"O conhecimento é o mais potente dos afetos: somente ele é capaz de induzir o ser humano a modificar sua realidade." Friedrich Nietzsche (1844?1900).
 

Professora Gisele Leite

Diálogos jurídicos & poéticos

Textos


O eterno homem cordial
 
Resumo:
O modesto artigo explica a origem do homem cordial, seu significado e, a gradativa libertação de tamanha cordialidade. O que reforça a existência da fraqueza institucional e do pouco respeito às leis, ao Estado e à ordem jurídica vigente.
 
Palavras-chaves: Homem cordial. Cordialidade. História do Brasil. Sociologia.
Filosofia. Formação do Brasil.

Autoras:
Gisele Leite
Denise Heuseler
 
No fatídico capítulo quinto (quinto dos infernos[1], deve ser a referência) intitulado "O homem cordial", na obra chamada “Raízes do Brasil” que integrava a coleção Documentos Brasileiros, de autoria do notável Sérgio Buarque de Holanda, que parafraseava a expressão de Ribeiro Couto[2] e foi endereçada ao escritor mexicano Alfonso Reyes.
 
O homem cordial se caracterizava como sendo um dos efeitos decisivos da supremacia inconteste e absorvente do ninho familiar, pois as relações que se travam na vida doméstica, sempre forneceram o modelo vigente e obrigatório para qualquer composição social entre os brasileiros.
 
A expressão “cordial” não indica apenas bons modos e gentileza. Cordial vem do latim cordis, cujo significado remoto é cordas, sendo relativo ao coração. A explicação etimológica serve para ressaltar sua dubiedade e simultaneamente, àquilo caracteriza, segundo a sua tese, o temperamento do homem brasileiro. Pois diferentemente dos povos asiáticos, em geral, entre os quais predomina a polidez, como sendo parte integrante do procedimento civilizacional, no Brasil tal polidez permanece somente na superfície.
 
In litteris, Buarque esclarece: “Ela pode iludir na aparência – e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no 'homem cordial': é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. Além disso, a polidez é, de algum modo, organização da defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica, do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar inatas suas sensibilidades e suas emoções.”
 
Na verdade, a cordialidade tinha o papel de sublinhar com destaque a rígida separação, em nossa sociedade, entre o público e o privado[3].
 
O historiador não deixava dúvidas sobre sua pejorativa consequência. Pois armado da máscara de cordialidade, o indivíduo[4] consegue manter sua supremacia ante o social. Fundada nas relações familiares de que derivava, a cordialidade se estendia até a área do público, cuja lógica, que antes deveria ser o interesse público, era com isso sufocada.
 
A distinção se tornará mais efetiva a partir da terceira edição de Raízes do Brasil, quando ao texto sensivelmente modificado[5] corresponderá ao esclarecimento decisivo sobre a questão da cordialidade.
 
Importante esse esclarecimento desde que Cassiano Ricardo[6] iniciara seu desentendimento, tornando-a como sinônimo da nossa bondade original. Contrapôs, Sérgio Buarque que reiterou em nota a origem a Ribeiro Couto, acrescentava ainda a passagem de “O Conceito do Político”, que Carl Schmitt[7] publicara em 1933. Diferencia-se a inimizade, pertencente à ordem do privado, assim como a hostilidade, pertinente a ordem do público[8]
 
Cassiano Ricardo Leite (1894-1974) foi jornalista, poeta e ensaísta brasileiro. Foi representante do modernismo de tendências nacionalistas e esteve ligado aos grupos Verde-Amarelo e da Anta, foi o fundador do grupo da Bandeira, reação de cunho social-democrata a estes grupos. Tendo, em sua obra se transformado até o final, evoluindo formalmente com as novas tendências dos anos de 1950 e tendo participação no movimento da poesia concreta.
 
E, no texto revisto espancando todas as dúvidas, Sérgio Buarque frisou que nossas raízes familiares comprometiam a formação consequente de uma ordem pública entre nós, pois seus agentes, no exercício de seus cargos, agem como se a população fosse parte do círculo de seus protegidos.
 
