Todas as civilizações se baseiam em mitos e, o campo simbólico se fundamenta nas experiências das pessoas de uma certa comunidade, num certo tempo e espaço. E, os mitos estão estreitamente ligados à cultura, ao tempo e ao espaço, que pelo menos em suas metáforas permanecem vivas, por uma constante recriação através das artes e da vida. No fundo de toda lenda, encontramos o mythus, isto é, a crença nos deuses tal como vai sendo estabelecida de povo para o povo.
Afinal, dentro da comunidade primitiva, o ritual sagrado se reveste de mistérios não aessíveis às pessoas comuns, e tais mistérios contidos na narrativa verbal só podia ser conhecida pelos participantes do ritua. A divindade protetora era uma mulher que representa a fonte da vida.
Muitos milênios mais tarde, seja numa choupana ou em um castelo medieval, a mulher tece os fios de uma natrrativa tão antiga quanto a arte de fiar. Rodeada por adultos e também por crianças, dela emanam os fluídos mágicos que envolvem a todos, os ouvintes que tão presos por suas palavras, se deixam levar pelo encantamento mítico. Esses narradores e narratários pertencem mesmo a mundos distantes, seja no tempo, no espaço e no significado, mas um fio invisível os une, que é o hábito de ouvir e contar histórias.
Xerazade, por exemplo, a famosa contadora de histórias e lendas das Mil e uma noites é símbolo do papel da mulher no reino encantado. Usando de aguçada habilidade ou suspense da narrativa, ela salvou sua vida e a das demais donzelas do lugar, enquanto o rei, permanececia embevecido, ia-se libertando do ódio que sentia pelas mulheres. A narradora e personagem de histórias encantadas, Xerazade, como a tecelã das noites, simboliza a arte feminina de lidar com a narrativa, simultaneamente, ensina que uma das formas de usar a astúcia na luta contra o poder masculino.
Assim, por esses, e tantos outros motivos, a mulher acabou desempenhando o protagonismo de muitas histórias populares, tal como princesa, camponesa, bruxa ou fada, que representam, por sua vez, a mulher humana e a mulher divina.
Aliás, o papel do narrador também sempre esteve relacionado à figura feminina, pois era a mulher que fiava e tecia tanto o tecido para as roupas
como das narrativas.
Os primeiros estudos científicos a respeito de contos populares mereceu prestígio internacinal foi o de Vladminir Propp que, na década de 1920, na Rússia, dedicou-se à análise estrutural de cem narrativas contidas nas mais conhecida coletânea de contos populares. Tendo chegado, pelo método estruturalista, chegando à supreendente conclusão que todas as histórias tinham a mesma sequência de ações ou funçoes narrativas.
E, ao final, formulou a instigante pergunta: teriam os contos folclóricos uma origem comum, uma única fonte de onde todos teria surgido, apesar dos diferentes temas e diferentes versões. A resposta veio mais tarde quando o linguista dedicou-se à pesquisa de raízes históricas dos contos. E, a fonte comum eram as práticas comuntárias dos povos primitivos.
E, se destacam-se os ritos de iniciação sexual e as representações de vida após a morte. Para o estudioso, esses dois motivos justificam a existência de dois ciclos de contos, dando conta de quase totalidade das histórias hoje chamadadas de contos maravilhosos ou, simplesmente, conto de fadas.
O linguista e folclorista russo, enfim, chegou a conclusão de que a sequência de ações na estrutura natrrativa do conto, por ele identificada, era igual à
sequência das provas por que passava o iniciado ou o morto nos rituais de iniciação ou de passagem para o outro mundo. Esse fato, não explica ainda, oo surgimento do conto como tal, isto é, como uma história a ser narrada para um grande pública.
Foi a coincidência entre a estrutura de narrativas e a sequência de ações nos rituais que levou Propp a concluir que os mais velhos, no papel de iniciadores, contavam aos jovens iniciantes, o que lhes ia acontecendo durante o ritual, referindo-se, porém, ao primeiro ancestral, o fundador da raça e dos costumes. A narração que revelava ao neófito o sentido das práticas a que se submetia, fazia parte do ritual e não podia ser divulgada. Era segredo entre o iniciador e iniciado, uma espécie de amuleto verbal que conferia poderes mágicos a quem o possuía.
Tais narrativas foram se transformando em mitos das sociedades tribuais, conservados e transmitidos como preciosos tesouros, instrumentos sagrados indispensáveis à vida da comunidade. E, o mito hoje se estende à uma realidade social de um povo, refletindo sua economia, política, seus costumes e crenças.
Os mitos eram tão importantes para os membros das comunidades primitivas quanto para as religiões atuais o são para os seus seguidores e adeptos, pois eram a explicação para a vida, seja individual, social, a passada, a presente ou futura.
Dar sentido à vida continua a ser tão necessário ao homem, mesmo apesar de tantos avanços tecnológicos, a alma humana continua a mesma e busca em deuses, em foras mágicas, em espíritos, o poder explicar o que acontece e, assim o sagrado foi se transformando em conto popular.
Considerando o mito como objeto sagrado, a herança direta das prática ritualísticas, como foi que o conto, seu herdeiro, se transformou em produto social independente?
Para Propp, trata-se de uma correspondência entre a base e a superestrutura. O tema e a composição do conto são produtos do regime social de clã, enquanto sua utilização puramente artística foi o resultado evidente do desaparecimento do sistema social que lhe deu origem e sustentação por algum tempo. O início do processo foi a desvinculação entre a história e a sua narração ritualística. Nesse momento, o mito começou a se transformar em conto popular.
E, nesse divórcio entre o sagrado e o profano se deu naturalmente, pelo mero encaminhamento histórico do povo, ou pode ainda ter sido pressionada artificialmente por acontecimentos sociais inesperados, como as migrações ou invasões de outros povos e suas inevitáveis consequências.
De qualquer forma, depois de algum tempo, os mitos vão sendo narrados em ambientes comuns, ou praças públicas, entre pessoas comuns, sem nenhuma identificação com os rituais sagrados, e vão se tornando simples histórias de entretenimento perdendo seu original significado. E, ao perder tais funções religiosas, o conto não se tornou inferior ao mito. Ao revés, pois emancipou-se e encontrou o espaço da livre criação
artística, passando a receber relevantes influências da sociedade, rumando a caminho de sua plena realização como novo produto social.
Propp, enfim, confirmou sua tese sobre a fonte única dos contos populares, especialmente, os contos de magia, que foram tão estudados em seu trabalho. E, ressaltou que no entanto que, para comprovar cabalmente sua tese, seria necessário um estudo comparativo entre os ritos e mitos de um povo e seus contos primitivos.
Só assim, se poderia eliminar a possibilidade de existência de uma antiga tradição artística. Alguns etnólogos que estudam tribos indígenas, sendo sociedades sem classes, e nas comunidades primitivas não existe o conto como arte narrativa, apenas as lendas mitológicas, relacinados aos ritos sagrados.
O conto popular é, em verade, a profanação do mito que deixa de ser sagrado, religioso para se tornar profano e artístico. E, nesse exato momento nasce o conto.