Shakespeare nasceu quase oitenta anos depois da morte de Ricardo III e veio escrever a peça em torno de cento e dez anos depois da coroação de Ricardo III a base da peça é pesquisa histórica com pitadas de imaginação.
Mas, questiona-se se a imaginação do bardo era neutra e alheias aos interesses de seu tempo histórico. Enfim, adentramos ao território auspicioso da relação existente entre história e ficção. E, ainda, a relação entre o personagem de teatro com o personagem da história.
Evidentemente não é ofício do poeta e dramaturgo narrar o aconteceu, e sim o de representar, segundo certa verossimilhança e necessidade. (Aristóteles. Poética. Livro IX, 50, Tradução de Eudoro de Souza. Coleção "Os Pensadores". São Paulo: Editora Abril, 1973, página 451.)
Atentem-se para a escola de latim ao tempo de Shakespeare que sintetizava alguns preciosos conselhos como: Deferto neminem (não acuse ninguém); Multituduni place (agrada a multidão); Pecuniae obediunt omnia (tudo obedece ao dinheiro); Felicitas incitat inimicitias (A felicidade cria inimizades); Somnus mortis imago. (O sono é a imagem da morte); Tempus edax rerum (O tempo é um devorador); Tempus dolorem lenit (O tempo abranda a dor); Animus cujusque sermone rebelatur (A mente de uma pessoa se revela na sua fala). In: PARK HONAN. SHAKESPEARE. Uma vida. Tradução de Sonia Moreira. São Paulo: Cia. das Letras, 2001, p. 75).
A base da peça Ricardo II pode ter sido de Thomas More: The life of Richard III (1513); Nessa obra, Ricardo III é descrito como vilão e fisicamente deformado, corcunda, associando sua condição física ao seu duvidoso caráter.
O ceticismo de Ricardo exclui a piedade; seu naturalismo nos torna feras. Embora mais grosseiro do que Iago e Edmundo, Ricardo III é o precursor de ambos, especialmente, no constrangimento de seu triunfo. (In: BLOOM, Harold. Shakespeare, a invenção do humano. Tradução de José Roberto O'Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p.100).
Ter inventado Ricardo, é ter criado um monstro, um monstro que seria refinado até que Shakespeare inventasse o humano, em cujo processo Iago, para alegria e tristeza de todos, há de desempenhar um papel absolutamente central.
O personagem trágico que é Ricardo III, como supervilão pode ser por vezes cômico. Afinal ele toma consciência de sua própria iniquidade, da dissolução de seu ser, do qual fazia o centro do mundo.
Ricardo III foi personagem histórico que viveu pouco (1452-1485), portanto, apenas trinta e três anos. Foi o último Plantageneta e, contemporâneo da Guerra das Duas Rosas (1450-1485).
Governou em pleno clima de guerra civil. O animal de seu escudo era um javali branco. E, morreu em batalha defendendo seu reinado, após a traição de vários nobres.
A Batalha de Bosworth ocorreu em agosto de 1485 e assim como narra a peça teatral, a derrota e morte de Ricardo III, em batalha. Porém, a invasão comandada por Richmond se deu anteriormente, em outubro de 148. A frase mais célebre é: Meu reino por um cavalo!
Ricardo III foi um autêntico rei maquiavélico, pois fora um executor impiedoso de uma necessidade histórica. Seu grande mérito foi ter exterminado os resíduos do feudalismo para unificar a Inglaterra. Ricardo III, de Shakespeare, foi maquiavelista no sentido lendário, ou seja, um tirano sangrento, um contumaz assassino nutrido por intenções diabólicas. Porém, não foi o bardo quem inventou essa questionável imagem do rei.
A dinastia tinha criado e inculcado na consciência inglesa de que foram os Tudors que, depois do sangrento reinado de Ricardo II, pacificaram o país. E, o bardo, bem como todos seus contemporâneos, aceitava esse Tudor Myth, que foi aliás, muito além de mito pseudo-histórico, sendo uma completa doutrina política.
Com o fito de fortalecer o poder da dinastia, ensinou-se ao povo o horror a toda e qualquer rebelião e guerra civil e, por isso, os revolucionários democráticos nas peças do bardo são sempre malfeitores ou imbecis. (In: Otto Maria Carpeaux. “A política, segundo Shakespeare”. In: Ensaios Reunidos. Vol. I. 1942- 1978. Rio de Janeiro: Universidade Editora/ Topbooks, 1999, pág. 781.)
“Que belo mundo... Mas talvez Shakespeare mostrasse um mundo em que apenas muda os nomes dos reis, mas no qual o Grande Mecanismo é sempre o mesmo...” (Jan Kott. Shakespeare nosso contemporâneo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naif, 2003, pág. 47.)
É mentira que uma representação seja confundida com a realidade, que uma fábula dramática tenha alguma vez realmente acontecido, ou, por um único instante, que se tenha nela jamais acreditado...”
“A verdade é que os espectadores estão sempre de posse de suas faculdades e sabem, do primeiro ao último ato, que o palco é apenas um palco e que os atores são apenas atores...”
