"O conhecimento é o mais potente dos afetos: somente ele é capaz de induzir o ser humano a modificar sua realidade." Friedrich Nietzsche (1844?1900).
 

Professora Gisele Leite

Diálogos jurídicos & poéticos

Textos


Trajetória discursiva até a liberdade.

 

Resumo: A Lei Áurea foi resultante da trama de três fatores, a saber: a mobilização dos escravos, organizando fugas e refugiando-se em quilombos, a mobilização de abolicionistas que apoiavam os escravos fugitivos e, a mobilização política que culminou com a aprovação da lei. É interesse observar todo o trajeto discursivo da liberdade, seja no léxico nacional ou mesmo no texto constitucional brasileiro vigente. O declínio da demanda de escravos no século XIX, explica-se pelas antecipações pessimistas inspiradas pela pressão abolicionista sobre o futuro da escravidão. Mas, uma conclusão é inescapável que a rentabilidade do trabalho escravo teria permitido prolongar o sistema escravagista quasse até o final do século XIX. O Brasil foi o último país da América a abolir o trabalho escravo.

Palavras-chave: Liberdade. Libertação. Lei Áurea. Escravidão. Princesa Isabel. Constituição Federal do Brasil de 1988.

 

 

A questão a respeito da língua representa a realidade ou se a realidade é mais uma criação discursiva, trata-se de questão complexa e muito debatida. Há vários alinhamentos teóricos mas a tese construtivista supera a da descrição de uma realidade objetiva, principalmente quando tema é a escravidão.

Aprendemos na escola que os escravos brasileiros foram libertados pela Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel, na ausência do Imperador e seu pai Dom Pedro II. A formulação de cunho simples não é ingênua, pois ao comunicar o fim formal e legal da escravidão no país, creditou à uma figura feminina, na ausência do Imperador, e destacou a passividade de seus beneficiários, doravante ex-escravos, ou simplesmente, libertos.

A voz passiva entoada pela decisão feminina em típico espaço masculino e na ausência da autoridade maior, articula muitas figuras culturais que também participaram da construção e, deu uma versão final da escravidão na qual os negros submissos aceitaram de boa-fé de corajosa alma, a libertação.

A seu turno, Dom Pedro II, como fiel governante e honrado, acatou e respeitou integralmente a decisão da Regente. O cenário ratificou o papel da elite branca no término da escravatura brasileira. E, essa liberdade doada correspondente a uma dívida de gratidão, deu-se na hierarquia simbólica na qual os negros deixaram de ser escravos e, passaram ao status de devedores morais.

Deve-se sublinhar que a conquista da liberdade exigiu esforços anteriores à assinatura da Lei Áurea , especialmente, pelo movimento abolicionista, que se configurou como sendo uma das manifestações sociais de luta e resistência, dirigido para concretização de nova sociedade, livre de opressão e das desigualdades sociais.

Esmaecer o significado da abolição a um gesto de boa vontade ou de doação empreendido pela Princesa-regente representa o ocultamento da relevância histórica que fora construída por homens e mulheres, fossem negros ou brancos, integrantes dos mais variados arranjos sociais e que tanto se emprenharam de diversas formas pelo fim de sistema escravagista e estruturado para manter parcela significativa da sociedade.

A liberdade simbólica patenteada pela assinatura da Lei Áurea , sem prévio projeto político vocacionado para mudança efetiva das relações e estruturas sociais, foi acontecimento que teve pouca ou quase nenhuma relevância para os negros que, viviam, até então, como escravizados. E, muitos, apesar da Lei, continuaram sendo explorados.

Enquanto outros que resistiam, isolavam-se da sociedade, criando as comunidades alternativas, tais como os quilombos. A liberdade legal devia seguir a liberdade pragmática, para qual a libertação simbólica foi condição.

Os percursos discursivos dessa conquista da liberdade trouxe o uso de vocábulos como liberdade, livre, escravo e escravizado, em português, e, free, freedom, liberty, slave, enslave em inglês.

