An ambitious monster
Resumo: A peça teatral Ricardo III escrita por Shakespeare traz como protagonista numa recriação literária de um rei de aparência antiestética e inaceitável e. que ainda exibe seu caráter vil. Sua imagem do vilão numa perspectiva histórica é bastante discutida pela historiografia inglesa, mas a narrativa é sedutora principalmente pelos retóricos argumentos do protagonista a demonstrar a essência humana em suas mais variadas nuances e, ainda, sobre o significado da política.
Palavras-chave: Inglaterra. Lancaster. York. Tudor. Plantageneta. Shakespeare. História da Inglaterra. Guerra das Rosas.
Abstract: The play Richard III written by Shakespeare features as a protagonist in a literary recreation of a king with an unsightly and unacceptable appearance. which still displays its vile character. His image of the villain in a historical perspective is widely discussed by English historiography, but the narrative is seductive mainly by the rhetorical arguments of the protagonist to demonstrate the human essence in its most varied nuances and also on the meaning of politics.
Keywords: England. Lancaster. York. Tudor. Plantagenet. Shakespeare. History of England. War of the Roses.
Introdução.
Analisar a peça sobre Ricardo III de William Shakespeare que foi escrita por volta de 1593 bem como a relevância dos fatos históricos que contextualizaram o enredo nos remete ao período da Guerra das Duas Rosas ou Guerra das Rosas[1]. A ambição sobre a coroa inglesa constrói a narrativa criado pelo bardo, onde não faltam intrigas e assassinatos.
A peça relata os acontecimentos que se deram logo ao final do conflito onde a dinastia York, depois de ter derrubado os Lancaster e, por sua vez que fora derrotada pela dinastia Tudor.
Ricardo III é o vilão[2] que se apresenta fisicamente deformado e antiestético e que estava disposto a matar todos aqueles que representassem algum óbice para obsessão em conseguir o trono inglês. Procura-se a razão de haver tantas divergências entre os reais eventos históricos e a narrativa escrita pelo bardo, principalmente em relação ao caráter de Ricardo III.
Nessa empreitada, o new historicism ou novo historicismo foi pressuposto par a boa análise do contexto histórico no qual teve a colaboração de Smith, Bloom[3] e Carpenter e Parvini, entre outros. Para compreender razoavelmente o caráter de Ricardo III a partir de uma análise comparativa entre os eventos históricos e a peça teatral de Shakespeare.
A peça, em comento, tratou da Guerra das Rosas, uma história real e bastante popular e, convém alertar que o Bardo escrevia para entreter o público e, portanto, a fidelidade à crueza da história não era necessária e quiçá obrigatória[4].
O autor seguiu a senda aberta por seus contemporâneos sobre a Guerra das Rosas[5] e contribuiu para a propaganda dos Tudors, onde os York eram os vilões derrotados pelos heroicos Tudors que era descendentes de Lancaster.
Por vezes, numa contemplação puramente carioca, vicejo nobreza demais para poder de menos. Há uma visão enriquecida dos bastidores políticos de todos os tempos e de todas as culturas onde as alianças se fazem e se desfazem ao sabor dos interesses mais prementes. E, ocorre toda sorte de promessas e traições políticas. O ser político como um ator vale a pena ser objetos de cena e de personagens coadjuvantes, para cativar a atenção do público.
Ricardo III fora rei da Inglaterra entre 1483 a 1485, um reles biênio, mas de fato, armou complôs, tramou a morte de vários desafetos. A trama teatral se inicia com um dos solilóquios mais famosos do teatro no qual Ricardo III brada: -“Temos agora o inverno do nosso conhecimento transformado em verão glorioso por esse astro-rei de York; e, todas as nuvens que pesaram sobre a Nossa Casa estão enterradas no fundo do coração do oceano”. (Shakespeare, 1593/2010, p.25).
Nesse momento, narra Ricardo que agora a casa de York reina em paz após a derrota dos Lancaster e, em seguida nos revela sobre sua deformidade[6] e condição física. Porém, não está feliz nem satisfeito com a paz, a música e as festas do reino. Afinal, desejava nova guerra[7] e nos promete a ser o vilão que buscará a coroa inglesa para si.
Alguns intérpretes entendem que Ricardo III almejava o poder e ser o soberano na Inglaterra como forma de compensação de a natureza ter lhe desprovido de beleza estética e deixado em seu corpo aleijões.
