"O conhecimento é o mais potente dos afetos: somente ele é capaz de induzir o ser humano a modificar sua realidade." Friedrich Nietzsche (1844?1900).
 

Professora Gisele Leite

Diálogos jurídicos & poéticos

Textos


Afogando-se na vigilância líquida.

 

Tem sido uma constante a temática sobre vigilância sendo presente no noticiário diário, refletindo sua crescente relevância nas múltiplas esferas da vida humana. E, silenciosamente, a vigilância vem se expandindo , tornando-se uma peculiaridade basilar da vida moderna.

Enfim, essas sociedades tão fluídas onde o movimento, muitas vezes carecendo de certezas e de vínculos duráveis, que engloba os contemporâneos cidadãos, trabalhadores, consumidores, viajantes, pedestres e, também, até professores que descobrem que seus movimentos foram e são monitorados e acompanhados ciosamente. Eis que vigilância se insinua em um estado líquido.

Há um oceano de tecnologias cada vez mais hábeis ao monitoramento, controle, observação, classificação e checagem e traduzindo um olhar globalizado que não permite chance para ocultação, e a privacidade se extingue num piscar de câmeras inteligentes e que não captam somente o vídeo, mas também o áudio.

Em 2008 ocorreu a conferência bianual da Rede de Estudos sobre Vigilância e, a de Lyon em 2010 foi publicada a Revista Internacional de Sociologia Política, como Liquid surveillance: the contribution of Zygmunt Bauman's work to surveillance studies.

Reitero que a vigilância é dimensão-chave do mundo atual e a maioria de países, pessoas têm muita consciência como esta as afeta. Há câmeras de vídeo em lugares públicos e privados e contam com novos dispositivos, tal como escâneres corporais, aparelhos de verificação biométrica e vem se proliferando desde o desastro de onze de setembro nos EUA.

As origens históricas e ocidentais da vigilância atual nos faz refletir sobre questões éticas, políticas e sobre expansão avassaladora. É verdade que a vigilância se suaviza, particularmente, no âmbito do consumo e as grossas amarras se afrouxe na busca de dados pessoais utilizados para oferecer o produto ou serviço certo para a pessoa certa. Aceita-se esse amplitude enorme da vigilância como sendo a dimensão central da modernidade que conhece uma dinâmica e uma liquidez que tem produzido novas e diferentes maneiras de confirmar a máxima de Marx e Engels, que concluía que "tudo que é sólido se desmancha no ar".

A velocidade é identificável porque todas as formas sociais e se desmancham mais depressa com que se criam novas formas. E, trazem ações, estratégicas e esquemas de vida dos seres humanos em razão da brevidade de sua vida útil. O que confirma a assertiva de Gilles Deleuze que introduziu a expressão "sociedade de controle" onde a vigilância rígida cresce menos que uma árvore e acompanhada de ervas daninhas.

A vigilância capta dados corporais, comportamentais e pessoais caracteriza culturas por sua fragmentação e incerteza, não apenas quanto os significados, símbolos e instituições antes obtidos como certos e, que se dissolvem diante de nossos olhos. Assim, o que antes era seguro e sólido, além de estável se liquefaz.

O panóptico foi o meio moderno fundamental para a manutenção de controle e, projeta não somente sobre os prisioneiros. e torna-se apenas mais um modelo de vigilância e, a arquitetura das tecnologias eletrônicas pelas quais o poder se afirma e se impõe nas mutantes e móveis organizações atuais e, assim, temos muitos firewalls e windows. E, traz a flexibilidade e da diversão que são encontradas no entretenimento e no consumo em geral.

A fusão de formas sociais e a separação entre poder e política constituem duas características básicas da modernidade líquida e que tem repercussão na questão da vigilância e que trazem a conexão mútua entre as novas mídias e os relacionamentos fluídos. E, alguns culpam as novas mídias pela fragmentação social, e as mídias sociais representam um produto da fragmentação social e, não somente o contrário.

Enfim, a conexão final é que em tempos líquidos há alguns desafios profundos principalmente para quem almeja agir de maneira ética, principalmente, no mundo da vigilância. E, duas questões se confrontam, a primeira é a adiaforização, em que os sistemas e processos se divorciam de qualquer consideração de caráter moral. O que corresponde a típica resposta burocrática ao questionamento sobre a correção de avaliações ou mesmo julgamentos oficiais.