O termo “cordial” em vez de restringir-se a estrita acepção inicial, a oposição entre público e privado, a hostilidade versus a inimizade como derivadas da importância primordial da instituição familiar, passa então, a ter a oposição entre público e privado, significava que nossa política, sob o manto de afabilidade, acobertava interesses privados. E, mesmo contemporaneamente, vigora essa acepção.
 
Apesar da delação, da tortura, do desaparecimento dos adversários, dos assassinatos diários em blitz policial, e ainda, todas as atrocidades praticadas habitualmente durante o Estado Novo[9], como se poderia imaginar a indiferença e a progressiva hostilidade da população pelo clima intenso de terror e de medo em face da velha cordialidade do homem brasileiro.
 
O privado doravante se identifica mais com instituições industriais, ainda que de origem familiar. Seria uma espécie de cordialidade industrial. Oriunda de instituições que, por sua exímia capacidade de difusão pública, possuem a possibilidade de forjar uma opinião pública.
 
O homem cordial precisa expandir seu ser na vida social, precisa estender-se até a coletividade, que não suporta o peso denso da individualidade, precisa viver nos outros. Ter empatia. Tal necessidade aponta para a necessidade de apropriação efetiva do outro, principalmente através de nossas cotidianas expressões linguísticas.
 
Aliás, destacou Sérgio Buarque o uso do sufixo típico do diminutivo, o famoso - inho -, colocado em vocábulos como senhorzinho, sinhazinha que revela a grande vontade de se aproximar do que é distante do nível do afeto.
 
O homem cordial[10], é, portanto, um artifício, uma armadilha psicológica e comportamental inserida em nossa formação enquanto povo. É por essa razão, que ressaltou o historiador a contribuição brasileira para a civilização será o homem cordial.
 
A identidade brasileira ainda um enigma sendo pensada a partir de dualidades. Gerando-se, naturalmente, o trabalhador e o aventureiro, por exemplo, uma dicotomia salientada por Leenhardt[11], a qual o aventureiro ibérico que não sabia onde aportava. Antônio Cândido em sua introdução clássica aponta que o historiador trabalha com dualidades, com pares, como trabalho e aventura; método e capricho. rural e urbano; burocracia e caudilhismo, norma impessoal e impulso afetivo.
 
Nas décadas de 1920 e 1930 foram de intensa atividade cultural e intelectual no Brasil e, segundo muitos historiadores, foi quando o Brasil fora redescoberto, ou seja, surgiram novas formas de interpretar a nossa identidade e singularidade ante às outras civilizações foram desenvolvidas, tanto na seara da literatura, da história e das alcunhadas "ciências sociais".
 
A Semana de Arte Moderna de 1922 e o Movimento Regionalista de Pernambuco foi um dos principais marcos do esforço interpretativo sobre o que vem a ser Brasil. E, nesse momento, a obra "Raízes do Brasil", onde foi desenvolvido o fundamental conceito de “homem cordial”. A obra fora publicada em 1936 pela Editora José Olympio, sendo obra que visou investigar o que baseia a história do Brasil, de seu povo e de suas instituições mais peculiares, tais como a família patriarcal, entre outros aspectos tão marcantes da sociedade brasileira.
 
Tais temas também interessaram outro intelectual relevante pernambucano Gilberto Freyre, cujas obras “Casa Grande e Senzala” (1933) e “Sobrados e Mucambos[12]” (1936) são cruciais para se refletir e analisar a formação do Brasil.
 
Em verdade a composição da obra de Sérgio Buarque de Holanda nasceram em 1930, na época que teria sido enviado como correspondente brasileiros dos Diários Associados para Polônia, Rússia e Alemanha.
 
Em tais dualidades fica nítida a distinção efetuada por Max Weber entre os diferentes tipos de legitimação, com o trabalho, o método, o urbano, a burocracia e a norma impessoal, situando-se no campo dominado pelo chamado domínio em virtude da legalidade, em virtude da fé na validade do estatuto legal e da competência funcional, baseada em regras racionalmente criadas e com os polos opostos de cada parte  situando-se no terreno dos tipos de autoridade tradicional e carismática.
 