- “Portanto, uma vez que não posso e não sei agir como um amante, a fim de me ocupar nestes dias de elegância, estou decidido a agir como um canalha e detestar os prazeres fáceis de hoje”
Ricardo III nos relata ter colocado seu irmão Rei Eduardo IV, contra seu outro irmão George, Duque de Clarence, sob o pretexto da profecia. E, que dizia que os herdeiros do rei serão assassinados por um algoz cujo nome começa com a letra G.
Logo, o rei acreditava ser George este assassino. Mas, nós devemos nos ater do título real de Ricardo que também se insinua com a Letra G, afinal, era o Duque de Gloucester.
Desde o início, somos cúmplices de Ricardo, pois somos, também, seus confidentes. Nós sabemos de seus planos, sentimentos e, acabamos convencidos de sua inteira maldade[8]. Em seguida, presenciamos a hipocrisia de Ricardo ao fazer uma promessa a George de que intercederia por ele diante do Rei Eduardo IV, uma vez que George fora preso.
Posteriormente, Ricardo planejou se casar com Lady Anne que está em luto pela morte de seu esposo e de seu sogro e, caminhava ao lado do corpo do falecido rei Lancaster. Ela acusava Ricardo de tê-los assassinado, enquanto isso, ele a cortejava. E, depois de várias brigas e desentendimentos, Anne acabou cedendo aso encantos e seduções de Ricardo e, finalmente, casou-se com ele.
Noutra cena próxima, Elizabeth Woodville temia a doença de Eduardo IV, uma vez que Ricardo será o regente caso o rei venha a falecer. Ao ver a discussão, Margaret de Anjou entra em cena e amaldiçoou todos aqueles que contribuíram para a derrota dos Lancaster.
E, curiosamente, todas as maldições acabam se realizando. Margaret prevê a morte dos herdeiros da rainha, previu a morte dos herdeiros da rainha, que perderá seu título e, morrerá em desgosto. A morte do Conde Rivers, Richard Grey e Lorde de Hastings, a traição e morte violenta de Ricardo. Margaret só poupou Buckingham de suas maldições, uma vez que ele era descendente de uma Rosa Vermelha (Lancaster).
Depois, de Margaret se retirar de cena, Ricardo ordenou a morte de seu irmão Clarence. São contratados dois assassinos que se dirigem à prisão e, finalmente, o matam por afogamento num barril de vinho. E, em seguida, Ricardo, Elizabeth e sua família vão ao encontro ao rei adoentado e acamado e se reconciliam para o bem de todo o reino.
Eduardo IV morreu e, Elizabeth o pranteou enquanto que a Duquesa Cecily (mãe do rei, de George e de Ricardo) lamentou a morte dele e de Clarence juntamente com os órfãos de George.
Para selar a aliança do Conde Warwick com Henrique VI, Margaret Anjou casou seu filho Eduardo, Príncipe de Gales, com a filha mais nova de Warwick, Lady Anne. No entanto, Warwick, Eduardo e Henrique VI foram mortos após a derrota dos Lancaster.
Depois do óbito de Eduardo e George, apenas duas criaturas impediam Ricardo de se tornar o rei da Inglaterra, os dois jovens príncipes do falecido Rei que era Eduardo e Ricardo. Então, Ricardo viaja com Buckingham para adquirir o controle sobre o novo Rei Eduardo V e, acaba prendendo-o e, depois, executando Conde Rivers e Richard Grey.
Assim, após obter o controle do jovem Ricardo, este o alojou na Torre de Londres e, preparou o golpe para usurpar-lhe a coroa inglesa.
Quando Hastings se recusou a fazer parte do plano de Ricardo, acabou sendo executado como traidor sobre o pretexto de defender Elizabeth Woodville que jogara o feitiço sobre o braço de Ricardo.
Muitas pessoas acreditavam piamente que Elizabeth Woodville era uma bruxa e que havia enfeitiçado o Rei Eduardo IV para que se casasse com ela. E, em seguida, Buckingham convenceu o prefeito e outros lordes de que o Rei Eduardo IV era filho ilegítimo de Ricardo, o Duque de York e, portanto, seus filhos e herdeiros eram bastardos.
Desta forma, o prefeito convidou e insistiu para que Ricardo então assumisse o trono e então, acaba se tornando, finalmente, o Rei Ricardo III. Mesmo assim, o novo Rei ainda se sentia ameaçado pelos príncipes alojados na Torre de Londres e, remunerou James Tyrrel, um cavaleiro insatisfeito para matar os dois infantes que faleceram sufocados durante o sono.
