seus amores, suas esperanças e frustrações, seus desejos e seus infortúnios; enfim, sobre as reminiscências de Aires que se tornam públicas.
Em Helena[34] a personagem homônima reunia em si muitas dessas qualidades exigidas pela sociedade. Helena tinha voz de contralto[35], além de tocar piano e falar fluentemente o francês e um pouco de inglês e italiano. No mesmo romance, Eugênia noiva de Estácio tocava piano muito bem, além de dominar a dança como poucas. Guiomar sabia bordar e coser muito bem.
Aparentemente são prendas pouco observadas na atualidade, mas no contexto do século XIX eram coisas imprescindíveis para as moças que almejavam um bom casamento. Vale ressaltar que não podemos aplicar uma grade de leitura contemporânea à documentação de outro período.
A estratégia narrativa utilizada por Machado em “Memorial de Aires” tem muito a ver com a narrativa de “Dom Casmurro”, ambos são frutos da memória de um sujeito no presente que registra suas experiências numa perspectiva de autodefesa ou afirmação.
As indecisões e as ambiguidades que já foram citadas sobre a personagem Flora podem se adequar perfeitamente às características de Fidélia. Ela também é vista como uma mulher que tem a ousadia e o caráter desafiador que marcam outras personagens machadianas.
Machado de Assis foi chamado de o “bruxo”, Bruxo do Cosme Velho pois nas entrelinhas de seu texto apresenta uma crítica mordaz aos costumes, à sociedade e à política do fim do império e início da república brasileira. Ele tudo percebeu e criou no subtexto suas bruxarias, revelando o que era o Brasil e os brasileiros do Rio de Janeiro, capital imperial e republicana anterior a atual capital.
O universo feminino visto por Machado, escolhemos uma tríade composta, inicialmente, por Virgília, Sofia e Capitu. Virgília era bonita, rica e de família socialmente bem colocada. Ao descrevê-la, o defunto narrador diz que “… era talvez a mais atrevida criatura da nossa raça, e, com certeza, a mais voluntariosa”. O narrador onisciente deixa claro que Sofia tem consciência de sua beleza e orgulha-se dela. Evidenciamos em de Quincas Borba, onde lemos: “Comprazia-se na contemplação de si mesma, das suas ricas formas, dos braços nus de cima a baixo, dos próprios olhos contempladores. Fazia vinte e nove anos, achava que era a mesma dos vinte e cinco e não se engana.
A história de Capitu é apresentada ao leitor por Bentinho, seu amigo de infância que se torna seu marido. No livro, Bentinho apresenta-se como “Dom Casmurro”, apelido recebido de um desconhecido e que dá título ao livro. Durante o velório de Escobar, que morreu afogado, Bentinho nota no olhar de Capitu algo que o deixa transtornado, “… os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos; como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã”.
Há coincidências e características comuns. A primeira coincidência é a carta anônima que surge tanto em Memórias Póstumas de Brás Cubas como em Dom Casmurro e, também em Quincas Borba. O contraste evidenciado da personalidade feminina com a personalidade masculina. A título de exemplo, pode-se citar a personalidade forte de Capitu ao lado da fraqueza de espírito de Bentinho, que é o narrador da história e confessa que gostaria de sentir-se mais forte e capaz para ser dominante em situações complicadas.
As mulheres machadianas são independentemente de suas origens sociais ou familiares, são fortes, ambiciosas, vaidosas, decididas e manipuladoras. Em defesa do que Machado de Assis acreditava ser o ideal para a educação feminina. Niskier[36] (2001) ressaltou que a mulher é essencial para o desenvolvimento cultural pois tem grande importância para organização eficiente da sociedade.
Enfim, a independência, a força e a capacidade de assumir o controle da própria vida que caracterizam as mulheres da ficção machadiana tornaram-se realidade.
Pode-se concluir que através das obras de Machado de Assis, deu-se profunda análise da sociedade do século XIX no Rio de Janeiro, então a capital do Segundo Império. E, ao narrar a dupla moral, sobretudo a sexual apresentou uma infinidade de homens adúlteros e mulheres resignadas, que não estava fazendo apologia a tal prática. O romancista apenas retratou a partir de seus escritos a situação que o circunda.