São esses tipos de autoridade segundo Sérgio Buarque, apesar de não mencionar a tipologia weberiana que têm predominado no Brasil e, é a utilização dessa dualidade e a constatação desse predomínio que irão nortear o pensamento do historiador.
 
A maioria das histórias nacionais pode ser dito que são cruéis e a de nosso país naturalmente não é uma exceção. E, pretender que o tenha sido - a do Brasil, em menor ou maior grau do que a dos outros povos já é matéria dependente de critérios de mensuração e naturalmente de termos de comparação, que até o momento ainda não se descobriram.
 
O homem cordial é definido como protótipo do não-cidadão[13], pelo fato de o seu perfil não se adequar à esfera pública, simbolizando, ainda, uma sociedade que prefere obedecer a assumir responsabilidades. E, não mais se adequa à modernidade, devido a uma característica ressaltada por Sérgio Buarque, que menciona o horror às distâncias que parece constituir, ao mesmo até agora, o traço mais específico do caráter brasileiro.
 
Enfim, o romantismo ganhou no Brasil um personalismo inato. E, se adaptou tão bem ao nosso gênio nacional, ao ponto que se pode afirmar que nunca a nossa poesia pareceu tão legitimamente nossa, como sob a sua influência. E, deve-se ao fato de persistir, aqui como em Portugal, o velho prestígio das formas simples e espontâneas, dos sentimentos pessoais, a despeito das contorções e disciplinas seculares do cultismo e do classicismo.
 
Enfim, a continuidade que demos à tradição ibérica gera um tempo, que ao invés de se renovar, conduz a reafirmação de nossos traços de significado, e tal continuidade se revela na conservação do passado para não aniquilar nosso perfil identitário.
 
A origem do homem cordial cunhou aspectos peculiares à história brasileira. Aliás, Sérgio Buarque, definiu como o caráter epidérmico das rebeliões que antecederam e mesmo as que sucederam a Independência, o qual possui, na perspectiva, as origens de nossas políticas identitárias. Não é, em resumo, o mesmo paternalismo, de raízes coloniais[14] e barrocas que forma, ainda hoje, o núcleo de quase toda atividade política no Brasil.
 
A repulsa firme e reiterada de todas as modalidades de racionalização, e, por conseguinte, da despersonalização, tem sido, até hoje, um dos traços constantes dos povos de raízes ibéricas. E, sublinha, ainda, alguns dos traços básicos do ethos econômico de tais populações.
 
Sérgio Buarque tenta identificar as raízes do Brasil, mas é uma tentativa que se configura como contraditória, na medida em que o brasileiro é caracterizado como portador de uma identidade sem raízes; somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra.
 
 E, tal desterro se relaciona ao que ele definiu como a predominância do caráter de exploração comercial da colonização portuguesa, mais preocupada em explorar a terra, ainda que de forma predatória, do que em estabelecer-se nesta de forma consistente.
 
Foi a cordialidade lusitana presente na raiz da tradição ibérica na qual fomos criados, do iberismo de fundamental relevância que gerou a plasticidade da colonização portuguesa, tão referida por Gilberto Freyre.
 
Permitiu ao português misturar-se sem maiores restrições ao negro e ao índio, criando uma cultura assim ambivalente, originalmente branca e europeia, mas vinculada a tradições africanas e indígenas[15]. E, conclui-se que este dilema está presente em nossos impasses nacionalistas, continuam em propostas literárias, políticas ou sociais.
 
Diferentemente do que ocorreu na colonização inglesa, tal plasticidade que tanto caracterizou o processo colonial português não ocorreu.
 
O espírito empreendedor e empresarial, a capacidade de trabalho e a coesão social são as características que faltam a esse processo e veio a definir a colonização britânica como de ocupação.  o colonizador de origem inglesa era movido pelo "afã de construir", enquanto o português deixou-se atrair "pela esperança de achar em suas conquistas um paraíso feito de riqueza mundana e beatitude celeste, que a eles se ofereceriam sem reclamar labor muito maior, mas sim como um dom gratuito".
 