O motivo principal e óbvio para Ricardo III de ter assassinado seus sobrinhos de 12 e 9 anos de idade é frequentemente declarado como a salvaguarda de seu trono. Isso parece uma bobagem, já que Ricardo nunca divulgou suas mortes para impedir que elas fossem uma ameaça.
Exibir seus corpos e culpar causas naturais ou algum traidor teria sido um requisito deste plano. Ele também falhou em matar as irmãs dos príncipes – uma das quais se tornou central na oposição a ele. Ele também não removeu os filhos de seu outro irmão, George, que possuía uma alegação potencialmente melhor do que a sua.
Nenhum contemporâneo culpou definitivamente Ricardo, discutindo apenas rumores que surgiram – muitos culparam outros.
Sir Thomas More, arquiteto da reputação de Ricardo, relatou apenas boatos. Apenas Shakespeare fez isso com seu trabalho de ficção – uma falácia que se tornou história. O bardo inventou fatos e também palavras[1]. (LEWIS, 2020).
O fascinante e maléfico Rei Ricardo II já apareceu na terceira parte da peça Henrique VI, na sequência de quatro peças que formam a primeira incursão de Shakespeare na história da Inglaterra. E, no último episódio dessa tetralogia, Ricardo, Duque de Gloucester, encontra-se totalmente revelado como o gênio maligno da prolongada crise da guerra civil da Inglaterra.
Ricardo como demônio ou vício levanta importantes questões de motivação e o significado simbólico e, ainda sugere duas formas diferentes de analisar a peça, uma psicológica e a outra providencial. Ricardo é personagem humano interessado no trono por sua irremediável ambição insaciável.
Há alguma pista em relação ao seu comportamento em sua feiura e misantropia? Alguém pode argumentar que ele compensa sua feiura e incapacidade de amar com sua determinação em dominar. Sentindo-se desprezado, ele insulta todos os humanos e busca prová-los fracos e corruptos para afirmar a si mesmo.
Ele expressa uma propensão humana universal pela crueldade e pela dominação insensata. Entretanto, a proposição que Ricardo é maldoso porque ele nasceu feio logicamente pode ser revertida também: ele nasceu feio porque ele é mal. Em termos providenciais, Ricardo pode ser visto como o resultado de um plano divino no qual o mal ironicamente tem lugar em um esquema mais amplo das coisas que é, finalmente, benigno.
Esse último conceito, muito devedor às noções da Renascença da correspondência platônica entre as aparências exteriores e as qualidades interiores, é embasado na ideia de um imenso conflito no Cosmos entre as forças do bem absoluto e as forças do mal absoluto, a qual cada evento na vida humana tem um significado e uma causa divina. O nascimento de Ricardo é, de acordo com essa teoria, uma manifestação física desse significado divino.
O destino providencial, tendo determinado a necessidade de um gênio do mal nesse ponto da história Inglesa, decreta que Ricardo deve nascer. O dente e a corcunda meramente fornecem evidências do que já está predeterminado. Nas hábeis palavras da córica Rainha Margaret, Ricardo “selou em tua natividade / O escravo da natureza e o filho do inferno”.
Apesar de ele devotar a si mesmo para a ambição egoísta e a ação maléfica, Ricardo serve, finalmente, ao honrado propósito da Providência divina nas questões humanas.
Dentro de menos de cem linhas, Shakespeare nos faz sentir o quão brilhante, cínico e garboso Ricardo de Gloucester é e, procede a dominar os outros personagens e, durante a peça inteira, em um nível extraordinário.
Em 2010, pesquisadores da editora inglesa Arden acreditam ter descoberto nova peça de William Shakespeare, intitulada “Double falsehood”, e foi escrita em parceria com outro dramaturgo John Fletcher. A peça foi descoberta pela primeira vez há três séculos por Lewis Theobald que apresentou a peça como adaptação de outra obra de Shakespeare, mas agora sabe-se que era uma falsificação.
Acreditam os estudiosos que o texto é baseado em um trabalho perdido e que foi fulcrado em Dom Quixote de Cervantes. Acredita-se que Double Falsehood foi escrita pouco depois da publicação da tradução de Don Quixote em 1612 e, que já em 1613 foi apresentada duas vezes. Outras duas peças como “Henrique VIII” e “Dois nobres parentes” foram trabalhadas com Fletcher.
Enfim, Ricardo III é irresistível em performance. Não importando o quanto Ricardo revela a si mesmo como um vilão sem consciência, sua versatilidade como ator e seu tomar de nós como confidentes convida a um tipo de cumplicidade entre ator e plateia que é a substância da excitação dramática.
[1] Como inventor de palavras há mais de trinta palavras (as mais conhecidas, apenas), mas ressaltamos apenas as mais impactantes. Arch-villain (arquivilão), bedazzled(estupefato), eventful(muito ocupado), Cold-blooded (a sangue frio), inaudible (inaudível), manager (dirigente, diretor), swagger (arrogância), uncomfortable (desconfortável), belongings (pertences), assassination (assassinato). Até Voltaire, que o considerava "um bárbaro", traduziu e introduziu suas obras na França. Shakespeare enriqueceu a língua inglesa ao utilizar um vocabulário com cerca de 15 mil palavras e locuções, 3.000 delas de sua autoria.