"O conhecimento é o mais potente dos afetos: somente ele é capaz de induzir o ser humano a modificar sua realidade." Friedrich Nietzsche (1844?1900).
 

Professora Gisele Leite

Diálogos jurídicos & poéticos

Textos


Jornalismo de Hoje

 

 

As mudanças que estão acontecendo na produção de informação no mundo contemporâneo trouxeram uma revalorização do jornalismo interpretativo, da reportagem com maior profundidade e de outras narrativas mais didáticas. E, que primam por orientar o cidadão e fomentar uma cidadania proativa.

Sigmund Freud reconhecidamente um dos maiores estudiosos da psiquê humana, bem depois de Hipócrates nos trouxe o modelo da escuta e, dessa escuta por vezes tão rara e difícil. Cogita-se muito, esbraveja-se muito porém, escuta-se pouco.

Carl Gustav Jung, outro estudioso, que enfatizou o inconsciente, repete o tempo todo que quem está ali diante do médico, terapeuta ou curador, não é um doente, ou, pior uma doença, mas um ser humano. Recomendou primeiramente escutá-lo e auxiliá-lo para que conte sua história, e enfim, consolá-lo.

Não se trata de uma invenção de Jung pois os hipocráticos já procuravam em priscas eras agir de acordo com tal entendimento.

Chegará um tempo, narrou o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, em que teremos que recuperar com atraso, tantas coisas que possuímos quando nos chamavam de atrasados. O referido sociólogo criticou certo modelo meio equivocado de ciência que opera na relação sujeito-objeto, fazendo do outro não um sujeito, mas sim, uma coisa.

Tal modelo de ciência desqualifica o que não consegue colocar na gaveta tão abarrotada de seu método.

A atitude de Hipócrates de reconhecer o direito sagrado da pessoa à palavra já revela a inteligente percepção como se processa a vida e o poder terapêutico da palavra, fala, ou simplesmente, narrativa. Walter Benjamin escrevera um texto cujo título traduzido é "Narrativa e cura" e, nele cogitou sobre os efeitos de se contar histórias

para uma criança. E uma das observações do filósofo traduz, com perfeição, o pensamento hipocrático: "Também se sabe como a narrativa que o doente faz ao médico no começo do tratamento pode tornar-se o início de um processo de cura".

Outro questionamento polêmico é: "O que é um homem, ou uma pessoa normal? A pergunta foi feita ao neurocientista Oliver Sacks pelo escritor e roteirista francês Jean-Claude Carriere. A resposta, segundo Carriere, teoria sido a seguinte: “(...) um homem normal talvez seja aquele que é capaz de contar sua própria história.

Ele sabe de onde vem (tem uma origem, um passado, uma memória em ordem) e acredita saber aonde vai (ele tem projetos e a morte, no final)” (apud Garcia, 2015, p. 2). “Para Sacks”, continua Camila Lopes Garcia, na mesma página, “quando o sujeito é capaz de se situar no movimento de um relato, da narrativa, o diagnóstico é positivo – ou tecnicamente negativo para a doença”.

O pesquisador português Nelson Traquina, apoiando-se num conceito, desenvolvido no idos de 1990 por Barbie Zelizer na obra Journalists as interpretative community cogita de uma comunidade interpretativa, que ele considera ser hoje transnacional, para se referir a tribo jornalística.

E, tal expressão mostra-se apropriada tendo em vista as nobres intenções do jornalismo contemporâneo, identificando o jornalismo antes como um mediador, como alguém que trabalha para que a interpretação se torne possível e que o ato interpretativo traduza de fato, um movimento em primeiro lugar do leitor, da audiência e do cidadão.

Entre tantas vozes e muitos sentidos que circulam no meio social, nessa polissemia, as pessoas vão tecendo relações e postulando teias de sentidos que auxiliam na arte de se orientarem na vida presente, num processo denominado de produção social de sentidos.

Convém recordar o poema de João Cabral de Melo e Neto: "Um galo sozinho não tece uma manhã".