Trabalhando a dicotomia entre as diferentes colonizações a partir da dualidade proposta por Buarque, Lippi de Oliveira ressalta as diferentes representações da natureza que fundamentam cada processo:
 
"A representação puritana da natureza contrasta com o que foi apresentado... Para os puritanos, não cabia nem conquistar nem descobrir  a natureza, mas o conhecimento e a domesticação, tarefas que requeriam muito trabalho e muita "ação de graça" (matéria-prima do rito nacional  mais importante nos Estados Unidos: o dia de Ação de Graças)."
 
A plasticidade lusitana é bem exemplificada por Sérgio Buarque a partir do aprendizado de técnicas de caminhada e de sinalização mato adentro. E, o português adaptou-se às técnicas indígenas e as utiliza com grande sucesso e sem menor prurido. E, ainda concluiu:
 
“Estavam certamente nessa incorporação necessária de numerosos traços da vida do gentio, enquanto não fosse possível uma comunidade civil e bem composta, segundo os moldes europeus. E, nesse sentido ainda se aponta outra interpretação para plasticidade portuguesa, na perspectiva de Sérgio Buarque.”
 
A plasticidade é uma espécie de virtude dos fracos, espelhando a predisposição para o ajuste e o compromisso, em vez da sobranceira imposição unilateral da vontade também típica dos calvinistas.
 
É essa circunstância que faz Sério Buarque afirmar que, neste terreno particular, a fraqueza lusitana enfim foi sua força.
 
Antônio Cândido definiu a obra de Buarque como um momento alto do pensamento brasileiro, na medida que rompia com a solução liberal, que atribuía às elites a tarefa de conduzir a nação e tutelar o povo e, passava a atribuir a esse mesmo povo, a capacidade de iniciativa e criatividade política.
 
Aliás, ressaltou Cândido que a obra foi editada pouco depois do esmagamento da Aliança Nacional Libertadora e, foi voltada claramente contra os autoritarismos, tanto os herdados da velha estrutura oligárquica, quanto os surgidos na conjuntura contemporânea, como o integralismo.
 
Aliás, o historiador identifica que o nacionalismo verde-amarelista, que desaguaria, afinal, no integralismo, caminha, de fato, nesse sentido: ele denuncia, um processo de remodelação conservadora e uma tentativa de manutenção de padrões culturais[16] de onde nascem os bacharéis e os caudilhos. E, tais padrões constituídos, em resumo, a partir da tradição ibérica, um conservadorismo a que o historiador foi honroso crítico e oponente.
 
O Estado[17] concebido por Buarque é estático no contexto de uma identidade, a do homem cordial, e não de uma realidade social específica. A superação do homem cordial só será possível, finalmente, através da modernização da sociedade brasileira, o que pressupõe a urbanização e superação de seu personalismo e aristocratismo.
 
Não pode se tomar o conceito de cordialidade, em “Raízes do Brasil”, como um imutável diretriz na evolução. Cordialidade não significava “elogio”, mas sim, “problema crítico”. O historiador mostrava que cordialidade vinha de cordis, coração, e dizia respeito ao problema que os brasileiros tendem a inflacionar a esfera privada em detrimento da pública. Por isso, teríamos instituições frouxas e pouco ou nenhum apego aos partidos, à lei e ao Estado.  Não seremos o eterno homem cordial[18].
 