E, afirmara, de certa feita: - “Quero os dois bastardinhos mortos e, gostaria que isso fosse providenciado com rapidez”. Porém, Ricardo III se recordou de antiga profecia realizado por Henrique VI na qual afirmava que Henrique Tudor, Conde de Richmond seria o Rei e, isso quando não passava de mero menino impertinente. Nessa ocasião, Richmond está no exílio no País dos Gales e, doravante planejava invadir a Inglaterra para tomar a coroa de Ricardo III.
Ele prometera casar-se com a princesa Elizabeth (filha do Rei Eduardo IV e Elizabeth Woodville) para, finalmente, unir a Rosa Vermelha à Rosa Branca e, então, trazer a paz para reinar na Inglaterra.
Ricardo, no entanto, já planejava a morte de sua esposa Anne Neville e convencer Elizabeth Woodville a casar sua filha com ele. E, justificava que por ter tomado o reino de seus filhos de Elizabeth para remediar, desejava dá-lo à sua filha. (,,,) Ao final da peça, Buckingham armou seu exército contra Ricardo porque não cumpriu as promessas que fizera ao Duque de lhe dar algumas das terras que pertenceram a sua família.
Mas, graças ao dilúvio, Buckingham acabou morrendo e, verificou-se também os exércitos e alianças sendo formadas. E, um dia antes da Batalha, os fantasmas de todos aqueles que foram mortos invadiram o sono de Richmond, encorajando-o sua vitória e atormentando Richard ao lhe provocarem medo e prevendo sua derrota.
Nesse exato momento, presenciou a carnificina que Ricardo executara para galgar o trono da Inglaterra. Richmond acordou em paz, ao passo que Ricardo acordou atormentado. Os exércitos lutaram no campo de Bosworth, onde finalmente, Ricardo foi derrotado.
Assim, morreu o derradeiro Rei Plantageneta e a dinastia Tudor então começou sua história no reino inglês. Há uma cena pungente, quando Ricardo clama por um cavalo. Meu Reino, por um cavalo![9]
Vigem divergências variadas entre a peça Ricardo III e os eventos históricos que se sucederam a Guerra das Rosas. Na peça de Shakespeare, o Duque de Clarence está vivo durante o final do reinado do Eduardo IV, quando em verdade, sabia-se que este morrera em 1483 e que Clarence fora executado em 1478.
Afora isso, Henrique IV morrera em 1471, anos antes da morte de Clarence e Eduardo IV, mas, na peça vemos Lady Anne de luto ao lado de seu corpo, pois falecera recentemente. Ademais, Ricardo casou-se com a Lady Anne em 1472 e, na peça, o casamento só acontece após a morte do Rei Eduardo IV.
Outro contraste é a presença de Margaret (ou Margarida ou Marguerite) Anjou, quando em verdade, ela havia voltado para a França em 1475 e morrera em 1482 (antes mesmo da morte de Eduardo IV e da ascensão ao trono de Ricardo).
Desenvolvimento
Por derradeiro, Ricardo reinou na Inglaterra apenas por dois anos e, na peça teatral, os eventos se sucederam muito rapidamente. O primeiro algo das divergências é mesmo quanto à descrição física de Ricardo.
Em 2012, os restos mortais do Rei Ricardo II foram encontrados na Inglaterra por uma escavação arqueológica realizada pela Universidade de Leicester e, analisando o corpo do último rei Plantageneta evidenciou-se que havia grande curvatura na coluna cervical (escoliose idiopática) e que ele morrera devido a grave golpe na cabeça bem como por outros ferimentos.
Realmente, o Rei Ricardo III tinha deformidade física , porém, não como noticiava a peça de Shakespeare que escolheu sua monstruosidade como método de enfatizar sua maldade e seus malévolos sentimentos.
Há outras incongruências, pois Clarence traiu seu irmão, mas recebera o perdão real e, mesmo assim, voltou novamente a conspirar contra o Rei e, então, acabou sendo executado.
Já, na peça teatral, o personagem Clarence mostrava-se inocente e sempre fiel à Eduardo IV e, sua morte ocorreu pela traição de Ricardo, responsável por sua execução.
No entanto, tanto o verdadeiro Clarence como também o personagem de Shakespeare têm o mesmo fim, ou seja, o de morrer afogado em um barril de vinho.
Ao lermos a peça de Shakespeare, sabemos que Lorde Hastings fora preso por ordem de Eduardo IV. Embora não se saiba exatamente por qual motivo. Mas, Hastings nunca fora preso e sempre fora um dos amigos mais íntimos do rei.