Há relatos repletos de verossimilhança servindo então de denúncia mas não de apologia ou enaltecimento dessa conduta masculina, conduta que toda a sociedade ajudava a perpetuar[37]. O entendimento da mulher no século XIX a partir da fonte literária, buscou apontar a grande interdisciplinaridade com o uso da literatura também como fonte histórica.
"Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha a sua vã filosofia". É uma frase da obra Hamlet de Shakespeare. Machado de Assis, sem ser filósofo, historiador, sociólogo, psiquiatra ou psicanalista realizou a desmontagem de ilusões através da ficção e da desconstrução da retórica tradicional, sem nomear estes saberes, mas apontando-lhes as estratégias de forma enviesada e indireta.
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[1] A literatura de Machado de Assis, por vezes, está à beira do real, tal como a de James Joyce que construiu seu sinthoma, sua forma de amarração. A propósito, a maioria dos escritores tem seu sinthoma, esse nó da dimensão visa curar-se a si mesmo, é a própria escrita que expurga, burila os excessos, as repetições e o pathos emocional que tanto avassala a obra e se revela mais nítido em seus personagens.
[2] A educação da mulher no segundo reinado era bastante diferente da do homem. Existem vários personagens com formação superior, podemos citar os exemplos de Luís Alves e Estevão no romance A mão e a luva que eram advogados. No romance Helena Estácio também é formado em Direito, da mesma forma que Jorge em Iaiá Garcia. Félix em Ressurreição embora não exerça o ofício é médico. Das figuras femininas, nenhuma é formada em curso superior. Isso atesta a verossimilhança dos enredos machadianos com o contexto do Império. A menina do século XIX após as primeiras letras não iam para a Universidade, pois sua função social era voltada pra família. Após serem alfabetizadas as meninas aprofundariam a sua educação por um lado nas “artes de agulha”, nos tricôs, bordados, costuras em geral. Por outro, mesmo que o serviço fosse feito a maior parte pelas escravas, a mulher deveria na sua educação apurar seus dotes culinários.
[3] Durante o passeio, no percurso do portão central até o terraço, José Dias pela primeira e fatídica a vez qualifica os olhos de Capitu como “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” (ASSIS, 2008, p. 39), frase que entrou para a história da Literatura Brasileira como sinônimo do seu caráter afeito à traição. Um dos significados ligados a essa expressão “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” é o fato de que a pessoa não gosta de receber ordens ou ser comandada por outras pessoas, ou seja, é ela quem 'dá as cartas'.
[4] Brás Cubas, de Memórias Póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis: depois de morto, usou sarcasmos, e digamos até pitadas de humor negro para narrar sua história diretamente do além. Ele é um “defunto-autor”, isto é, um homem que já morreu e que deseja escrever a sua autobiografia. Nascido numa típica família da elite carioca do século XIX, do túmulo o morto escreve suas memórias póstumas começando com uma “Dedicatória”: Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico com saudosa lembrança estas memórias póstumas. Capitu, de Dom casmurro – Machado de Assis: emblemática. A linda mulher, cuja discussão segue até hoje traiu ou não o marido? Capitu é a personagem “mais discutida, a mais famosa, e seria repetição falar sobre a grande dúvida em que o escritor deixa o leitor sobre o adultério da esposa de Bentinho – o romance abre-se num leque com opções a favor ou contra o fato.” (LB – Revista Literária Brasileira, nº 17).
[5] Aliás, a República Velha foi, de fato, um período de pífio crescimento econômico e muita confusão. Porém, a principal característica do Segundo Império brasileiro e a escravidão traziam desconforto com o moderno e com a mudança. O século XIX é um período fundamental para se compreender a organização social e a identidade brasileira. Esse século, palco de inúmeras transformações mundiais significativas, sediou a gênese da história nacional que começa a ser pensada após a independência. Pensar nas mazelas sociais e no preconceito existente hoje em nosso país requer debruçarmos sobre essas questões históricas que nos remetem a uma compreensão problematizada e reveladora dessa construção de valores que exclui e diferencia-nos como indivíduos. A dominação oligárquica que se estendeu pelo século XIX foi decisiva para a manutenção da escravidão até 1888, pois, para os membros da elite brasileira que influenciava e controlava diretamente a política, as leis e a economia, a mão de obra escrava era necessária ao desenvolvimento do Brasil. Foi essa mesma elite que fundou em 1838 o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o IHGB, com formação na sua maioria realizada na Europa, mais predominantemente em Portugal, esses homens eruditos, tinham com a Europa forte ligação e admiração, modelo de desenvolvimento e civilidade, esse continente inspirou nossos intelectuais a adotarem padrões europeus e aplicá-los em terras brasilis.