 
Referências
AGUIAR, Neuma. Patriarcado, sociedade e patrimonialismo. Sociedade & Estado. Brasília: UnB, volume 15, n.2., 2000.
BEZERRA, Elvia. Ribeiro Couto e o homem cordial. Disponível em: http://www.academia.org.br/abl/media/prosa44c.pdf  Acesso em 18.01.2020.
BOFF, Leonardo. O Despertar da Águia: o dia-bólico e sim-bólico na construção da realidade. Petrópolis: Vozes, 1998.
CÂNDIDO, Antônio. Sérgio, o radical. In: _____. Sérgio Buarque de Holanda: vida e obra. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1988.        
_____. Introdução. In: BARBOSA, Francisco de Assis (Org.). Raízes de Sérgio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.        
_____. O significado de Raízes do Brasil. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
COSTA, Iná Camargo. Sérgio Buarque, o " Homem Cordial" e uma crítica inepta. Disponível em: https://outraspalavras.net/poeticas/sergio-buarque-o-homem-cordial-e-uma-critica-inepta/  Acesso em 18.01.2020.
DE SOUZA, Ricardo Luiz. As raízes e o futuro do "Homem Cordial" segundo Sérgio Buarque de Holanda. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-49792007000200011 Acesso em 18.01.2020.
ELLYSON, Fred. Alfonso Reyes e o Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002.
FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: DIFEL, 1979.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975     
_____. Visão do paraíso. São Paulo: Nacional, 1977.        
_____. O Extremo Oeste. São Paulo: Brasiliense, 1986.        
_____. Monções. São Paulo: Brasiliense, 1989.        
_____. Livro dos prefácios. São Paulo: Companhia das Letras, 1996a.        
_____. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996b.         
_____. O espírito e a letra: estudos de crítica literária. São Paulo: Companhia das Letras, 1996c.        
_____. Para uma nova história. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004. (Organizado Marcos Costa)
KONDER, Leandro. Intelectuais brasileiros e marxismo. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1991.        
LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. São Paulo: Nacional, 1976.        
LEENHARDT, Jacques. Frente ao presente do passado: as raízes portuguesas do Brasil. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy (Org.). Um historiador nas fronteiras: o Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005.
SILVA, Washington Luiz. Carl Schmitt e o conceito limite do político. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100 512X2008000200010 Acesso em 17.01.2020
.         
SOUZA, Jessé. Elias, Weber e a singularidade cultural brasileira. In: NEIBURG, Federico et al .Dossiê Norbert Elias. São Paulo: EDUSP, 1999a.        
_____. Max Weber, patrimonialismo e a formação cultural brasileira. In: COSTA, Sílvio (Org.) Concepções e formação do Estado brasileiro. São Paulo: Anita Garibaldi, 1999b.        
_____. A ética protestante e a ideologia do atraso brasileiro. In: _____ (Org.). O malandro e o protestante: a tese weberiana e a singularidade cultural brasileira. Brasília: Ed. UNB, 1999c.  
WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.  
 