Porém, realmente fora decapitado por ordem de Ricardo III que se sentia ameaçado por Hastings, embora sua suposta traição não se desse sob a acusação de defender Elizabeth, por ter enfeitiçado o braço de Ricardo III.
Em seguida, assistimos na peça Lady Anne na corte de luto pela morte de seu marido e sogro. Aliás, discutira muito com Ricardo e, ainda, enfatizou seu desprezo por ele, acusando-o de ser assassino, mas ao final, aceitou e acabou casando-se com Ricardo.
Em verdade, muito pouco se sabe da biografia da Lady Anne Neville, mas é bem provável que conhecesse Ricardo desde de criança, uma vez que a educação do Duque de Gloucester era responsabilidade de seu pai, o Conde de Warwick.
Ademais, o seu casamento com o filho de Henrique VI, simplesmente se fizera para selar a aliança entre Warwick com Margaret Anjou,
É improvável o seu luto pelas mortes de Eduardo e Henrique VI, pois a família fora sempre aliada dos Yorks e, seu casamento com Eduardo durou poucos meses e, ela tinha forte desprezo por Ricardo, tendo apenas aceitado casar-se logo após ter ficado viúva.
Não há menção sobre o filho do casal Ricardo e Anne pois, este morrera ainda infante. Anne permanecera muito doente por alguns meses e, veio a morrer por causas naturais.
Outro contraste notável é o casamento da filha de Clarence arranjado por Ricardo. Em verdade, esse casamento posteriormente por Henrique VII, uma vez que a filha de Clarence ainda era infante durante o reinado de Ricardo III.
Outro cerne inverídico é a que Elizabeth, a Duquesa de Cecily e Lady Anne tentaram visitar os príncipes na Torre de Londres, sendo que Elizabeth estava alojada na Abadia Westminster e Anne apoiava o marido, Ricardo III.
Como era previsível, Shakespeare seguiu seus contemporâneos e contribuiu para a propaganda dos Tudors ao vilanizar os Yorks e favorecer o regime de Lancaster e Tudor.
Jamais, saberemos ao certo o que o Bardo pensava realmente a respeito de Ricardo III. E, para melhor entender suas peças é relevante entender a Guerra das Rosas apesar de haver muitas divergências[10] na narrativa histórica.
Interessante é que o new historicism nos apresenta uma leitura mais esclarecedora e capaz de analisar o contexto social e cultural onde se formou o texto literário. E, ler as obras de Shakespeare é uma experiência sempre renovadora por nos relatar um passado distante e, ao mesmo tempo, narrar situações presentes ainda no presente. Por isso, sempre afirmo que é muito contemporâneo.
Suas obras ocupam um espaço curiosamente duplo e vasto posto que seja produto do passado remoto e, também, é objeto do tempo presente que tem uma história própria.
Os estudiosos do new historicism e do cultural materialism têm ressaltado a necessidade de se ter historicamente de estudar acima de tudo, o momento histórico no qual as peças teatrais foram escritas.
Diante da magnitude do texto teatral de Shakespeare, acreditar que possuía um dom criativo único o que nos faz concluir que realizou bem mais que a propaganda dos Tudors e dos Stuarts. Deve-se observar a obra literária identificando-o que têm a informar sobre a história e a política[11] e que ainda possuem relevância no contexto contemporâneo.
Conforme afirmou Neema Parvini o poder de alterar o curso da história está nas mãos dos indivíduos e de suas habilidades tais como a imaginação. E, o Bardo nos ofereceu a chance de investigar a funda a questão humana na história da Inglaterra, pois criou conflitos e motivos individuais para as ações[12] de cada personagem através de profunda análise de caráter. O Bardo não precisava ater-se aos fatos históricos, apenas escrevia sua narrativa conforme o interesse do texto dramático.
Já, por outro viés, Emma Smith apontou que Shakespeare poderia ter sido uma maior admiração por Ricardo II do que por Richmond (Henrique VI). Tanto que o título original da peça que é macarrônico é, in litteris: “The Tragedy of King Richard III: his treacherous Plots against his brother Clarence, the pittiefull murther of his innocent nephews, his tyrannical viurpation with the Whole course of his defeated death”. O que nos aponta que Ricardo III é o personagem principal e, não Henrique VII.
Analisando as peças do Bardo, constata-se que os personagens[13] morrem ao final da peça. Novamente, Richmond confirmava ser pouco relevante pois, novamente, sobreviveu à batalha. Além disso, ele teve poucas falas e, aparece pouco no palco, somente ao final do enredo teatral.
