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Conforme já dizia Fernando Pessoa[1], in litteris: "O mito é o nada que é tudo" (...) a mitologia sempre esteve presente nos mais remotos tempos da história do pensamento humano.
A questão sobre a formação dos mitos e sua consequente influência na experiência humana e existencial tem tido diferentes apreensões teóricas, o que confirma a afirmação poética de Fernando Pessoa de que o mito é o nada que é o tudo.
Há nos mitos uma miríade de valorações simbólicas que escorre ao entrar na realidade, e só se insere realmente no mundo terreno à medida que se dissemina na coletividade, replicando imagens psíquicas que se tornam culturais.
O mito parece indicar para a integridade de algo que não mais existe, ou simplesmente, se perdeu. O mito parece devolver o homem a uma ordem perdida, promovendo sua reintegração cósmica para além do caos, introjetando-o no âmago do universo.
A simbologia dos mitos é um projeto poético que na busca de identidade se encontra com várias raízes, inclusive a mitologia judaica.
Aliás, Pessoa apesar de não assumir abertamente a sua condição de judeu, segundo Anita Novinsky, diversos membros da família de Fernando Pessoa foram presos e penitenciados pela Santa Inquisição, e foram todos acusados de judaísmo pois guardavam os sábados, não comiam carne de porco e nem acreditavam nos dogmas da Igreja Católica.
Segundo Novinsky, o poeta tomou dos marranos[2] (judeus obrigados a seguir o catolicismo romano, mas que não se convertiam realmente aos seus dogmas) inúmeros aspectos de sua vivência e psicologia, a saber: os heterônimos, a ânsia de fugir, a angústia do jogo, a dualidade do "ser", a busca de uma identidade. Pessoa como uma alma errante, peregrinou por diversas crenças tais como: Rosa Cruz, Maçonaria, Templários, Cabalistas, Messianismo Judaico e tantas outras.
Segundo Aristóteles, há basicamente três funções para o mito, a saber: de ser uma forma atenuada de intelectualidade; uma forma independente de pensamento ou de vida e, como um instrumento de controle social. É possível perceber na história de Israel que um único homem comandava um vasto povo, cantando seus mitos, divulgando-os de geração a geração.
Assim, enxergamos o mito como narrativa que atende a uma coletividade, funcionando como uma resposta a uma pergunta coletiva, reveladora da necessidade de preenchimento de um espaço vazio, de atendimento de expectativas numa construção ativa de esperança social.
A noção e força dos mitos consideradas poderosos podem ser justificadas pela forma atuante em certa coletividade onde todos respiram, em tese, a mesma atmosfera. Ainda que seja falso, o mito tem potencial de provocar comportamentos e reações sociais e, portanto, colaborar para o aperfeiçoamento da humanidade.
Aliás, Fernando Pessoa recria um Portugal[3] especialmente mítico porque o real simplesmente não o satisfaz, nem pela mentalidade acanhada e nem pelas instituições em crise. O seu Portugal não é propriamente o das conquistas, nem possui o status quo de outrora, mas o das Descobertas, sendo evolutivo, universalista, difusor de culturas e ultrapassando pelo espírito as suas fronteiras materiais.
Em sua obra “Mensagem”, Pessoa erige uma espécie de bíblia do nacionalismo poético português, trazendo um misticismo hermético que se popularizou. Sabedor da importância dos mitos em uma sociedade, ele pontificava: "O mito é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus. É um mito brilhante e mudo. O corpo morto de Deus, Vivo e desnudo".
O gênero épico de Pessoa engloba o mito e a história do povo lusitano e, mistura lenda e realidade, com uma narrativa que usa linguagem verbal, relacionando-a com certo passado. E, então partilha das aventuras da composição de imagens sob égide da imaginação.
Aliás, em verdade, mito e história não são opostos, nem contrários e, suas fronteiras, se existirem, não se separam tal como cogitam os cientistas do século XIX. Assim, Pessoa no início do século XX já singrava por outros mares, e tinha consciência nítida de que o mito e a história se complementam.
Pessoa revela o seu desencanto com o Portugal de seu tempo, afinal, Portugal é nevoeiro que é símbolo do desconhecido que impulsiona a busca pelo conhecimento.
Eu, mui modestamente, sinto o mesmo, Brasil é nevoeiro em penumbra, não sabemos o que acontecerá. Mas, há a ladeira abaixo. Quem se salvará? O que será de nosso futuro sem esperanças? A única coisa que vos peço: votem com consciência. Não se vendam, não tripudiem sobre o destino de nossa pobre pátria.ReferênciasANDRADE. Letícia Pereira de. Mensagem: Um "Mais Além" de Fernando Pessoa. Disponível em: http://www.revistas.uneb.br/index.php/tabuleirodeletras/article/download/966/756 Acesso em 26.07.2018.ARISTÓTELES. A poética clássica. Tradução Jaime Bruna. 3.ed. São Paulo: Cultrix, 1980.ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Tradução Manuela Torres. Lisboa: Edições 70, 1989.NOVINSKY, Anita. Fernando Pessoa: o poeta Marrano. Revista Portuguesa de História. ISSN 0870-4147, Volume 33, Nº 1, 1999, págs. 699-711.PESSOA, Fernando. Mensagem. Edição comentada por Jane Tutikian. Porto Alegre: L&PM, 2006.________________. Pessoa inédito. Coordenação e Prefácio de Teresa Rita Lopes. Lisboa: Livros Horizonte, 1993.
[1] Fernando Pessoa foi um dos poetas mais relevantes da literatura portuguesa. Também escrevia em inglês, já que morou um longo tempo na África do Sul. Ainda em vida, teve mais obras publicadas em inglês do que em português.
Como autor foi reconhecido pela forma que construía seus heterônimos, criando personalidades e estilos próprios. Alberto Caeiro Ricardo Reis e Álvaro Campos são heterônimos mais conhecidos, tendo biografias específicas. Mas, Caeiro é o mestre, sendo admirado por todos os outros.
[2] Marrano é um adjetivo masculino surgido na Espanha e em Portugal, se referindo a uma designação injuriosa, que se ofertava outrora aos mouros e espanhóis aos judeus batizados, suspeitos de se conservarem fiéis ao judaísmo. Ou ainda, excomungado, imundo.
No Rio Grande do Sul, se refere ao gado de má qualidade. A origem etimológica de marrano para advir do árabe mu/arram, significando coisa proibida. Marrão, com sinonímia de sujo.
[3] Há três espécies de Portugal, ou três espécies de português: Um começou com a nacionalidade; é o português típico, que forma o fundo da nação e o da sua expansão numérica, trabalhando obscura e modestamente em Portugal e por toda parte do mundo.
Outro português é o que não é. Com a invasão mental promovida inicialmente por Marquês de Pombal. Agravou-se com o Constitucionalismo e, tornou-se completa com a República. Tal português é o que governa o país e está totalmente divorciado do país que governa.
É, por voluntas, parisiense moderno. Há um terceiro português, que começou a existir quando Portugal da era dos Dinis, quando começou como nação, e começou a esboçar-se como Império. Esse português fez as Descobertas, criou a civilização transoceânica moderna e, depois, foi-se embora. (In: PESSOA, Fernando. Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional. Disponível em: http://www.citador.pt/textos/as-tres-especies-de-portugueses-fernando-pessoa Acesso em 26.07.2018).
GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 01/08/2020
Alterado em 03/08/2020
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