Sócrates (469 a.C./399 a.C.) deu novo rumo à compreensão da ideia de felicidade, postulando que ela não se relacionava apenas à satisfação dos desejos e necessidades do corpo, pois, para ele, o homem não era só o corpo, mas, principalmente, a alma.
Assim, a felicidade era o bem da alma que só podia ser atingido por meio de uma conduta virtuosa e justa. Para Sócrates, sofrer uma injustiça era melhor do que praticá-la e, por isso, certo de estar sendo justo, não se intimidou nem diante da condenação à morte por um tribunal ateniense. Cercado pelos discípulos, bebeu a taça de veneno que lhe foi imposta e parecia feliz a todos os que o assistiram em seus últimos momentos.
Entre os discípulos de Sócrates, Antístenes (445 a.C./365 a.C.) acrescentou um toque pessoal à ideia de felicidade de seu mestre, considerando que o homem feliz é o homem autossuficiente. A ideia de autossuficiência (que, em grego, se diz “autarquia”,) continuará diretamente vinculada à de felicidade nos setecentos anos seguintes....
Uma função da alma
Mas o maior discípulo de Sócrates, que efetivamente levou a especulação filosófica adiante de onde a deixara seu mestre, foi Platão (427 a.C./347 a.C.), o qual considerava que todas as coisas têm sua função. Assim, como a função do olho é ver e a do ouvido, ouvir, a função da alma é ser virtuosa e justa, de modo que, exercendo a virtude e a justiça, ela obtem a felicidade....
É importante deixar claro que noções como virtude e justiça integram uma vertente do pensamento filosófico chamada Ética, que se dedica à investigação dos costumes, visando a identificar os bons e os maus.
Para Platão, a ética não estava limitada aos negócios privados, devendo ser posta em prática também nos negócios públicos. Desse modo, o filósofo entendia que a função do Estado era tornar os homens bons e felizes.
A ligação entre ética e política estará ainda mais definida na obra do mais importante discípulo de Platão, Aristóteles (384 a.C./322 a.C.), o qual dedicou todo um livro à questão da felicidade: a “Ética a Nicômaco” (que é o nome de seu filho, para quem o livro foi escrito).
Amigo de Platão, mas, em suas próprias palavras, “mais amigo da verdade”, Aristóteles criticou o idealismo do mestre, reconhecendo a necessidade de elementos básicos, como a boa saúde, a liberdade (em vez da escravidão) e uma boa situação socioeconômica para alguém ser feliz.
Felicidade intelectual.
Por outro lado, a partir de uma série de raciocínios que têm como base o fato de o homem ser um animal racional, Aristóteles conclui que a maior virtude de nossa “alma racional” é o exercício do pensamento, pelo que, segundo ele, a felicidade chega a se identificar com a atividade pensante do filósofo, a qual, inclusive, aproxima o ser humano da divindade
Sem perder de vista a aplicação prática de suas ideias, Aristóteles considera a política como uma extensão da ética e, nesse sentido, para ele também é uma função do Estado criar condições para o cidadão ser feliz. O Estado que o filósofo tinha em mente, porém, era a “polis” grega, que, naquele momento, estava deixando de existir, ...
Depois de Alexandre, no mundo grego ou helênico, desenvolveram-se três escolas filosóficas que vão se estender até o fim do Império romano, as chamadas filosofias helenísticas. Todas elas, por caminhos diferentes, chegam à conclusão de que, para ser feliz, o homem deve ser não só autossuficiente, mas desenvolver uma atitude de indiferença, de impassibilidade, em relação a tudo ao seu redor.
A felicidade, para eles, era a “apatia”, palavra que, naquela época, não tinha o sentido patológico que tem hoje. Prazer e salvação da alma Entre os filósofos do mundo helênico, pode-se citar Epicuro (341 a.C./271 a.C.), para deixar claro que essa ideia de “apatia” não significa abdicar ao prazer....
O prazer era essencial à felicidade para Epicuro, cuja filosofia também é conhecida pelo nome de hedonismo (em grego “hedone” quer dizer “prazer”). Mas ele deixa claro, numa carta a um discípulo, que não se refere ao prazer “dos dissolutos e dos crápulas” e sim ao da impassibilidade que liberta de desejos e necessidades.
Com o fim do mundo helênico e o advento da Idade Média, a felicidade desapareceu do horizonte da filosofia. Estando relacionada à vida do homem neste mundo, ela não interessou aos filósofos cristãos como Agostinho de Hipona (354 d.C./430 d.C.), Anselmo de Canterbury (1033/1109) ou Tomás de Aquino (1225/1274), todos santos da Igreja católica.
Para a filosofia cristã, mais do que a felicidade, o que conta é a salvação da alma. Os filósofos voltaram a se debruçar sobre o tema na Idade Moderna. John Locke (1632/1704) e Leibniz (1646/1716), na virada dos séculos 17 e 18, identificaram a felicidade com o prazer, um “prazer duradouro”.
Algumas décadas depois, o filósofo iluminista Immanuel Kant (1724/1804), na obra “Crítica da razão prática” definiu a felicidade como “a condição do ser racional no mundo, para quem, ao longo da vida, tudo acontece de acordo com o seu desejo e vontade” ....
Direito do homem
No entanto, para Kant, como a felicidade se coloca no âmbito do prazer e do desejo, ela nada tem a ver com a Ética e, portanto, não é um tema que interesse à investigação filosófica. Sua argumentação foi tão convincente que, a partir dele, a felicidade desapareceu da obra das escolas filosóficas que o sucederam.
Mesmo assim, não se pode deixar de mencionar que, no mundo de língua inglesa, na mesma época de Kant, a ideia de felicidade ganhou lugar de destaque no pensamento político e buscá-la passou a ser considerada um “direito do homem”, como está consignado na Constituição dos Estados Unidos da América, que data de 1787 e foi redigida sob a influência do Iluminismo... -
Egocentrismo e infelicidade
É também no âmbito da filosofia anglo-saxônica, no século 20, que se encontra uma nova reflexão sobre nosso assunto. O inglês Bertrand Russell (1872/1970) dedicou a ele a obra “A conquista da felicidade”, usando o método da investigação lógica para concluir que é necessário alimentar uma multiplicidade de interesses e de relações com as coisas e com os outros homens para ser feliz. Para ele, em síntese, a felicidade é a eliminação do egocentrismo....
Mais recentemente, em 1989, o filósofo espanhol Julián Marías também dedicou ao tema um livro notável, “A felicidade humana”, em que estuda a história dessa ideia, da Antiguidade aos nossos dias, ressaltando que a ausência da reflexão filosófica sobre a felicidade no mundo contemporâneo talvez seja um sintoma de como esse mesmo mundo anda muito infeliz....
Referências
ABBAGNANO, Nicola - "Dicionário de Filosofia", Martins Fontes, São Paulo, 2000.
BERTI, Enrico - "No princípio era a maravilha", Loyola, São Paulo, 2010.
MARÍAS, Julián - "A felicidade humana", Duas Cidades, São Paulo, 1989.