Tal versão condiz a versão de Richmond aparece como o salvador e herói do reino inglês e mostrou uma possível preferência por Ricardo III. Ademais, o protagonista estabeleceu conexão com a audiência que se encanta e se torna cúmplice dele, o que não aconteceu com Richmond[14].
De fato, existem muitas interpretações quanto ao caráter de Ricardo Iii, sendo considerado um vilão monstruoso e disposto a tudo para obter a coroa inglesa e, sua maldade se exterioriza através de sua deformidade física.
Porém, muitos historiadores e até mesmo críticos literários o considerariam apenas um humano muito ambicioso tanto que segundo Harold Bloom, Shakespeare inventou o humano, uma vez que criou personagens individuais com tantas características próprias e, talvez, seja a ambição de Ricardo II que o torne humano.
Mesmo diante de muitas divergências havidas entre os historiadores e divergências entre o relato do Bardo e a verdadeira história, torna-se hercúleo o trabalho de expressar o autêntico caráter do derradeiro rei Plantageneta. Cabe mesmo optar pela versão que melhor lhe agradar.
Shakespeare escreveu sobre questões relevantes de uma forma que nenhum de seus predecessores o fizeram.
Teve a criatividade genial de um escritor extraordinário que havia se engajado numa reflexão profunda sobre as questões pertinentes, bem como sobre as relações entre a sociedade e o indivíduo, sobre as forças que motivaram os indivíduos a tomarem decisões e atitudes e, as forças que determinaram o curso da história.
Conclusão
Apesar das peças de Shakespeare serem baseadas em fatos da história, estes são resultantes da imaginação de seu autor. Registre-se que o Bardo não tinha a intenção de ser fidelíssimo à história[15] e, desejava somente entreter sua plateia e audiência.
Por essa razão, convenientemente, omitiu e mudou certos eventos que se sucederam à Guerra das Rosas e, tais batalhas integraram sua cultura. De fato, as obras shakespearianas pode ser o meio de utilizar os eventos históricos para melhor expressar as opiniões e críticas[16] políticas da época.
E, tais obras revelam a sociedade e a política medieval através do ponto de vista dos Tudors no qual Ricardo III era representado por uma deformidade horripilante tanto física como espiritual.
Em Ricardo III, vige uma implícita crítica da autoridade monárquica. Afinal, se o rei é escolhido por Deus, como pode então outro, distante da linha sucessória, aproximar-se desta? Gloucester, o eventual Rei Ricardo III, entre toda a família real seria o último a assumir o trono. Se a autoridade e a escolha do rei são divinas, foi Deus quem permitiu que seu irmão tomasse o trono de Henrique VI, e se esse for o caso, Gloucester afrontou diretamente a vontade divina, para abrir caminho e tornar-se o rei.
Enfim, a autoridade da monarquia é colocada em xeque por sua multidão. Sem razão legítima, apenas por interesse pessoal, um vício de
caráter, poderá usurpar o trono e desvirtuar a ordem natural da autoridade.
A peça ainda demonstra a oposição das ideias, a saber: a autoridade do ente monárquico contra como um ente frágil às vontades dos homens. Tanto a vontade humana que é do rei quanto a dos súditos que podem controlá-lo.
A ambição pessoal, o poder militar, a retórica[17] e a religião estão diretamente relacionados e, em conflito, mostrando ao público como o Estado monárquico é passível de problemas de poder e, como a simples falta de autoridade ou a ambição desenfreada de um homem pode desestabilizar o reino inteiro, manchar a imagem da realeza e, causar um morticínio incontável para todos os envolvidos.
Curiosamente, é exatamente tais deformidades que tão bem emoldurou sua fama até os dias de hoje. Ricardo III é mais do que mera representação do seu contexto histórico e um personagem único que nos proporciona várias análises quanto sua vilania e ambição[18].
Os personagens de Shakespeare são humanos e atuar em mundos diferentes, as peças são mais do que propaganda da dinastia Tudor é, enfim, um produto da imaginação do autor que já revelava um pensamento crítico sobre a história e sobre a política da Guerra das Rosas.
Analisar o Bardo como mero produto de seu contexto histórico perfaz uma leitura limitada e míope pois, nos ofereceu um trabalho histórico onde se evidenciou vários aspectos relevantes como o social, cultural, econômico, político e ideológico[19] onde os personagens atuam individualmente na história. Afinal, não é a história que moldam os indivíduos e, sim, os indivíduos que fazem a história. Assim, a invenção do humano se perpetua no tempo, no espaço e nos corações da história da humanidade.