[6] Eis aí o maior problema para Sílvio quanto ao estilo machadiano: faltava a paixão, a agressividade necessária para mover a ação do homem de letras. Enquanto Machado é um escritor que se ocupa somente de sua pena e seus personagens, para Romero se o texto não se propõe à ação, perde valor.
[7] O cômico é, dessa forma, algo exterior a nós, a simples observação (ou advertência) de um fato que nos faz rir. O humorismo, por sua vez, é algo interior, um sentimento fruto da reflexão do fato cômico. Estas ideias sobre o humorismo se adéquam perfeitamente bem ao humorismo construído em algumas obras de Machado de Assis, especialmente em seus melhores romances e contos. Embora esta parte da obra do autor não seja objeto de análise neste trabalho, observemos como o pensamento de Pirandello (que parte também de outros teóricos) pode explicar o humorismo, tão largamente comentado, em obras como Memórias Póstumas de Brás Cubas: A característica, por exemplo, de tal peculiar bondade ou benévola indulgência que alguns descobrem no humorismo, já definido por Richter como a ‘melancolia de um espírito superior que chega a divertir-se com o que o entristece’, ‘o tranquilo, sereno e refletido olhar sobre as coisas’, o ‘modo de receber os espetáculos divertidos que parecem, em sua moderação, satisfazer o senso de ridículo e demandar perdão para o que há de pouco delicado em tal comprazimento’.
[8] A dominação masculina, segundo Bourdieu começa no processo histórico de masculinização e feminização dos corpos. Há um discurso, às vezes inconsciente, de pais e professores, alertando as meninas que é mais fácil para os meninos as carreiras científicas. Esse discurso aparentemente paternal produz uma dominação, uma vez que afasta a menina do trabalho técnico e a empurra para um menos qualificado ou para a posição de mãe, mulher submissa ao marido, preconizada pela sociedade. Para o autor a dominação masculina encontra no desconhecimento um de seus suportes principais.
[9] Ora, Sófocles ensina que há uma ordem cósmica, na qual deve inserir-se a ordem social e política. Em sua tragédia, a ordem do mundo seguramente é divina, e o homem a integra, como parte. O sentido do trágico está em sua condição de agente livre. Porque pode escolher, pode o homem também transgredir. Toda violação a interditos traz, dentro dessa perspectiva religiosa, tristeza e dor. Mas, com eles, de alguma forma, também pode vir a aprendizagem. Paqei=n, maqei=n, ou seja, aprender com o sofrimento, eis a chave para o aperfeiçoamento da natureza humana. A nós, seres de um dia, cabe pagar o alto preço, como tributo à liberdade. Em outras palavras, a queda é ponto chave na amarga dialética existencial da redenção.
[10] A nosso ver Sófocles compôs a personagem Antígona a partir de uma contraposição da jovem com a irmã, Ismene, de um lado e, de outro, com Creonte. Ismene, doce, tímida, submissa e acomodada, é o oposto de Antígona; Creonte, por sua vez, em sua oposição ferrenha à filha de Édipo, reforça nesta uma reação de obstinada resistência. Eles se completam e não é possível compreender inteiramente a situação de um sem considerar a do outro. Ambos têm alguns traços em comum, estão firmemente ancorados em suas razões e sofrem as consequências delas. Pois que força teria a figura de Antígona sem a do rei contra qual ela se afirma? O mesmo se diria de Creonte. Não fora a obstinação da jovem em sepultar Polinices seu édito teria sido cumprido. A estreita correlação entre esses dois tipos humanos, Antígona e Creonte é tão complexa que Maria Rosa Lida levanta a hipótese de Sófocles ter desdobrado entre eles a figura trágica, razão pela qual ambos representariam duas faces do mesmo erro de conduta.
