Eis que nos deixam existir
A respiração lenta e profunda
O calafrio a percorrer a espinha
Suores nas mãos
O frêmito no corpo inteiro
Febre, tosse e espirros.
Uma espécie de alergia
Secreções espúrias
Banhos prolongados
Regados a água e terapia.
Eis que nos deixam existir.
Nossos medos.
Nosso inconsciente.
Nosso sofrimento.
Nossas limitações.
O sapato apertado.
A roupa espartilho.
O cabelo assanhado
A pele ruborizada pelo sol.
Eis que nos deixam existir.
Somos animais frágeis.
Infância longa.
Maturidade improvável.
Leis de sobrevivência injustas.
Destinos genéticos complexos.
Doenças comunis.
Doenças raras.
Doenças incuráveis.
Então, enfim, a morte se avizinha.
O texto da lápide.
Já escolhi o meu:
"O afeto é analgésico da dor de existir".
Talvez toda a trajetória
tenha valido a pena.
Talvez tropeçar tenha sido útil.
Aprender.
Errar.
Apagar.
Esquecer.
Desmaiar de sono e cansanço.
Desconectar-se
Roupas.
Vaidades.
Títulos.
Eis que nos deixam existir.
Somos pó.
Apenas pó.
Voltaremos ao pó.
Cadeias de carbonos perecíveis.
A magia invisível.
O encanto palpável.
De fabricar afetos.
Vínculos.
Sentidos e sentimentos
Num crochet complicado
feito por muitas mãos.
Mãos que ajudaram.
Mãos que taparam a boca.
Mãos que recolheram.
Mãos que abraçaram.
Eis que nos deixam
simplesmente viver.
Existir foi apenas uma etapa.