Recordação bviw
Eu mexia a sopa de letrinhas, enxergava o bailado esquisito das letras e minha imaginação flutuava tentando formar palavras. Monossílabos. Semânticas mentais do meio-dia. Uma palavra se formou facilmente: pai. Minha figura paterna era austera, nunca vi meu pai sorrir e nem fazer um reles gracejo. Era uma figura grave e sisuda. As vezes, uma de suas sobrancelhas erguia-se como se estivesse a decifrar uma esfinge, ou prestes a ser devorado por ela... Era engraçado. Não me permitia a rir dele. Afinal, por temor e respeito isso não era possível. Continua a burilar a sopa que continha ervilhas, cenoura, batata e as massas em formato de letras. A desafiar a memória, a brincar com as palavras como se fossem presságios. Tanto coisa muda na vida da gente. Hoje, no isolamento social, aprendemos a valorar pequenas coisas, pequenos gestos e, até o silêncio... O olhar misericordioso e, por vezes, a palavra abafada por detrás das máscaras. Meu pai morreu muito cedo nem tinha quarenta anos... e, ainda me recordo de seus olhos apagadiços era de um azul acinzentado... Quando faleceu havia uma tradição de realizar longos velórios, ele prostrado no caixão rodeado de flores brancas e o cravo vermelho na lapela foram imagens impactantes para a jovem que eu era... Recordo que não conseguia chorar... havia uma tristeza tão profunda que respirar era denso... que existir era tenso, mas sobreviver era indispensável. Precisava apoiar minha mãe e meus irmãos.
GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 28/07/2020
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