[11] Eurípides nasceu em Salamina (ilha situada nas proximidades de Atenas) provavelmente em 485 a.C. Educou-se em Atenas, onde viveu a maior parte de sua vida. Entre a época de sua estreia nos concursos trágicos atenienses (455 a.C.) e a data provável de sua morte (406 a.C.) Eurípides escreveu no mínimo 74
peças, sendo 67 tragédias e 7 dramas satíricos. Algumas fontes, entretanto, atribuem-lhe 92 peças. Dessa produção chegaram até nossos dias um drama satírico, O Cíclope, e 18 tragédias: Alceste, representada pela primeira vez em Atenas em 438 a.C., Medéia (431), Hipólito (428), As Troianas (415), Helena (412), Orestes (408), Ifigênia em Áulis (405), As Bacantes (provavelmente 405), e em data incerta Andrômaca, Os Heráclidas, Hébuca, As Suplicantes, Electra, Heraclés Furioso, Ifigênia em Táuris, Íon, As Fenícias, O Cíclope e Resos (esta última de autenticidade contestada).
[12] Já abordando o primeiro corpo/corpus em questão, podemos perceber em Antígona a jovem mulher protetora do pai-irmão (rei Édipo), possuidora de um caráter leal e amoroso, cujas ações, portanto, estão comprometidas com o amor fraterno, independente das desventuras e disfunções enfrentadas pela sua linhagem (dos labdácidas). Já em Electra, o outro corpo/corpus, temos a vingadora da morte do pai (rei Agamêmnon), que, por reconhecer a injustiça que a sorte lhe reservara (a morte do pai e devido a seu comportamento de revolta, para com a mãe, passa a viver em condição de exílio no próprio ambiente familiar, o reino de Micenas - Grécia), opta por compactuar com a nova realidade imposta (viver como escrava do próprio reino) e estabelece em suas ações um compromisso com a vingança.
[13] Ao agregado – que não podia contar com as normas impessoais –, restou a tentativa de sobreviver sem poder contestar diretamente uma ordem rigidamente hierarquizada. Imobilizado por essa hierarquia, ele encontraria na manipulação da vontade senhorial sua única alternativa para alcançar seus interesses. Um dos traços mais finos da famosa ironia machadiana delineia, sem sombra de dúvidas, a figura boçal do agregado. Elemento social peçonhento, o agregado pertencia à classe dos remediados acolhidos por lares burgueses que aparentemente lhe permitiam o trânsito “livre” e sua participação junto à família burguesa, enquanto esta lhe impunha “familiarmente” uma fidelidade canina e exigia dele a prestação zelosa dos mais variados “favores” – ao mesmo tempo em que lhe amputava implicitamente qualquer condição de enriquecimento real ou ascensão social verdadeira.
[14] A antiga Rua Mata-Cavalos passou a ser designada Rua do Riachuelo em 1865, em homenagem a batalha na qual nossa Armada foi gloriosa na Guerra do Paraguai. A importância dessa via remonta à época do Brasil Colônia, pois era o caminho percorrido para se alcançar a Zona Norte da cidade. A origem de seu nome deve-se ao fato do local ter sido bastante acidentado, com muitos barrancos, levando os animais que por ali transitavam à exaustão.
[15] São filhas corajosas, honestas e verdadeiras, características que nem por isso as livram de um destino infeliz ou mesmo trágico. “Antígona” – filha do falecido rei Édipo –, nome da peça homônima de Sófocles, se revolta após a morte de seus irmãos Eteócles e Polinices contra um decreto baixado por seu tio Creonte ao assumir o governo de Tebas. Este concede sepultamento digno a Eteócles, enquanto nega a Polinices as honras fúnebres. Antígona questiona o poder de Creonte e o acusa de se colocar acima da lei dos deuses e do respeito aos mortos. Ao desobedecer suas ordens e tentar sepultar o corpo do irmão, é acusada de traição e submetida à prisão em uma caverna onde deve esperar pela morte. Em “Rei Lear”, de William Shakespeare, Cordélia é a filha mais nova e também a preferida do rei da Bretanha. Este decide abdicar de seu reino e terras em favor das três filhas e para isso pede a elas que definam seu amor por ele.
