Acabara de ter uma notícia trágica ao telefone. Colocou o fone no gancho.
Procurou vestir-se. Calças compridas, uma camisa qualquer e sapatos...
Percebeu que o tempo estava nublado. Seria recomendável levar também o
guarda-chuva. E, assim, procurou a bolsa, colocou lá dentro o celular, sua
conexão externa com o mundo, e, finalmente saiu.
Em seu feudo particular e íntimo, organizava as ideias como estivesse diante
de prateleiras. Etiquetava mentalmente cada prateleira. Depois, ajeitava-as.
Uma a uma. Em lá chegando, encontrou um cadaver, de expressão sofrida, ainda nu e de braços abertos. Recebeu a morte literalmente de braços abertos. Seus olhos estavam abertos e com uma expressão suprema de dor.
E, a rigidez cadavérica não permitia mais que se fechassem as pálpebras.
No entorno, havia um furdúncio intenso orquestrado por conhecidos, amigos e principalmente por curiosos. Podia perceber os olhares tortos e reprovadores sobre mim... Mas, lá estava apenas por conta de minha filha. Porque no fundo, o finado já era falecido para mim, há muito tempo atrás.
É como preparar o morto para a morte. Vesti-lhe as calças, porém, a camisa não foi possível. Então amarrei-lhe os braços em amplexo, com um lençol, ficou parecendo uma semimúmia.
Por derradeiro, retiraram-lhe a aliança e o relógio. E, logo surgira seu irmão, como candidato pedinte pelos seus apetrechos. A filha, abalada deu sem pestanejar. Eu, no primeiro momento, não aceitei, resmunguei. Mas, depois, pensando bem, foi melhor assim. Rezei uma prece, pedi muita luz e paz para aquele espírito. E, depois que seu corpo partiu. Fechamos o apartamento e partimos.
Fomos direto ao Ramatis para tomar passes e rezar. A alma pesava feito um fardo. E, a consciência folheava flashes do passado. De forma lenta e indigesta.
Se esquecer é perdoar, eu perdoei. Mas, se não for... talvez esquecer certas vilezas fosse apenas mais uma estratégia de sobrevivência. No fundo, já esperava aquela morte trágica... mas ser a pessoa a lhe providenciar uma nesga de dignidade para o corpo desnudo, não... São os paradoxos decifráveis do destino.
Abre-se uma porta e fecha-se outra. Tudo é encadeado e lógico, o problema que nem sempre aprendemos a ler corretamente. A alfabetizaçao da alma é lenta e complexa.