[1] A origem da expressão é datada no período colonial brasileiro e se refere à cobrança de impostos por Portugal. O quinto correspondia exatamente a vinte por cento da produção de ouro da colônia. O apetite fiscal da coroa era tão grande quanto a dificuldade em quitar suas dívidas com a Inglaterra. Portugal pouco produzia além de vinhos e quinquilharias. Comprava dos britânicos quase tudo o que consumia. Afirma-se que o termo era dirigido aos cobrados de impostos, que ao exigir o quinto ouviam algo como: "Vá buscar o quinto nos infernos!".  A expressão ainda serve para designar alguém, no sentido de amaldiçoar, mandando-a para longe, ou para se referir ao lugar remoto.  Começou a ser usada em Portugal exatamente para se referir ao Brasil.
[2] Foi em 1946 durante o discurso de recepção a Peregrino Júnior na Academia Brasileira de Letras, Manuel Bandeira destacou, entre as virtudes do empossado, a cordialidade. Afirmou: Ribeiro Couto inventou de uma feita a teoria do "homem cordial". Segundo nosso amigo, a cordialidade seria a contribuição brasileira à obra da civilização". Nascido em Santos, SP, Couto ficou conhecido como fundador do Penumbrismo – que não chegou a ser uma escola, mas, como ele mesmo definiu, “uma certa atitude reticente, vaga, imprecisa,nevoenta,nojeitodeescreverversos”porvoltadosanos1920a1923–e por ser o autor de Cabocla(1931), romance duas vezes adaptado para novela de televisão. Por outro motivo, seu nome se ligou para sempre ao de Sérgio Buarque de Holanda:  foi o historiador paulista quem deu “fundamento sociológico”, como disse Antonio Candido, à expressão “homem cordial”, criada pelo poeta santista.
[3] As bases da teoria do homem cordial também foram visitadas pelo professor norte-americano Fred Ellyson, que localizou na Capilla Alfonsina, biblioteca de Alfonso Reyes na cidade do México, as cartas de Ribeiro Couto ao amigo mexicano. E, em 1984, Ellyson publicou o artigo intitulado Alfonso Reyes e Ribeiro Couto: uma correspondência cordial, em Miscelânia de Estudos Literários: homenagem a Afrânio Coutinho.
[4] O indivíduo cordial se afirma como indiferente à lei geral sempre que esta contrarie suas afinidades emotivas. Seu interesse está sempre voltado para si mesmo, para aquilo que o distingue dos demais, do resto do mundo. E o intelectual cordial, por sua vez, é este indivíduo por assim  dizer voltado para o trabalho cerebral que apresenta, se não todas, algumas das seguintes marcas: presunção de que talento é de nascença e  espontâneo porque trabalho e estudo são ofícios vis; voluntário alheamento do mundo circundante; crença mágica no poder das ideias; concepção de  saber como instrumento para elevar seu portador acima dos comuns mortais; cultivo do saber para o autoenaltecimento; prática da erudição  sobretudo formal; citar em língua estranha para deslumbrar o leitor, como se exibisse uma coleção de pedras preciosas; prestigiar teorias com endosso de nomes estrangeiros e difíceis; concepção simplificada do mundo para colocar tudo ao alcance de raciocínios preguiçosos.  Os fascistas, como expressão mais radical do tipo, são “ignorantes e idiossincráticos”. Mas, acrescentemos, entre o homem cordial e o fascista há algumas mediações, das quais a mais importante, dado o seu peso material, são as forças de proteção e segurança da propriedade privada – exército, polícias e milícias – das quais provém o seu contingente armado. (In: COSTA, Iná Camargo. Sérgio Buarque, o " Homem Cordial" e uma crítica inepta. Disponível em: https://outraspalavras.net/poeticas/sergio-buarque-o-homem-cordial-e-uma-critica-inepta/ Acesso em 18.01.2020.).
[5] Sem ignorar os riscos de incompreensão que corria, Sérgio Buarque de Holanda usou o exemplo (Antígone) e o argumento de Hegel para caracterizar o homem cordial:  é um súdito, ignorante do que seja liberdade, cidadania e esfera pública em país que se dizia República. Ainda nos tempos coloniais, objetivamente a serviço do rei (de Portugal, no caso do Brasil), este súdito se considerava senhor absoluto de gentes e terras. Era inclusive chefe militar, privilégio que só perdeu quando o Estado Português se transferiu para cá, mas que mesmo assim permaneceu exercendo com os seus exércitos de jagunços que entraram pelo século XX afora – e seus herdeiros continuam barbarizando até hoje. É este o homem cordial, e não o povo brasileiro, como queriam os Tristões de Ataíde, Cassianos Ricardos e demais simpatizantes, inclusive Gilberto Freyre. O povo brasileiro sempre foi e continua sendo vítima dos desmandos destes súditos ou vassalos que apoiavam (e apoiam) seus atos em argumentos irracionais, como são os do “coração”, no caso de sentimentos benevolentes, ou do fígado, no caso dos ódios e vendetas.  A própria “indignação moral” faz parte deste jogo hipócrita e sentimentaloide.