Para o Dicionário Houaiss da língua portuguesa, liberdade aparece com as seguintes denominações: [...] grau de independência legítimo que um cidadão, um povo ou uma nação elege como valor supremo, como ideal [...]; poder que tem o cidadão de exercer a sua vontade dentro dos limites que lhe faculta a lei;

[...] condição daquele que não é cativo ou que não é propriedade de outrem;

[...] capacidade individual de optar com total autonomia, mas dentro dos condicionamentos naturais, por meio da qual o ser humano realiza sua plena autodeterminação, organizando o mundo que o cerca e satisfazendo suas necessidades materiais [...] (p. 1175).

A concepção de liberdade tida como poder fazer de acordo com os limites legais vigentes no domínio do espaço-tempo do sujeito, e eivada de essência eufórica, como o poder de realizar segundo os seus próprios desígnios e, na medida em que uma das quatro acepções a coloca condicionada à não catividade.

No direito brasileiro, o diploma jurídico mais importante é a Constituição Federal. É ela que assegura a liberdade de expressão como um direito fundamental. Exemplificando:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

II – Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.

XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;”

No mesmo sentido, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado pela XXI Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas de 1996 (e em vigor no Brasil em 1992), através do Decreto n. 592, explicita que:

Art. 19 Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha.” Não restam dúvidas de que o direito nos dá o respaldo inequívoco sobre nossa liberdade de expressão.

 

O artigo 5º da Constituição Federal (CF) de 1988 conta com 78 incisos que determinam quais são nossos direitos fundamentais, como a Igualdade de Gênero, a Liberdade de Manifestação do Pensamento e a Liberdade de Locomoção, que têm como objetivo assegurar uma vida digna, livre e igualitária a todos os cidadãos de nosso país.

Entre alguns dos direitos fundamentais da Constituição Brasileira vigente está: à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à educação, à saúde, à moradia, ao trabalho, ao lazer, à assistência aos desamparados, ao transporte, ao voto, entre outras

A liberdade para o Grande Dicionário etimológico-prosódico da língua portuguesa, aparece como o estado de quem é livre, de quem não está sujeito a uma obrigação, dever, horário e, etc. A liberdade é considerada como faculdade de fazer ou não fazer alguma coisa.

Para o Cambridge international Dictionary of English, freedom é denominada como “the condition or right of being able or allowed to do, say, think, etc. whatever you want to, without being controlled or limited” […] “A freedom is a right to act in the way you think you should […] Freedom is also the state of not being in prison […]” (p. 562). E liberty, outro vocábulo em língua inglesa para liberdade, aparece como “[…] the freedom to live as you wish or go where you want […]” (p. 816).

Para The Oxford English dictionary, freedom aparece como “Exemption or release from slavery or imprisonment; personal liberty”. […] “Exemption from arbitrary, despotic, or autocratic control; independence; civil liberty”. […] “The state of being able to act without hindrance or restraint, liberty of action” (p. 524).

Além disso, freedom aparece como “The quality of being free from the control of fate or necessity; the power of self-determination attributed to the will” (p. 525).

Em inglês, temos a consideração de liberdade como uma condição ou estado no qual o sujeito tem o poder de agir autonomamente e de acordo com suas vontades, marcadamente quando livre de restrições.

Temos então, liberdade como um estado pragmático e de alma do sujeito que, dentro dos limites de seu campo de presença, dispõe de total controle sobre suas ações, se constituindo como um sujeito livre, porém não no absoluto, como as entradas em português sugerem, mas diante da eliminação ou superação de restrições.

A liberdade religiosa foi expressamente assegurada pois que faz parte do rol dos direitos fundamentais, sendo considerada por alguns juristas como uma liberdade primária.