[16] A industrialização no Brasil foi historicamente tardia ou retardatária. Enquanto na Inglaterra acontecia a Primeira Revolução Industrial, o Brasil vivia sob o regime colonial e escravista. Desta maneira, as primeiras fábricas só puderam ser abertas com a chegada da Família Real ao Brasil, em 1808. Embora tardia, os efeitos da Revolução Industrial no Brasil foram positivas em muitos aspectos: - Diminuição da dependência da importação de produtos manufaturados estrangeiros. - Aumento da produção com diminuição de custos, barateando o preço final dos produtos. - Geração de empregos na indústria. Fases da industrialização brasileira . Vide: Primeira Fase: Período Colonial; 2ª fase – O café e as primeiras indústrias responsáveis pela industrialização brasileira; 3ª fase – Era Vargas e o desenvolvimento industrial; 4ª fase – Governo JK e as multinacionais.
[17] As representações das mulheres ao longo da história são pautadas pelo silenciamento das mesmas. Quando aparecem, usualmente são apresentadas como ardilosas, compreendendo, nesses casos, o ardil como característica negativa quando associada a figuras femininas. Deste modo, a escrita da história
tradicionalmente se furtou de incluir as mulheres, corroborando com algumas fontes de forma acrítica. Em “Os silêncios do corpo da mulher”, Michelle Perrot acrescenta que “as representações do corpo feminino, tal como as desenvolve a filosofia grega por exemplo, assimilam-no a uma terra fria, seca, a uma zona passiva, que se submete, reproduz, mas não cria; que não produz nem acontecimento nem história e do qual, consequentemente, nada há a dizer.
[18] Sófocles nasceu em Colono, cidade perto de Atenas, por volta de 497 a. C. Era filho de um rico fabricante de armaduras, fazia parte de classe elevada e recebeu boa educação. Sófocles também se destacou na vida pública de Atenas. Em 442 a. C. foi um dos tesoureiros escolhidos para recolher e administrar o dinheiro dos tributos pagos pela população das cidades que integravam a liga de Delos. Dois anos depois, foi eleito um dos dez estrategistas (altos chefes militares do Exército de Atenas), como colaborador de Péricles. Frases de Sófocles: “Não procures esconder nada, o tempo vê, escuta e revela tudo”; "Há algo de ameaçador num silêncio muito prolongado"; “Só uma palavra nos liberta de todo o peso e da dor da vida: essa palavra é o amor”; “Não existe testemunha mais terrível, acusador mais poderoso, do que a consciência que habita em nós”; “Os males mais terríveis são aqueles que cada um faz para si próprio”.
[19] A categoria gênero vai ser desenvolvida pelas teóricas do feminismo contemporâneo sob a perspectiva de compreender e responder, dentro de parâmetros científicos, a situação de desigualdade entre os sexos e como esta situação opera na realidade e interfere no conjunto das relações sociais. O conceito de gênero possui uma enorme amplitude de usos e se faz presente em várias áreas da produção teórica, quer seja nas ciências naturais, quer seja nas ciências humanas e sociais. A sociedade comumente determina as diferenças de gênero baseadas na construção cultural de que o homem, por ser superior ,"fala por", engloba, e representa a mulher. Este modelo social é bidimensional, ou seja, a relação hierárquica é composta de dois níveis, o superior representado pelo homem e o inferior representado pela mulher.
[20] O discurso higienista teve grande papel na valorização da maternidade nessa época. A mãe, baseada no conhecimento científico, deveria seguir com sua gestação e depois com a criação dos filhos. Neste contexto, apesar de os médicos se direcionarem para as mães, o foco central deles era nos filhos. O índice alto de mortalidade infantil no período era muitas vezes explicado como fruto da negligência materna. E os filhos eram vistos como futuros cidadãos da pátria e, por isso, deveriam ser bem cuidados e educados. E sobre isso a imprensa teve um papel relevante na medida em que procurava educar a mulher para o seu papel de mãe e de guardiã do lar.
[21] Durante muito tempo, a historiografia ficou voltada para a história de heróis, dos grandes líderes e das figuras consideradas importantes. Nessa perspectiva, alguns grupos, principalmente os minoritários, ficaram de fora da história escrita. Dessa forma, “História das Mulheres no Brasil”, vem de encontro a isso, nos trazendo a história de grupos que, foram deixados de lado durante muito tempo. “Rainhas do lar” e “incapazes”, brasileiras foram à luta por seus direitos políticos. Até 1827, as mulheres não podiam sequer se matricular em instituições de ensino. Tiveram de esperar mais meio século para ter acesso à faculdade. Historiador reconta a trajetória das protagonistas da luta pelo reconhecimento do voto feminino no país.