Lembremos que as narrativas não são espelhos do nada. Estas produzem a realidade, a organizam tendo em vista a ação. O trabalho da narrativa é mesmo ordenar a experiência, tentar ordenar o mundo em confronto com ele, experimentando-o, sondando-o e continuamente observando e traduzindo os sentidos.

As narrativas em geral e, a jornalística. em particular, explicam   e ensinam, instituem o mundo, nosso mundo e, assim apesar do caráter narrativo não ser tão evidente, a pretensão de verdade mostra ser um lugar de disputa pela voz, onde os antagonismos se enfrentam por versões consistentes que persuadam os destinatários.

Não podemos confundir a verdade com versão. A verdade para Filosofia conhece hordas particulares, como o dogmatismo onde a verdade tem caráter absoluto e, ainda apresenta um conjunto de princípios e valores que são indiscutíveis. Em contraponto a esse relativismo moral e ao dogmatismo, a Filosofia ocidental contemporânea começou a questionar tais tradições.

O filósofo Husserl aponta que a verdade se dá através dos fenômenos que são observáveis, perceptíveis e sensíveis. Ao que denominamos fenomenologia. O filósofo Jean-Paul Sartre dentro do contexto do fim da Segunda Guerra Mundial levou em conta o existencialismo. E, para ele, a verdade está na essência do indivíduo, sendo resultante de valores de uma sociedade. Enfim, para Sartre não importa o que você é, importa saber o que fazer com aquilo que fizeram de você.

Nietzsche[1] fez uma crítica aguda ao pensamento clássico, ou seja, ao mundo das ideias construído por Platão e Sócrates. E, defendeu que a verdade não existe.

O filósofo contemporâneo Michel Foucault veio dizer que para ser verdade, ela precisa ser totalmente livre. Ela não pode estar vinculada a uma institucionalização porque, desta forma, a verdade será manipulada gerando constrangimentos e formas de comportamento.

As teorias da verdade são teorias que fornecem uma definição de verdade para uma linguagem. Há controvérsia sobre as teorias da verdade que se situam em três partes: O que é verdadeiro? É uma crença, uma proposição, uma afirmação ou uma frase? E a que corresponde a um estado de coisa, a uma situação, a uma realidade ou a um fato? E qual relação é essa a que se chama correspondência entre o que é verdadeiro e o que o faz verdadeiro?

A respeito da crise do modelo de jornalismo impresso, frente ao avanço de informação noticiosa pelo rádio e televisão. A negação da narrativa por parte do jornalista só pode advir de espaços onde ainda impera o que Edgar Morin, em várias obras costumou a chamar de inteligência cega. Ou seja, o puro reducionismo.

O paradoxo de se dispor de muita informação e, ao mesmo tempo, se sentir desinformado, desorientado, pode até ser muito mais intenso nos dias que correm por causa das múltiplas facilidades tecnológicas, mas não é novo. Essa situação inusitada gerou uma demanda por jornalismo em profundidade, nos Estados Unidos, a chamada “pátria da notícia”, já no início do século XX.

Essa sensação ruim de perda de orientação, como resultado de muita informação e pouco nexo entre as notícias, de pouca conversa entre uma narrativa e outra, uma informação e outra, se reforçou de maneira especial durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), como escrevem Medina e Leandro, em A arte  de tecer o presente: jornalismo interpretativo.

Era como se o mundo tivesse enlouquecido e as pessoas não soubessem bem por quê.

Na década de 1930, Curtis McDougall lança nos Estados Unidos um clássico do jornalismo interpretativo, a obra Interpretative reporting, em que alerta para “uma crescente demanda por noticiário em profundidade”, como escrevem Medina e Leandro.

O jornalismo, nas palavras dos dois autores brasileiros, devia mostrar os bastidores das ações, relatar as notícias dentro da moldura  da vida e das experiências do leitor, apontar o sentido dos fatos e as perspectivas das notícias diárias, o significado das ocorrências, a  relevância das correntes dos acontecimentos.  