Jorge Miranda também relaciona a liberdade religiosa com a liberdade política. São suas palavras: "Sem plena liberdade religiosa, em todas as suas dimensões — compatível, com diversos tipos jurídicos de relações das confissões religiosas com o Estado — não há plena liberdade política. Assim como, em contrapartida, aí, onde falta a liberdade política, a normal expansão da liberdade religiosa fica comprometida ou ameaçada.

A liberdade de religião engloba, na verdade, três tipos distintos, porém intrinsecamente relacionados de liberdades: a liberdade de crença; a liberdade de culto; e a liberdade de organização religiosa.

 

Consoante o magistério de José Afonso da Silva, entra na liberdade de crença "a liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar de religião, mas também compreende a liberdade de não aderir a religião alguma, assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo. Mas não compreende a liberdade de embaraçar o livre exercício de qualquer religião, de qualquer crença..."

A liberdade de culto consiste na liberdade de orar e de praticar os atos próprios das manifestações exteriores em casa ou em público, bem como a de recebimento de contribuições para tanto.

A liberdade de organização religiosa "diz respeito à possibilidade de estabelecimento e organização de igrejas e suas relações com o Estado."

A liberdade de religião não está restrita à proteção aos cultos e tradições e crenças das religiões tradicionais (Católica, Judaica e Muçulmana), não havendo sequer diferença ontológica (para efeitos constitucionais) entre religiões e seitas religiosas. O critério a ser utilizado para se saber se o Estado deve dar proteção aos ritos, costumes e tradições de determinada organização religiosa não pode estar vinculado ao nome da religião, mas sim aos seus objetivos . Se a organização tiver por objetivo o engrandecimento do indivíduo, a busca de seu aperfeiçoamento em prol de toda a sociedade e a prática da filantropia, deve gozar da proteção do Estado.

Em relação ao vocábulo livre, o Dicionário Houaiss o denomina como o sujeito “que é senhor de si e de suas ações [...] que não está sob o jugo, que não é escravo de outrem [...] que não é prisioneiro; que goza de liberdade física” (p. 1189).

Já para o Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa livre é aquele “que pode dispor de sua pessoa, que não está sujeito a algum senhor [...]” (p. 478).

Para o Cambridge international Dictionary of English, free é o sujeito “not limited or controlled […]; not a prisoner (any longer), or having unlimited movement” (p. 560-561).

Para The Oxford English Dictionary, free aparece com as seguintes denominações:

Not in bondage to another. […] Not bound or subject as a slave is to his master;

enjoying personal rights and liberty of action as a member of a society or state. […]

At liberty; allowed to go where one wishes, not kept in confinement or custody. […]

Also, released from confinement or imprisonment, liberated (p. 520). […] Acting without restriction or limitation; allowing oneself ample measure in doing something (p. 521).

Novamente, em português apenas “livre” surge como conjunção eufórica e também como disjunção de elemento disfórico. Em inglês, predomina o efeito de sentido resultante de disjunção de elemento disfórico, associando “ser livre” a “não ser algo disfórico”.

O Dicionário Houaiss da língua portuguesa denomina escravo “que ou aquele que, privado da liberdade, está submetido à vontade de um senhor, a quem pertence como propriedade” (p. 803).

O Grande dicionário etimológico-prosódico da língua portuguesa denomina escravo como “Quem perdeu a liberdade, cativo” (p. 1205).

Já o Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa denomina o vocábulo como “indivíduo que vive em estado de absoluta servidão” (p. 317) e complementa dizendo que a palavra vem do latim medieval, sclavus, tendo como

acepção primitiva ‘eslavo’. Ainda segundo o dicionário “a translação de sentido decorre do fato de que, nos sécs. VIII-IX, Carlos Magno e seus sucessores aprisionaram grande número de eslavos, tornando-os cativos”. Além disso, o dicionário assinala que

[...] enquanto em francês, italiano, inglês e alemão o voc. já aparece documentado desde os sécs. XII-XIII, em português e em castelhano ele só ocorre a partir do século XV; essa ocorrência tardia é devida, provavelmente, à concorrência de cativo, o qual já se documenta nestes idiomas, com as mesmas acepções de escravo, em época muito anterior [...] (p. 317).