A outra questão é que a vigilância torna mais eficiente o processo de fazer coisas a distância, de separar uma pessoa das consequências de sua ação. Desta forma, os controles de fronteiras podem parecer automatizados, desapaixonados, mesmo quando negam a entrada de uma pessoa na busca de asilo e que tenha a origem étnica errônea, temendo por sua própria vida caso seja enviada de volta.

Numa outra perspectiva, a adiaforização em termos de vigilância é forma como dados biométricos, biológicos e até genéticos ou por este desencadeados são sugados para bases de dados a fim de serem processados, analisados, concatenados com outros dados e depois cuspidos de volta como replicação de dados.

E, tais informações podem afetar suas oportunidades e escolhas existenciais. E, assim, procura-se inspirar maior confiança que a própria pessoa e de como prefere contar sua própria história.

Esse tamanho controle social inexoravelmente nos faz lembra o Grande Irmão de George Orwell e nos recorda sobre a ênfase de instrumentos e tiranos, que se animam com a vigilância e que impulsionaram ideologias totalizantes e que se tornam invencíveis. Sendo melhor juntarem-se à esta.

Apesar da metáfora de Orwell ser convincente, e a decência humana represente seu antídoto, há outras metáforas como a de Franz Kafka que fez dos poderes obscuros que o deixam inseguro em relação a qualquer coisa. E, como esse conhecimento o afeta?

Outra metáfora vem do utilitarista e reformar prisional Jeremy Bentham que usou a palavra grega panóptico, que significa o lugar de onde tudo se vê. E, não era mera ficção e traçou uma arquitetura moral, uma receita para refazer o mundo.

A vigilância também foi alvo de interesse de Michel Foucault, que em meados do século XX, viu neste a principal característica da modernidade sólida. E, como treinamento da alma produzira trabalhadores bem-ordenados e muito produtivos.

Em parte da obscuridade dessa nova vigilância deve-se ao seu caráter tecnicamente sofisticado e complexos fluxos de dados dentre das organizações e, entre estas. E, outra parte, se relaciona ao sigilo que cerca a segurança nacional ou mesmo a competição empresarial e comercial.

Ademais, a partir da vigilância há a categorização social com o rastreamento não apenas físico como também intelectual das pessoas.

A nova geração de drones que torna invisível o controle e tudo mais acessível à visão e, continuam imunes. Os drones inauguram uma ética pós-heroica e, modificam a ética militar e amplia ainda a desconexão entre o público e suas guerras. A nova tecnologia de espionagem e vigilância é firmemente dotado de capacidade de agir a distância e, trazer um tsunami de dados.

Discretos e úteis serão como um beija-flor a pousar em sua janela. Enfim, ocorre a morte trágica do anonimato, seja por cortesia da internet, seja por o fim dos direitos de privacidade por vontade própria em face das mídias sociais.

Pois, consentimos em perder a privacidade pelo vantajoso preço das maravilhas oferecidas em troca. E, ainda elevar nossa autonomia pessoal que nos coloca tão próximo à condição de rebanho de ovelhas, eliminando seriamente a capacidade de resistir e protestar.

A vigilância digital representa uma espada afiada cuja eficácia não sabemos como reduzir, e assim, possui dois gumes, e ainda não sabemos manejá-la com segurança. Ao final, Bauman citou que a esperança é qualidade inerentemente humana e que se faz presentes em todas as fases da vida, mas, podemos ter certeza que vai levar muito tempo até encontrarmos um refúgio seguro onde seja possível lançar uma âncora.

Doravante, o que é privado é atualmente feito potencialmente em público e ainda disponível para consumo público e sempre disponível seja difundido pelas mídias sociais, como em sites gratuitos de armazenamentos de fotografias e vídeos e, talvez, o mais relevante, da mudança na visão das pessoas sobre a definição do que seja público e o que deve ser privado.

 

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Vigilância Líquida. Diálogos com David Lyon. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

______________. Liquid Modernity. Cambridge, Polity, 2000. (Tradução brasileira: Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001).

DELEUZE, Gilles. Postscript on the societies of control. October, 59. (Inverno de 1992).

FOUCAULT, Michel. Discipline and Punish. Nova York: Vintage, 1977.

ORWELL, George. 1984. Tradução de Karla Lima. São Paulo: Editora Principis, 2021.

 

 

 

GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 21/09/2022
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