[6] A popularização da expressão "homem cordial" causou polêmica tanto entre os intelectuais como entre os populares, e ainda ganhou interpretações diversas. As distorções foram as mais diversas, ainda uma vez de acordo com as teorias que transcendem o campo da ciência e migram até para o cotidiano. Ao adotar cordial no sentido pouco usado de ser referente a ou próprio do coração, conforme se lê na definição presente no Dicionário Houaiss e, Sérgio Buarque criava sucessivos mal-entendidos. O que é frequente até hoje, sendo por vezes entendido como um sentido afável, caloroso, a adjetivos contrários ao conceito elaborado pelo historiador.
[7] Carl Schmitt é sem dúvida o maior pensador político do século XX e o conceito do político é certamente de toda sua vasta bibliografia a obra mais conhecida, talvez por essa razão tenha permanecido durante um longo período como sendo o único livro do jurista traduzido para língua inglesa. Este curto ensaio de Schmitt, é um dos grandes clássicos da filosofia política contemporânea, surgiu originalmente de uma conferência proferida na Deutsche Hochschuhle für Politik em Berlim por ocasião de um ciclo de conferências dedicado ao problema da democracia, sendo publicado com o título "Der Begriff des Politischen". Em 1927 (dois anos antes da crise de 1929, 6 anos antes da ascensão dos nazistas ao poder)  no Archiv für Sozial Wissenchaft und Socialpolitik, tomo 58, n.1, pp.1-33 e reeditado na série Probleme des Demokratie, Politische Wissenchaft, Berlim, 1928,  até ser publicado em1932, pela Duncker und Humblot, Munich, esta edição servirá de referência para a tradução de George Schwab. Por sua vez, Schwab é o grande responsável pela difusão da obra de Carl Schmitt em solo americano através de livros, artigos e traduções das suas obras mais importantes.  Nessa edição expandida, ora publicada pela Chicago University Press, aparecem também os comentários feitos por Leo Strauss. Este último ensaio foi publicado originalmente com o título: "Anmerkungen zu Carl Schmitt, Der Begriff des Politischen", no Archiv für Sozialwissenchaft und Sozialpolitik, vol.67, n.6, pp. 732-749, em 1932. A presença desse comentário de Strauss demonstra o alcance do debate que a obra provocou nos anos que se seguiram.  Além do comentário de Strauss, a edição traz também a conferência que Schmitt proferiu em Barcelona em outubro de 1929, "Das Zeitalter der Neutralisierungen und Entpolitisierungen" ("A era das Neutralizações e Despolitizações"), publicada no mesmo ano na Europäische Revue e anexada à edição de 1932 do Conceito do Político. (In: SILVA, Washington Luiz. Carl Schmitt e o conceito limite do político. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100 512X2008000200010 Acesso em 17.01.2020.
[8] Cassiano Ricardo se opusera ao uso do vocábulo "cordial porque seria demasiado formal e protocolar, quando o capital sentimento do brasileiro seria a bondade ou mesmo certa técnica de bondade. A conexão integrava a retórica de um defensor letrado do Estado Novo, Feldman. Aliás, Almir de Andrade, em Força, Cultura e Liberdade, de 1940, voltará à cordialidade como princípio fundador do Estado Novo. Sem dúvida é frouxo o leito semântico da cordialidade de Buarque de Holanda. E, Cassiano Ricardo, ressaltou essa e renegou-lhe o eixo flutuante, a cordialidade se punha em corrente oposta, isto é, referindo-se ao lastro que lhe interessava ideologicamente.
[9] Durante o Estado Novo, Getúlio Dornelles Vargas referenda a Constituição de 1.937, escrita por Francisco Luis da Silva Campos, conhecida por Polaca, por ter inspiração na Constituição fascista da Polônia.
[10] Escritores e estudiosos de áreas diversas já se detiveram na compreensão do conceito de “homem cordial”. Oswald de Andrade tratou do assunto em “Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias”, no capítulo intitulado “Um aspecto antropofágico da cultura brasileira: o homem cordial”. Entre outros, estudaram o tema o historiador inglês Peter Burke, o cientista político Gabriel Cohn, o professor de literatura Alcir Pécora, Antonio Candido e, mais recentemente, o professor de literatura João Cezar de Castro Rocha, em “O Exílio do Homem Cordial”.
[11] Jacques Leenhardt é sociólogo, filósofo e crítico. E revelou que como francês, só foi conhecer Debret no Brasil. Estudioso de Sartre, Burle Marx e Gilberto Freyre, conhecedor da língua portuguesa e veio ao Rio de Janeiro para seminário na Bienal do Livro em 26.09.2015.
[12] Uma das críticas suscitadas em relação à obra Sobrados e mucambos dizia respeito a uma eventual simplificação dos tipos de habitação existentes no período em estudo ou à ausência de referência a outras formas de moradia, como, por exemplo, a tejupaba que era uma espécie de cabana coletiva de influência indígena. Outra crítica auferida refere-se que a obra focava um pequeno trecho do Brasil (mais particularmente ao Nordeste ou à área de Recife-Olinda) seriam aplicáveis as generalizações do sociólogo.