Quanto as palavras inglesas como slave, enslave que estão no Cambridge international Dictionary of English denomina slave como “a person who is legally owned by someone else, who works as a servant for that person, and who has no personal freedom […]” (p. 1350).

E para The Oxford English Dictionary, slave é “One who is the property of, and entirely subject to, another person, whether by capture, purchase, or birth; a servant completely divested of freedom and personal rights” (p. 182).

Contudo, é importante dizer que, nos dicionários de língua inglesa pesquisados, não encontramos o vocábulo enslaved.

Assim, tanto em inglês quanto em português, escravo (slave) é disjunto de querer, de poder e até mesmo de saber (sobre si e sobre o mundo), como também submetido, em estado de coisa, à vontade alheia.

E quanto a escravizado/enslaved? Ocorre basicamente o mesmo, porém com a distinção entre ser escravo e estar escravizado, entre um estado perene e um estado, ao menos virtualmente, findável. Esperamos mostrar que essa sutil diferença pode engendrar poder de realização do querer.

Já os usos contemporâneos que têm sido feitos do vocábulo escravizado para se referir à escravidão negra parecem ter como propósito resgatar o contexto e a relação histórico-social referente ao período escravocrata, evocando ressonâncias semânticas do pressuposto de responsabilização e de opressão pelo processo de escravidão.

Escravizado, nessa perspectiva, remete a um campo semântico distinto daquele construído e constituído em torno do vocábulo escravo.

Escravo conduz ao efeito de sentido de naturalização e de acomodação psicológica e social à situação, além de evocar uma condição de cativo que, hoje, parece ser intrínseca ao fato de a pessoa ser negra, sendo desconhecida ou tendo-se apagado do imaginário e das ressonâncias sociais e ideológicas a catividade dos eslavos por povos germânicos, registrada na etimologia do termo.

O campo semântico de escravo aproxima a pessoa cativa de um ente que seria escravo, no lugar de permitir entrever que ele estaria nessa condição.

A responsabilização sobre a condição de cativo desliza da parte que exerce o poder e escraviza outrem, para a parte que, oprimida, passa a ser vista como natural e espontaneamente dominada e inferiorizada. Em não se tratando de um estado transitório, mas de uma condição de vida, implícita no termo escravo, seu emprego contribui ardilosamente para a anistia dos agentes do processo histórico de desumanização, despersonalização e de expoliação identitária do escravo ou ex-escravo.

O termo escravo reduz o ser humano à mera condição de mercadoria, como um ser que não decide e não tem consciência sobre os rumos de sua própria vida, ou seja, age passivamente e em estado de submissão, o vocábulo escravizado modifica a carga semântica e denuncia o processo de violência subjacente à perda da identidade, trazendo à tona um conteúdo de caráter histórico e social atinente à luta pelo poder de pessoas sobre pessoas, além de marcar a arbitrariedade e o abuso da força dos opressores.

Nos dicionários pesquisados, não encontramos essa distinção semântica. Porém os verbos “escravizar” e “to enslave” se fazem presentes, associados à força e à dominação, como entradas em alguns dos dicionários pesquisados com as seguintes denominações:

O Dicionário Houaiss da língua portuguesa apresenta escravizar como “[...] submeter (alguém) à condição de escravo [...]. [...] exercer dominação moral sobre; oprimir [...]. [...] tornar submisso, dependente” (p. 803).

O Grande dicionário etimológico-prosódico da língua portuguesa apresenta a forma passiva “escravizado” apenas como uma derivação para o verbo escravizar (p. 1205).

O Cambridge international Dictionary of English denomina to enslave como “to control and keep (someone) forcefully in bad situation, or to make a SLAVE of (someone)” […] (p. 460).