[22] As personagens femininas de Machado de Assis estão em consonância com a sociedade patriarcal do século XIX. A possibilidade de ascensão social para a mulher era pequena. Segundo Stein, a mulher tinha na subida social do marido a sua única possibilidade de galgar melhor posição na sociedade. Na análise de Stein a mulher machadiana, por esse motivo, só aparece como alguém com autoridade quando fica viúva. Nos romances que analisamos temos dois exemplos disso: a viúva Valéria Gomes em Iaiá Garcia e a baronesa em A mão e luva. O casamento e o lar, portanto, eram os locais de atuação da mulher no século XIX. Mas, como bem apontou Faria, ao longo do período colonial muitos homens buscavam no casamento com moças de famílias tradicionais a resolução de problemas ligados ao status social. Muitos senhores de escravos não possuíam liquidez monetária, mas tinham status social. O comerciante tinha dinheiro, mas não tinha reconhecimento social. Nesses casos havia uma troca, mas em ambos os casos, a mulher passava da tutela do pai à do marido.
[23] Conquistas do feminismo no Brasil: uma linha do tempo
1827 – Meninas são liberadas para frequentarem a escola. ...
1832 – A obra “Direitos das Mulheres e Injustiças dos Homens” é publicado. ...
1879 – Mulheres conquistam o direito ao acesso às faculdades. ...
1910 – O primeiro partido político feminino é criado.
[24] Em 1999, um século após Machado de Assis publicar Dom Casmurro, o Supremo Tribunal Federal fez um julgamento da personagem Capitu: ela traiu ou não o marido Bentinho? O jurista José Paulo Sepúlveda Pertence, ministro do STF, decidiu pela absolvição de Capitu, Capitolina de Pádua Santiago. No entanto, apesar da absolvição, o juiz confessou a sua convicção, particular, de que ocorreu adultério. Márcio Thomaz Bastos, advogado e ex-presidente da OAB, atuou na acusação, e Luiza Nagib Eluf, procuradora de Justiça em São Paulo, defendeu Capitu. Os escritores Carlos Heitor Cony, Marcelo Rubens Paiva, o historiador Boris Fausto e a escritora Rosiska Darcy de Oliveira foram convocados como testemunhas. O exercício jurídico, que aconteceu nas dependências do jornal Folha de S.Paulo, dá a medida de quem é Capitu: uma personagem criada pela imaginação de Machado de Assis, mas que está presente no imaginário de todo um país. A narração de Dom Casmurro é feita pelo personagem Bentinho, já na velhice. Ele demonstra ciúme da esposa e sugere que ela o traiu com o seu melhor amigo, Escobar — aquele que tinha parentes em Curitiba. Capitu é descrita como uma mulher de “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” ou é até portadora de “olhos de ressaca”, expressões misteriosas, que podem dizer tudo (ou nada). Muitos duvidam que ela tenha traído o marido, pela falta, evidente, de provas. O escritor Dalton Trevisan tem certeza do adultério: “Se a filha do Pádua não traiu, Machadinho se chamou José de Alencar.”
[25] História e adultério se entrecruzam. A tese de Chalhoub reforça nosso argumento de que é possível pensar a história do Brasil a partir da Literatura e de que é possível, com as personagens femininas dos romances analisados, pensar a condição da mulher no século XIX. A diferença de conduta para homens e mulheres nesse contexto está intimamente ligada à hierarquização de gênero tal qual aponta Bourdieu. O homem, se não pode dar vazão a sua libido sem ressalvas, conta, no entanto, com a complacência da sociedade. Da mesma forma que o casamento monogâmico foi uma construção histórica, como aponta Vainfas, a necessidade de a mulher permanecer virgem até o casamento e permanecer fiel ao marido após o enlace matrimonial como salienta Stein, também o foi. Os enredos machadianos mostram o papel masculino e feminino na sociedade carioca do segundo reinado. Não por acaso as qualidades femininas ligadas à pureza e à virgindade são grandes em Machado de Assis. Esses aspectos são importantes para a moça que quisesse um casamento sem mácula e com as bênçãos da sociedade.