Ricardo III é uma peça carregada de semântica, signos, significados, valores pertencentes ao Renascimento, período histórico que rompeu com o mundo medieval, com aquela sociedade agrária, estamental, teocrática e fundiária, mas que contém elementos da política fundamental e, ainda são tão contemporâneo, e trazem firmes parâmetros para entender os grandes impasses e rupturas do pensamento político contemporâneo. Não obstante, o oceano de ambiguidades e intensa liquidez da vida pós-moderna, Shakespeare traz sob a visão crítica e irônica o imanente significado da política.
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[1] "A Guerra das Duas Rosas é um conflito de grande importância para a compreensão do processo de formação da monarquia nacional inglesa. Essa guerra surgiu com a rivalidade entre duas famílias nobiliárquicas: os York e os Lancaster. Estas duas famílias eram provenientes da dinastia Plantageneta, que ocupou o trono britânico durante um longo período. No entanto, a crise entre essas duas famílias se deu por conta da morte do rei Eduardo III e a sucessão do trono às mãos de Henrique VI."
[2] A imagem pejorativa deveu-se, particularmente, ao retrato do monarca nas Crônicas de Holinshed, de 1577/1587, utilizadas como fonte histórica por Shakespeare na peça Ricardo III, que perpetuou a figura de vilão, assassino e capaz de cometer os piores e cruéis atos para conseguir o poder. Alguns estudiosos questionam-se até que ponto a construção da imagem de Ricardo III após sua morte deveu-se aos atos que realmente aconteceram ou eram meras conjecturas a respeito de seu caráter?
[3] Bloom acha que a obra de Shakespeare poderia ser dividida numa fase inicial, que corresponderia ao que denomina de aprendizado, e no período maduro. Na inicial há comédias, três dramas históricos (Henrique VI, Rei João e Ricardo III) e as primeiras tragédias. A obra de maturidade compreenderia também os três grandes grupos em que se costuma situar as suas peças.
[4] De fato, a peça contém ironias e ansiedades históricas. A própria trajetória maligna e bem-sucedida de Ricardo demonstra como a retórica e o teatro podem ser utilizados para ludibriar e corromper. O processo político é propenso à manipulação cínica e o triunfo, vem, principalmente, para aqueles que sabem usar a retórica com um efeito calcado. O padrão de reciprocidade e retaliação é bem mais do que uma forma de demonstrar o propósito divino nas questões humanas, este é, também, uma forma de estruturar o drama para que seja coerente e interessante.
[5] Talvez a primeira causa da guerra civil tenha sido a ação de Henrique Bolingbroke que, em 1399, tomou o trono pela força, coroou-se rei Henrique IV de Inglaterra (r. 1399-1413) e assassinou o seu predecessor Ricardo II de Inglaterra (r. 1377-1399). Henrique foi o primeiro rei Lencastre (o seu pai João de Gante, duque de Lencastre). O regicídio ter-se-ia tornado uma estratégia política chocante, mas não infrutífera. Muito mais próximo da eclosão das guerras estaria o início to reinado incompetente de Henrique VI. O rei tinha sido empurrado para o trono em criança após a morte súbita do seu pai Henrique V de Inglaterra (r. 1413-1422). Rodeado por regentes e cortesãos ambiciosos e sem escrúpulos, o reinado do rei foi marcado pela falta de lei em certas partes do país e por uma economia falida. Depois, precisamente quando Henrique atingiu a maturidade, houve a derrota final a favor da França no final da Guerra dos Cem Anos (1337-1453).
[6] O poder camaleônico de distorcer a si mesmo, mostrando aquilo que lhe interesse a fim de angariar a confiança daqueles que está prestes a destruir é um modo bem provocador da cena de Shakespeare. Ricardo está no mesmo patamar que qualquer outro humano que, porventura, tenha recebido da natureza esses desafios da não adequação física a um padrão de normalidade qualquer. O que é relevante não é sua aparência disforme, mas como ele transforma isto interiormente. E, como devolve essa transformação para o público que resta confuso diante de sua triste figura.
[7] A engrenagem demoníaca da guerra civil é palco e cenário para o apetite e fuga dos juramentos que se quebram, da paixão irrefreada e do interesse egoísta e satânico que se disfarça de sacralidade, da busca de ganhos por meios vis, da mutabilidade e enfraquecimento da deferência à honra estamental ou à dignidade institucional, da insegurança ao patrimônio e à descendência, do esmorecimento, enfim, da autoridade patriarcal.