Diferentemente do “escravo”, privado de liberdade, em estado de servidão, o “escravizado” entra em cena como quem “sofreu escravização” e, portanto, foi forçado a essa situação.

As lutas pela liberdade, ao longo da história do Brasil, ganharam especial fôlego nos momentos precedentes à Proclamação da República. Essas lutas, no entanto, dependendo dos setores sociais que as empreendiam, tinham objetivos e ideais muito distintos, ou seja, “brancos e negros interpretavam de modo diverso o significado da liberdade” (WOODARD, 2008 apud GUIMARÃES, 2011, p. 32). Nas palavras de Guimarães (2011), “por ’brancos’ se entende a classe média urbana e os fazendeiros e por ‘negros’, a população pobre” (GUIMARÃES, 2011, p. 32).

Essas considerações trazem à tona os conflitos sociais inerentes ao período anterior e posterior à Proclamação da República. No entanto, essas relações polêmicas receberam, no âmbito da linguagem um tratamento atenuante.

Exemplo disso é o teor do Hino da Proclamação da República, cuja letra é de Medeiros e Albuquerque (1867-1934) e a música de Leopoldo Miguez (1850-1902). O hino, inicialmente. submetido como candidato a novo hino nacional em um concurso promovido pelo governo no início do regime republicano, foi, em janeiro de 1890, apenas decretado como Hino da Proclamação da República.

O ideário de liberdade presente no hino aparece discursivizado como uma entidade transcendental, idealizada, resultante muito mais de uma dádiva do que de uma conquista, capaz de acolher todos os brasileiros, independente das distinções culturais, raciais e econômicas, sendo ela responsável por uma integração igualitária e fraterna de todos os cidadãos, elevando-os à condição de irmãos de pátria: “Livre terra de livres irmãos! / Liberdade! Liberdade! / Abre as asas sobre nós!”.

Nesse modo de contar a história do Brasil, os negros cativos ganham a liberdade, pela mão de uma nobre dama, essa mesma liberdade que espontaneamente “abre as asas” sobre todos os brasileiros, sem restrições. Quanto ao passado, não há indício de superação das injustiças ou de conquista de direitos. A poética oculta a dura realidade da escravidão e da liberdade sem futuro.

É o Brasil, ainda eternamente deitado em berço esplêndido, que se recusa a olhar para sua história e, a cuidar suas feridas sociais e políticas. Ao revés, esforça-se por continuar deitado eternamente e a acreditar que o passado foi outro, fugindo, assim, à responsabilidade sobre o tema da escravidão, entre outros. defende serem três as liberdades essenciais liberdade de cultura, liberdade de organização social, liberdade econômica.

Pela liberdade de cultura, o homem poderá desenvolver ao máximo o seu espírito crítico e criador; ninguém lhe fechará nenhum domínio, ninguém impedirá que transmita aos outros o que tiver aprendido ou pensado.

Novamente, pela liberdade de organização social, o homem intervém no arranjo da sua vida em sociedade, administrando e guiando, em sistemas cada vez mais perfeitos à medida que a sua cultura se for alargando; para o bom governante, cada cidadão não é uma cabeça de rebanho; é como que o aluno de uma escola de humanidade: tem de se educar para o melhor dos regimes, através dos regimes possíveis.

Através da liberdade econômica, o homem assegura o necessário para que o seu espírito se liberte de preocupações materiais e possa dedicar-se ao que existe de mais belo e de mais amplo; nenhum homem deve ser explorado por outro homem; ninguém deve, pela posse dos meios de produção e de transporte, que permitem explorar, pôr em perigo a sua liberdade de espírito ou a liberdade de espírito dos outros.

Para galgar tal nível de conquista almejada pelo filósofo português, um passo importante parece-nos ser dado ao evocar, na palavra empregada para referir os negros cativos brasileiros, a necessidade da não permanência do estado e a ação do agente da passiva, logo, sua responsabilização. É pouco, mas é suficiente para introduzir uma tensão que nas narrativas brasileiras se tem escamoteado.