[26] Memorial de Aires (1908), último romance Machado de Assis, foi tido por algum tempo, e talvez ainda seja pelos mais desavisados, como uma obra de redenção e decadência. Produzido em um momento delicado da vida do autor, quando este já se encontrava doente e solitário, o último romance machadiano espelharia nostalgias e sentimentalismos próprios da velhice. A personagem Carmo foi, nesse sentido, tida como uma personificação da esposa de Machado recém falecida, Carolina e Fidélia, uma das personagens mais intrigantes da obra, ficou à sombra, um tano esquecida pelos críticos.
[27] A vida e as obras de Percy Bysshe Shelley exemplificam o romantismo inglês em seus extremos de êxtase alegre e desespero taciturno. Os principais temas do romantismo - inquietação e meditação, rebelião contra a autoridade, intercâmbio com a natureza, o poder da imaginação visionária e da poesia, a busca do amor ideal e o espírito indomável sempre em busca da liberdade - todos esses Shelley exemplificou na maneira como viveu sua vida e vive no corpo substancial de trabalho que deixou o mundo após sua lendária morte por afogamento aos 29 anos. nome de Shelley evocou a veemência mais forte ou o elogio mais caloroso, beirando a adoração.
[28] I can give not what men call love, But wilt thou accept not The worship the heart lifts above And the Heavens reject not,— The desire of the moth for the star, Of the night for the morrow, The devotion to something afar From the sphere of our sorrow?
Não posso dar o que os homens chamam de amor, Mas tu não aceitarás A adoração que o coração eleva E os Céus não rejeitam, O desejo da mariposa pela estrela, Da noite pelo amanhã, A devoção a algo distante Da esfera de nossa dor?
[29] O doutrinador Almachio Diniz, à época, (citado por Andrea Borelli) considerava que a pena sugerida pelo Código Penal era inócua e que de nada adiantava como representação do poder coercitivo do Estado "Os códigos declaram o adultério como crime particular, a queixa compete exclusivamente ao cônjuge ofendido, que em qualquer tempo tem direito de perdoar, arquivando assim o processo em completo silêncio ou fazendo cessar os efeitos de condenação. Logo, a repressão do adultério não tem por fim acautelar e defender um interesse de ordem pública e sim um interesse privado, não visa o bem-estar social e sim de apenas um membro da comunhão". O legislador não deve editar disposições inúteis e ociosas. Ora o artigo do código penal que pune o adultério é letra morta, e nunca foi aplicado... O marido que recorresse a semelhante meio para punir a infidelidade da mulher incorreria no desprezo da sociedade e tornar-se-ia objeto de ridículo... A pena contra o adultério é ineficaz, não consegue evitar o delito, que é um fato comum em todas as épocas de dissolução de costumes. Não há dúvida que certas mulheres são adúlteras pela depravação moral, por excessiva libertinagem. Mas há também um grande número de casos em que o marido foi o principal responsável da queda de sua mulher, foi quem a impeliu para o adultério pelo abandono, maus-tratos, facilidade e imprevidência, o desregramento de conduta, baixeza de sentimentos, infidelidade manifesta, etc. Por fim, a Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005, descriminalizou o adultério. O seu artigo 5º revogou clara e expressamente o artigo 240 do Código Penal Pátrio em vigor.