[8] Entretanto, a proposição que Ricardo é maldoso porque ele nasceu feio logicamente pode ser revertida também: ele nasceu feio porque ele é mal. Esse último conceito, muito devedor às noções da Renascença da correspondência platônica entre as aparências exteriores e as qualidades interiores, é embasado na ideia de um imenso conflito no Cosmos entre as forças do bem absoluto e as forças do mal absoluto, a qual cada evento na vida humana tem um significado e uma causa divina. O nascimento de Ricardo é, de acordo com essa teoria, uma manifestação física desse significado divino. O destino providencial, tendo determinado a necessidade de um gênio do mal nesse ponto da história Inglesa, decreta que Ricardo deve nascer.
[9] Arqueólogos acabam de divulgar que a ossada de Ricardo III, morto em 1485, e que foi encontrada sob um estacionamento de Leicester, na região central da Inglaterra, é mesmo do monarca. “A conclusão acadêmica da Universidade de Leicester é que, além de qualquer dúvida razoável, o indivíduo exumado em Greyfriars, em setembro de 2012, é efetivamente Ricardo III, o último rei da Inglaterra da casa Plantageneta”, afirmou o arqueólogo Richard Buckley, que encabeçou a investigação, desencadeando aplausos do público. A escavação feita pela equipe da Universidade no ano passado descobriu um convento preservado debaixo deste estacionamento no centro da cidade e um esqueleto com uma curvatura na coluna vertebral e cheio de cicatrizes, similares às agressões letais que o rei sofreu no campo de batalha. Após uma bateria de testes e análises de DNA, os especialistas da Universidade anunciaram que os restos mortais encontrados são realmente do último rei da casa Plantageneta.
[10] Talvez, Ricardo III pode não ter sido exatamente o vilão que o Bardo criou, mas existem registros históricos de atitudes que podem ser interpretadas como no mínimo, ambiciosas. Tão logo assumiu o tropo, fez com que o rumor de que os filhos de seu irmão e antigo rei, Eduardo IV eram ilegítimos, e, portanto, bastardos e, assim destituindo-os do direito real. A vilanização de Ricardo ao lado do mito da bestialidade e deformidade baseia-se nos poucos escândalos que teve enquanto rei. Tanto que se aproveitou de sua posição como Lorde Protetor de seu sobrinho, futuro rei, porém, nunca coroado Eduardo V, para se apoderar do trono inglês. Mas, se não o tivesse feito, é bem provável que não teria sobrevivido tanto. Enfim, era um homem de seu tempo, um nobre da Baixa Idade Média e, de muitas maneiras a peça nos mostra como o presente se transforma o passado tão rapidamente. E, o passado pode ser distorcido. O temido Duque de Gloucester é a sombra da poderosa ficção de Shakespeare.
[11] O conceito de política como tragédia é tema central da peça e aponta para a incerteza, a imprevisibilidade e o descontrole como fatores das conjunturas políticas. E, numa tradição que abarca Nietzsche, Maquiavel, Hobbes e Marx, a política como tragédia nos sintetiza a insuficiência das práticas políticas e clarifica que o governante não tem controle absoluto de suas atuações.
[12] Devido às suas ações destrutivas em relação à manutenção da ordem pública e à estabilidade institucional, o personagem Ricardo III pode ser entendido como a deformação diabólica da moral do parecer contida na noção de ‘Virtù’ de Maquiavel e, principalmente, é a explicitação extrema do paradoxo moral do Estado, qual seja: para Ricardo ser combatido em seus efeitos destrutivos sobre a estabilidade funcional das instituições, será inevitável a sua traição através do uso da astúcia sorrateira e de um senso apurado de ocasião por parte do Conde de Derby (Lorde Stanley). Esta cisão entre verdade moral (subjetiva da fé) e realidade (ação sócio-política) como condição de possibilidade para a superação dos efeitos diabólicos da guerra civil (o faccionismo político, o fim da deferência pelas formas tradicionais de autoridade e o desenlace tirânico da desordem civil) se inscreve na tradição teológico-política agostiniana, havendo um óbvio paralelo com a moral política senequiana, para a qual as instituições são o resultado da necessidade de se conter a perversidade humana.
[13] Existem duas figuras imorredouras, do rico elenco de personalidades definidoras de diferentes caráteres. São eles: Ricardo III e Falstaff Ricardo III é o paradigma do déspota hediondo, que não recua diante de qualquer baixeza que sirva aos seus propósitos. É uma personagem física e moralmente execrável.
Em contrapartida, Falstaff é o tipo legendário do fanfarrão e mentiroso, extremamente simpático.