Ao narrar a história da libertação dos escravizados, da conquista da liberdade daqueles que estiveram subjugados pelo poder opressor, na figura e versão da aristocracia brasileira.

Os percursos discursivos da conquista da liberdade são caminhos que perpassam uma série de valores ideológicos, patêmicos e pragmáticos, motivados pelos mais variados interesses pessoais e coletivos.

Nessa perspectiva, cada contexto de luta pela liberdade se configura como um sistema complexo e motivador de leituras, significações e possibilidades interpretativas.

A substituição do vocábulo “escravo” por “escravizado” significa a instauração de um novo ponto de vista, uma pequena conquista, porém, com potencialidade para se desdobrar em outras mais significativas.

A relação entre Machado de Assis e a luta pela abolição da escravatura tem sido um tema constante, em geral polvilhado de equívocos e – mesmo – preconceitos, em nossa história literária. Como escreveu o próprio Machado, em uma de suas matérias jornalísticas que antecederam o 13 de maio, “há muito burro neste mundo”.

em outra oportunidade, ao elogio de Machado a uma peça teatral, Mãe, de José de Alencar, manifestamente abolicionista. Porém, estávamos ali mais interessados nas contradições de Alencar (que, como político, estava muito longe do abolicionismo) que na atitude de Machado – que, como se sabe, não era branco – diante da mesma questão (v. “O nascimento da República e os jabutis em cima das árvores-12”, HP 27/02/2015).

Na obra “Americanas”, livro de poemas de 1875, deparamos com alguns trechos que não são, literariamente, desprezíveis. Por exemplo, o quarteto inicial do poema que Machado dedica a José Bonifácio (“De tantos olhos que o brilhante lume/ Viram do sol amortecer no ocaso, / Quantos verão nas orlas do horizonte/ Resplandecer a aurora?”).

No mesmo livro está o poema “Sabina”, sobre uma violência da escravidão especialmente cruel: “Sabina era mucama da fazenda;/ Vinte anos tinha; e na província toda/ Não havia mestiça mais à moda,/ Com suas roupas de cambraia e renda.”. Sabina, que não vive na senzala, mas na casa-grande, não percebe – ou percebe difusamente, confusamente – a sua própria condição de escrava, e se apaixona pelo filho de seus senhores.

Nos versos de Machado: “e ela seguia/ Ao sabor dessas horas mal furtadas/ Ao cativeiro e à solidão, sem vê-lo/ O fundo abismo tenebroso e largo/ Que a separa do eleito de seus sonhos,/ Nem pressentir a brevidade e a morte!”.

Sabina engravida do rapaz, que viaja – e, depois, volta já casado. Ela decide suicidar-se. À beira do rio em que pretendia afogar-se, no entanto, o pensamento de que isso seria matar também o filho faz com que desista: “Ali ficou. Viu-a jazer a lua/ Largo espaço da noite ao pé das águas, / E ouviu-lhe o vento os trêmulos suspiros;/ nenhum deles, contudo, o disse à aurora.”

Em seu livro “Machado de Assis: estudo comparativo de literatura brasileira”, publicado em 1897, Romero dedica-se a demonstrar que Tobias Barreto – seu mestre e mentor na “Escola do Recife” – é mais importante para a literatura nacional do que Machado de Assis.

Hoje, não há necessidade de refutar a tese de Sílvio Romero. A realidade já se encarregou dessa tarefa. É necessário apenas, no que vem a seguir, observar que Romero, ao levantar características étnicas, não o fez como forma de ataque a Machado – até porque Tobias Barreto também era mulato. Não deixam de ser interessantes alguns juízos que ele emite sobre Machado:

“Machado de Assis pode e deve ser também apreciado pelo critério nacionalista. Não o poeta, porque, a não ser em suas pálidas Americanas, este nos desdenhou de todo; sim o romancista e o contista; porque estes dignaram-se de olhar, uma vez por outra, para nós.