[13] Enfim, o homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda não é exatamente aquilo que o senso comum deduz à primeira vista que se depara com o conceito-chave de sua obra. O cordial não indica somente bons modos e gentileza, vem de cordis, isto é, relativo ao coração. Para o historiador o brasileiro não suporta o próprio peso da individualidade, precisa viver nos outros. A apropriação afetiva do outro seria uma estratégia psicológica e comportamental predominante na sociedade brasileira e ainda parte integrante de nosso processo civilizatório. A cordialidade significa poder iludir na aparência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar inatas suas sensibilidades e suas emoções. O brasileiro dispensa as formalidades, pretende estreitar as distâncias, não suporta a indiferença e prefere ser amado ou odiado.
[14] A grande herança dos tempos coloniais é a família patriarcal. Esta “fornecia a ideia mais normal do poder, da respeitabilidade, da obediência e da coesão entre os homens. Como resultado, temos o predomínio, na vida social, dos sentimentos próprios à comunidade doméstica, naturalmente particularista e antipolítica; uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família”. Com o predomínio do poder da família patriarcal herdada da colônia, fica explicada a nossa impossibilidade de termos um Estado democrático.
[15] Para adequadamente entender nossa cordialidade é indispensável referir-se a duas heranças que tanto oneram nossa pobre cidadania, a saber: a colonização e a escravidão. A colonização produziu em nós o sentimento imediato de submissão, tendo que assumir as formas políticas, na língua, na religião e nos hábitos do colonizador português. Já pela escravidão tão bem abordada por Jessé Souza cabe recordar que entre 1817 a 1818, quando mais da metade do Brasil era composta de escravos, na ordem de 50,6%. E, atualmente, cerca de mais de 60% possui em seu sangue a origem dos afrodescendentes. E, ainda são discriminados e postos nas periferias, além de humilhados ao ponto de perderem a própria autoestima. A escravidão fora internalizada através da discriminação e do preconceito contra o negro que devia sempre servir, porque antes fazia tudo de graça e, imagina-se que deve continuar assim. Essas duas tradições estão presentes no inconsciente coletivo brasileiro em termos não propriamente de conflito de classes, mas antes de conflitos de status social. Aliás, todas essas contradições e paradoxos de nossa cordialidade aparecem constantemente nas redes sociais. Onde somos frugalmente contraditórios.
[16] Na cultura cordial a separação entre família e Estado se torna tênue ou mesmo imperceptível. O Estado é erigido como modelo paternalista, que estende seus braços para atender as necessidades, no entanto, de forma personalista e que impede a livre associação. O patrimonialismo prevalece sobre a burocracia, os cargos de confiança parecem ter mais sentido diante do imperativo da cordialidade que os cargos conseguidos por capacidades próprias.
[17] Em 17 de janeiro do corrente ano, o atual Presidente da República exonerou o Secretário Nacional da Cultura, Roberto Rego Pinheiro, conhecido como Roberto Alvim, que fez um discurso no qual utilizou frases idênticas e similares às usadas por Joseph Goebbels, que era Ministro da Propaganda de Adolf Hitler durante o governo nazista. Aliás, o referido Ministro nazista fora um de seus principais idealizadores. Uma de suas lapidares frases, foi in litteris: "Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade". Era essa a metodologia de Hitler na Alemanha Nazista para exercer um maciço controle sobre as instituições educacionais e culturais bem como dos meios de comunicação.
[18] “Na verdade, o brasileiro seria violento”, contrapõe João Cezar de Castro Rocha, ilustre professor de Literatura Comparada da UERJ, ao destacar o equívoco que comumente acontece diante de uma leitura apressada de Raízes do Brasil. Se o homem cordial é o sujeito dotado de paixões e que age com o coração. Sérgio Buarque, então, cunhou o seu homem cordial com base no nosso legado rural de índole patriarcal, fruto de um passado agrário, onde as relações eram naturalmente desenvolvidas sob a marca da pessoalidade. Para Sérgio, neste rito de passagem – do campo para a cidade -, e no peso que ele carrega, está a matriz genuína da cordialidade brasileira, que, não por outro motivo, teria seus dias contados: a urbanização inevitável poria fim a ela.
GiseleLeite e Denise Heuseler
Enviado por GiseleLeite em 22/01/2020
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.


Comentários



Site do Escritor criado por Recanto das Letras
 
iDcionário Aulete

iDcionário Aulete