[30] Marco Túlio Cícero (106-43 a.C) foi uma figura proeminente da política romana que ocupou vários cargos públicos como: edil curul em 69 a. C. (os edis tinham várias atribuições, dentre as quais o fornecimento público de cereais, abastecimento de água da cidade e supervisão do mercado); questor (responsável pela guarda do tesouro e da administração financeira); pretor em 67 a. C. (espécie de magistrado responsável pela distribuição da justiça); além de Cônsul em 63 a. C., com 43 anos, o cargo supremo da República de Roma, que marca o apogeu de sua carreira. “Dentre os fatos que marcaram a vida política consular de Cícero, não se pode deixar de destacar a Conspiração de Catilina (63 a.C.) onde Cícero frustrou, tanto as propostas radicais de perdão de dívidas, quanto as ambições do patrício Lucio Sergio Catilina” (CONEGLIAN, 2012, p. 49). As Catilinárias é um famoso episódio no qual Catilina trama um golpe de Estado mas foi denunciado por Cícero. O filósofo que fez quatro pronunciamentos (as catilinárias) denunciando as manobras de Catilina, desmobilizando o movimento. Cícero não foi propriamente um estóico mas corresponde a um tipo eclético de filósofo, discutindo os argumentos das diferentes doutrinas gregas correntes na época. Mas suas ideias sobre a moral fazem dele um adepto das doutrinas estoicas sem, entretanto, aceitar todo o rigor da concepção segundo a qual o exercício da virtude basta-se a si mesmo e consiste na conformidade da conduta humana às leis racionais da natureza. Como pondera Cretella (1999, p. 108 apud VALERY, 2011, p. 99), Cícero foi discípulo do estóico Posidônio mas não se filiou a uma escola em particular, revelando-se como um filósofo “eclético, com objetivos práticos, notando-se em seus escritos o aspecto formal do platonismo, sem o desprezo de elementos evidentes do aristotelismo e do estoicismo.
[31] Em meados do século XIX, o ideal masculino era ser um homem corpulento em trajes preferencialmente negros e com barba. Por volta de 1860, barbas (aparadas ou não), bigodes e suíças (depois conhecidas como sideburns) eram uma grande. Os leitores eram moços e moças provindos das classes altas, e, excepcionalmente, médias; eram os profissionais liberais da corte ou dispersos pelas províncias: eram, enfim, um tipo de leitor à procura de entretenimento.
[32] No século XIX a situação da mulher era de subserviência ao pai e, depois do casamento, ao marido. Havia uma dupla moral que regia a sociedade do Império: a mulher deveria permanecer virgem até o casamento e depois de casada se manter fiel ao marido; já do homem não se exigia virgindade antes do casamento e a sociedade era conivente com a infidelidade masculina. A infidelidade conjugal masculina e a iniciação da vida sexual em prostíbulos ou com as escravas era, no século XIX, motivo de orgulho dos mancebos tupiniquins. Com isso o homem atestava a sua virilidade.
[33] Positivamente, os contos machadianos remetem à questão da ambiguidade identificada no homem moderno, “seu contemporâneo, e que se revela através dos temas da traição, da insatisfação pessoal, da venalidade, da loucura, dos relacionamentos corrompidos, da passagem inexorável do tempo, da violência moral, de sonho e realidade, farsa e tragédia, realçados através do uso primoroso da ironia, figura de linguagem dúbia por excelência”.
[34] O Conselheiro Vale em Helena é outro exemplo da infidelidade masculina e sua esposa um exemplo de mulher submissa. Segundo o narrador, o Conselheiro foi acompanhado até o último momento por seus amores extraconjugais: “Se nenhuma saudade partidária lhe deitou a última pá de terra, matrona houve, e não só uma, que viu enterrar com ele a melhor página da sua mocidade.
[35] O contralto se caracteriza como um timbre de voz feminina. A textura é grave, adquirindo uma extensão que vai do Mi 2 ao Lá 4. Esse tipo de voz é considerado menos comum, mas como todos os outros, quando bem trabalhado, soa de forma bonita e harmônica. Naturalmente, para compreender o conceito de voz grave nessa situação, é necessário fazer uma comparação com outros timbres vocais femininos. Afinal, quando comparada a uma voz masculina, a contralto tende a soar menos grave.
[36] Machado de Assis encerra seu discurso em defesa da mulher dizendo que “educar a mulher é educar o próprio homem, a mãe completará o filho”. (apud NISKIER, 2001, p. 39).
[37] No Brasil, o feminismo se manifesta tardiamente, apesar das primeiras duas décadas do século XX serem palco de uma breve emergência do movimento caracterizado, principalmente, nas greves de 1917, na Semana de Arte Moderna de 1922 e, nesse mesmo ano, na fundação do Partido Comunista do Brasil. Nesse período tem grande destaque Patrícia Rehder Galvão, de apelido Pagú. Escritora, jornalista e militante do Partido Comunista defendia a participação ativa da mulher na sociedade e na política - e foi a primeira brasileira do século XX a ser presa política.