[14] O advento político de Richmond representa exatamente a inauguração de novo corpo místico para a Inglaterra que deixa para trás o ethos guerreiro dos facciosismos medievais e vinganças privadas e, por isso, cobra e pune com rigor quem ouse novamente azeitar os mecanismos da guerra civil através de performances de traição, de desonra às autoridades ou de desrespeito às leis civis e à justiça régia.
[15] Questiona-se: Até que ponto a sede pelo poder poderá comandar as ações de um homem? A ambição pela coroa inglesa levou Ricardo III ao ápice da tirania percorrendo fratricídio, assassinatos e usurpação
de poder e a perspicácia em ilustrar Ricardo em plena era elisabetana como um perfeito vilão, corrompido física e moralmente, funcionou para consolidar o teatro como divertimento e agradar, sobretudo, a Rainha Elizabeth I.
[16] A crítica do século XX colocou sobre Shakespeare a culpa de retratar Ricardo III, o rei histórico, como uma figura de vilania, tratando-o como mero propagandista Tudor em suas peças históricas. No entanto, Shakespeare foi muito mais fruto de suas fontes e criatividade que deliberadamente um ideólogo que defende a autoridade de Elizabeth e sua dinastia. Ele usou como fontes, as crônicas de Raphael Holinshed, Thomas More e Edward Hall, direta ou indireta, para escrever suas peças históricas. Tais cronistas sim, em especial Thomas Mores, tinha o interesse político de defender a recente realeza dos Tudors, que em seu tempo ainda poderiam ser considerados usurpadores do trono de Ricardo III.
[17] Enfim, a voz da consciência é silenciada pela dialética que ele estabelece entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, o justo e o injusto e, o reforço do ego, seja no pronome reflexivo, myself, só reforça a tese shakespeariana da responsabilidade pessoal, individual, pelos nossos acertos e erros e, pelas consequências que daí advém. O Bardo é hábil construtor de modelos humanos que decantam em vícios e virtudes de modo igualmente envolvente. Nele, não encontramos meros personagens que sejam estereotipadas, como não o são seres humanos reais. No processo da vida, inúmeras são as chances de que dispomos, todos nós, para exercitar nossas habilidades morais, para demonstrar o quanto somos capazes de agir de modo estouvado, pouco refletido e imediato.
[18] Foi a complexidade da política, histórica e o pensamento voltado para a reflexão humana e verossímil nas peças de Shakespeare garantem que sua contemporaneidade sobre os temas fundadores do pensamento político e história e, principalmente, traduzem a influência permanente na forma de como lidamos com nosso mundo, dos representantes do Estado, seus discursos, sua permissão e as leis que dão a garantia aos poderes de representarem o Estados bem como todos seus constituintes. Tanto Ricardo II como Ricardo III utilizaram amplamente as metáforas políticas, Ricardo II sendo o fraco, incerto e indeciso que representa um Estado fraco e, em conflito consigo; Eduardo IV, irmão de Gloucester, está doente e acamado, como o reino está em paz, mas em uma época de convivência, com uma doença crescendo dentro de si que faz sentir a ruína; já Ricardo III (Gloucester) é vil, deformado e imoral, sendo a personificação da vilania e dos vícios, e somente com a sua derrota e ascensão de Henrique VII ( Richmond) a pez e o Estado poderão prosperar o reino inglês.
[19] A razão do Estado, com todas as metáforas fazem representar algo benigno para a formação do Estado no Antigo Regime, a ideia muito prestigiada por Maquiavel, de que um soberano deverá estar atento às circunstâncias para moldar as suas ações conforme as especificidades de pessoas sociais ou morais, de costumes e de privilégios dos lugares, para edificar eficazmente um Estado que sobrevivesse à sua pessoa físico-etológica. A figuração dramática de Ricardo III expõe a extrapolação diabólica da casuística político-jurídica específica da ação administrativa (potestas) no interior das instituições do Antigo Regime. O ponto fulcral a ser moralmente avaliado é se a maleabilidade proteica (senso de ocasião ou sprezzatura) dos governantes está ou não à serviço do bem comum e da preservação da estabilidade funcional das instituições. Noutras palavras, ele adequa a instituição ao seu humor, em vez de domar o seu humor para se adequar à dignitas da instituição. Ora, a expectativa moral de que o indivíduo deveria adequar o seu substrato físico-etológico às dignidades institucionais é um medido cultural relevante para se perceber o grau de despersonificação das instituições de uma época e lugar e, no final das contas, possibilita justificar a sua perpetuidade sucessiva mesmo quando mal encarnadas ou encarnadas pelo mal.