Querido amigo
Existem amores possíveis. Quase óbvios. Quem não pode amar uma pessoa como você?
Tão mortal e defeituosa como qualquer outra pessoa, mas que na mandala genética reúne defeitos que ora são qualidades. E, qualidades que são defeitos. Você é inteligente e temperamental. Não perdoa certas aleivosias. Não tem tanta tolerância assim. Mas, verbaliza.
É sincero em seu pudor, ódio ou desprezo. E, aí, tais fenômenos já não são tão ofensivos.
Existem amores possíveis. Como aquele pelos primeiros raios do sol, ou pelos últimos. Ou pela bela lua que nua passeia no céu com vestido de cauda bordado de estrelas.
Quem poderia ser tão parceiro e amigo e entender minhas manias e esquisitices. De quem escreve, reescreve e transcreve e depois
fica a pensar na poesia de Drummond em plena crise pandêmica e política?
No silêncio enigmático, onde as palavras dormem ou estão moribundas. Fica o signo a bailar o sapateado lírico, rimando com a chuva, flertando com o orvalho ou riscando de giz um céu já foi azul.
Olhos azuis, flores azuis e vestido azul. E, eu ficando cianótica de inveja de tanto azul e nem uma palheta para usar novas cores.
Existem amores possíveis. Enigmaticamente estratégicos. Eis que você envelhece. Eis que a perna encurta. Os cabelos rebeldes teimam em transgredir a aparência e arranhar o espelho da vaidade.
Mas, para quê vaidade? Se somos tão finitos e transitórios. Para que enamorar-se de Narciso, se ele é apenas um suicida. Aquele que desconhece-se.
E, por isso mesmo, ao contemplar-se, apaixona-se pela própria figura refletida à beira de um rio. Mas, o que não se sabe é da profundidade do rio.
O que não se sabe, a imensa profundidade que há nas aparências. Nos trejeitos das mãos, do formato das pétalas e a sensível afeição do outono pela primavera.
Acredito piamente que ser meu amigo é tarefa hercúlea. Pois sou tão exaustivamente densa. Pesada com meus fardos e verbos. Com minha pantomima filosófica. Procurando preencher reticências e chutar baldes das convenções sociais.
E, como viver entre a iniquidade ambundante e a alienação premente?Que rasgo de oxigênio ainda existe para se respirar e sobreviver?
Ou teremos sempre que ficar prestes a morrer, para entender-se com a realidade das coisas. Hoje, de manhã, minha pressão arterial disparou.
Corri até a clínica para a emergência. E vi tanta gente doente. E, vi tanta gente agoniada. Parecia o purgatório. Fiquei tensa e preocupada.
Se tivesse que morrer. Gostaria de morrer, como alguém que canta um mantra... Mas, parece-me que morrer é meio hard... meio punk... É literal e visceral ao mesmo tempo...
Confesso que eu não sinto aquele medo de morrer. Só de não ter dito coisas e escrito tantas outras. Como o fato de você ser meu amor possível e ter me deixado feliz por ter amadurecido o bastante para superar a solidão e, pular no trampolim dos afetos.
É tão bom a gente se preocupar com alguém que nos parece humano e ao mesmo tempo é nosso herói ou mágico preferido. Pois torna conversas interessantes, torna as piadas hilárias e, tudo na vida, a pandemia, o pandemônio fica parecendo alegoria de Dante e, não uma cruel realidade lá fora, onde já está faltando cova para os defuntos.
Ah, meu deus, a limpeza que esse vírus vai fazer deverá ter consequências. Esperamos que alguma aprendizagem saia disso. Sob pena de sermos dizimados apenas e porque somos inúteis ao planeta.
Despeço-me de você, na certeza que você lerá, saberá que é de você que falo. E, secretamente, sorrirá. Como um cúmplice de um delito que guarda as ferramentas limpas, para um próximo encontro.
Abraços virtuais e mascarados.
A sua deusa.