Em que pese ao Sr. José Veríssimo, o nisus central e ativo de Machado de Assis é de brasileiro, e como tal se revela no caráter essencial de sua obra de mestiço” (Sílvio Romero, op. cit., Laemmert & C – Editores, Rio, 1897, p. 341).

A capacidade de Machado de criticar a sociedade escravagista através do suposto ponto de vista dos escravagistas é a chave para a explosão literária iniciada com “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, livro que foi publicado em partes – nas palavras do autor: “aos pedaços” – a partir de março de 1880, pela “Revista Brasileira”.

Os dois últimos romances de Machado – “Esaú e Jacó”, de 1904, e “Memorial de Aires”, de 1908 – talvez sejam menos importantes para verificar a visão do autor sobre a escravidão (e sua posição no movimento pela libertação dos escravos), pois foram escritos bem depois da Abolição. Mesmo assim, merecem, sob esse ponto de vista, algum relevo, especialmente o último.

O único ponto que une – além da própria aparência, da idade e da beleza da lua e da enseada de Botafogo – os gêmeos da Baronesa de Santos, em “Esaú e Jacó”, é a Abolição. Mas, logo em seguida, os separa novamente:

“Não esqueça dizer que, em 1888, uma questão grave e gravíssima os fez concordar também, ainda que por diversa razão. A data explica o fato: foi a emancipação dos escravos. Estavam então longe um do outro, mas a opinião uniu-os.

Não podemos olvidar, nessa saga contra a escravidão, alguns dos afetados, como Machado de Assis pois, ao caracterizar o escritor Machado de Assis, o professor Luís Augusto Fischer é nada parcimonioso e afirma que se trata de “um caso realmente raro de um sujeito especialmente inteligente e ao mesmo tempo operoso, em cuja obra podemos encontrar um tanto da alma do país em sua época”, e que para o Brasil tem “o valor de um Shakespeare, de um Balzac, de um Cervantes, de um Camões, um Dante”.

Destacar este brilhantismo é oportuno quando, ao longo do tempo, são percebidas tentativas polêmicas de atenuar a inegável afrodescendência do escritor. Machado viveu quase meio século até a escravatura ser abolida no país. Filho de mãe branca e pai negro, seus avós paternos eram alforriados. “Etnicamente, pelos critérios de hoje, ele é evidentemente afrodescendente.

O espectro que ronda o escritor Machado de Assis é o do “embranquecimento”. Desde o mal-estar causado, por exemplo, em Sílvio Romero -- um dos principais críticos literários do final do século XIX -- pela influência inglesa em seus trabalhos até o silêncio e/ou desprezo dos atuais movimentos negros, o espaço socioideológico ocupado pelo autor de Memorial de Aires (“o livro mais bem escrito em português que há”) sempre foi tema conflitante.

Não é rara a caracterização de Machado como funcionário público fisiológico, ardiloso burguês e mulato omisso em relação ao abolicionismo. Um intelectual do porte de um Nélson Werneck Sodré, mesmo reconhecendo as qualidades artísticas do escritor, também desenhou esse Machado traidor de sua “raça” e de sua classe (o filho de Francisco José e Maria Leopoldina nasceu, em 1839, no Morro do Livramento, e pertenceu aos extratos mais baixos da sociedade fluminense.). Pobre, negro, gago e epilético: Machado de Assis teve quase tudo contra si e, mesmo assim, se erigiu como gigante, tanto que é reconhecido como um dos mais expressivos, senão, o maior escritor brasileiro.

Referências

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VIALAR, Paul. Chronique française du XXe siècle. Volume 10, s/l: Del Duca, 1955.

 

Obs.: Esse modesto artigo pretende ser uma homenagem póstuma ao Dr. Bóris Fausto que contribuiu com mais de trinta obras e nos ajudou a compreender o nosso país e mazelas. Vá em paz, mas vai deixar muita saudade.

 

GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 30/04/2023
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