Movidos, na época, por uma forte razão de natureza racionalista – o jornalismo interpretativo era visto, basicamente, como a informação explicativa ou analítica –, e  tendo buscado em Marx, Nietzsche e Freud  subsídios para uma teoria da interpretação.

Fazer um jornalismo interpretativo é não se contentar com um relato relativamente perceptivo do que está acontecendo, mas buscar aprofundamento.

E, distingue-se o interpretar do opinar, entendendo a interpretação como o esforço de determinar o sentido de um fato, através de uma rede de forças que atua neste, não a atitude de valoração desse fato ou de seu sentido, conforme se faz em jornalismo opinativo.

As noções de fake news e de pós-verdade se referem ao problema das notícias que inundam cada vez mais nosso cotidiano, que se passam por verdadeiras e exercem fortes efeitos de poder, independentemente de sabermos se elas são verdadeiras ou não.

E, para debater tal problema, a crítica de Nietzsche à teoria da verdade como correspondência, destaca a relação inextricável existente entre verdade e poder e, ainda, aponta para concepção perspectivista de verdade, que nos parece não só ser mais apta a descrever a realidade tal como as fakes news, mas também a fornecer um critério de decisão entre perspectivas.

Assim, a suposta isenção e objetividade jornalísticas, é a sinceridade a respeito dos próprios interesses e impulsos que aparece como critério de decisão e como ponto de partida para uma ética perspectivista.

 

 

Referências

 

ARENDT, Hannah. Compreensão e política (As dificuldades da compreensão). In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo. São Paulo; Cia. das Letras, 2008.

BELTRÃO, L.A. A pesquisa dos meios de comunicação e a universalidade. In: Faculdade Cásper Líbero. Panorama atual da pesquisa em comunicação. São Paulo: Faculdade Cásper Líbero, 1968.

CHAUÍ, M. A arte médica. In: Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. 2ª edição revista e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

ELIADE, M. O sagrado e o profano: a essência das religiões. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

FOUCAULT, Michel. Histoire de la folie à l'âge classique. Paris: Gallimard, 1972. (Coll. Tel).

________. Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines. Paris: Gallimard, 1966. (Coll. Tel).

________. Naissance de la clinique 5ª. ed. Paris: Quadriage; P.U.F., 1997.

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

GARCIA, C. L. O Facebook e a terceirização do narrador: uma análise sobre as ferramentas “A look back” e “On this day”. Texto apresentado ao V Congresso Internacional de Comunicação e  Cultura (V Comcult). São Paulo, Faculdade Cásper Líbero, 11  e 12 de novembro de 2015

HUSSERL, E. Expérience et Jugement. Paris: PUF, 1970.

__________. Logique formelle et logique transcendetale. Paris: PUF, 1957.

MEDINA, C. de A.; LEANDRO, P. R. A arte de tecer o presente:  jornalismo interpretativo. São Paulo: Edição dos Autores, 1973.

MEDINA, C. de A. Notícia, um produto à venda. São Paulo:  Summus, 1988.

MEDINA, C. de A. A arte de tecer o presente: narrativa e cotidiano. 2ª edição. São Paulo: Summus, 2003.

MOTTA, L. G. Narrativas: representação, instituição ou experimentação da realidade? VII Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo. São Paulo, Universidade de São Paulo. Novembro de 2009. Disponível em: <http://sbpjor.kamotini.kinghost.net/sbpjor/admjor/arquivos/luiz_gonzaga_motta.pdf>. Acesso em 10.02.2023.

NIETZSCHE, Friedrich. Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral. São Paulo: Hedra, 2007.

 

 

 


[1] Nietzsche considera a verdade como uma metáfora, pois ele considera a verdade apenas uma forma de conceber a comunicação por conveniência.  A filosofia surge da necessidade de despertar o lado racional humano, com isso, pode - se refletir, argumentar e pensar de maneira lógica e racional acerca das coisas.

GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 12/02/2023
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