"O conhecimento é o mais potente dos afetos: somente ele é capaz de induzir o ser humano a modificar sua realidade." Friedrich Nietzsche (1844?1900).
 

Professora Gisele Leite

Diálogos jurídicos & poéticos

Textos


Considerações sobre ontologia[1] processual civil contemporânea e o CPC/2015.

.Considerações sobre ontologia processual civil contemporânea e o CPC/2015.



"O homem é definido como um ser que evolui, como animal é imaturo por excelência". Friedrich Nietzsche


Cumpre em primeiro lugar esclarecer que a virada hermenêutica e ontológica provocada pela publicação de “Ser e tempo” por Heidegger e, depois por “Verdade e método” por Gadamer em 1960 fincou as bases de um novo olhar sobre a hermenêutica jurídica quando se saiu do plano metafísico-objetivista baseado em Aristóteles e Tomás de Aquino (cuja frase que melhor sintetiza é: “justiça é dar a cada um, o que é seu”) e o paradigma subjetivista muito identificado pela filosofia da consciência e que permanecem amparando as teses exegéticas dominantes .

Tudo aponta para a indispensabilidade do método ou do procedimento para se atingir a vontade da norma, seja para acessar o espírito do legislador ou, para se procurar obter a melhor resposta.

A resposta que encaminhará a solução do conflito, a partir dos elementos obtidos no caso concreto, não pode depender da vontade pessoal ou da subjetividade do julgador. A superação das teses positivistas que amparam o paradigma da discricionariedade judicial ocorre através da opção por uma resposta judicial correta e adequada constitucionalmente e que ganha destaque e relevância, principalmente, por que esta resposta correta tem o poder de repelir a discricionariedade e a arbitrariedade no conteúdo das decisões judiciais.

É que na maioria das vezes, continua-se a crer que o ato interpretativo é ato cognitivo e, que interpretar a lei significa retirar da norma, tudo o que nela contém, o que denuncia o busilis metafísico nesse campo de conhecimento. Há, pois uma clara imbricação dos paradigmas metafísicos clássicos e os modernos, residindo na doutrina pátria como também na estrangeira um problema paradigmático .

Em verdade podemos situar que desde a definição de justiça até mesmo a estruturação do processo contemporâneo que não só abandonou o julgamento como vedete principal, vindo mesmo a conceber outras formas de composição de lide tais como a arbitragem, mediação e a conciliação.

E, neste aspecto o CPC/2015 trouxe uma significativa alteração, pois três fatores comprovam: a exigência de diálogo entre juiz e as partes, com o dever de cooperação não somente para sanar vícios processuais, mas igualmente, para proibir a decisão surpresa, a ampliação da exigência de boa-fé objetiva (confirmando a tendência legislativa e doutrinária criada desde o Código Civil Brasileiro de 2002) e a valorização dos julgamentos de mérito (o que importa dizer que será priorizado o exame quanto à existência ou não do direito alegado pela parte).

Procurou-se, em síntese, resolver de uma vez o conflito de interesses, para assegurar a justiça do caso. O novo codex processual visa evitar as decisões tipicamente processuais e tão comuns no sistema vigente e que nada esclarecem ou contribuem para atender o direito das partes.

Neste particular sentido, o CPC de 2015, o nosso primeiro código processual nascido em contexto democrático, não só efetivou como etapa obrigatória a audiência de mediação ou conciliação , como também positivou que o juiz poderá utilizar-se de tais métodos sempre que possível.

O grande escopo do processo é afinal prover a preparação para o provimento jurisdicional final, devendo se desenvolver em contraditório entre as partes, o que só vem a ratificar a definição do processo por Elio Fazzalari como sendo “procedimento em contraditório” de maneira que garanta a plena e ativa participação (além de consciente) das partes, entendendo o como e o porquê do ato jurisdicional definidor de seus direitos.

A hermenêutica jurídica contemporânea trouxe uma releitura do direito constitucional e da força normativa da Constituição, principalmente em razão da grande expansão e consagração dos direitos e garantias fundamentais e, ipso facto, o fortalecimento da jurisdição constitucional.

A constitucionalização do direito foi uma hábil resposta ao positivismo clássico que tanto endossou barbáries notadamente na Segunda Grande Guerra Mundial . Ademais, o Tribunal de Nuremberg exibira todas as feridas epistemológicas e pustulentas deste positivismo agressivo e pseudocientífico.

A constitucionalização do direito trouxe a horizontalização dos direitos fundamentais bem como a força vinculante do texto constitucional seja em seu aspecto explícito ou implícito (além de fazer ressurgir a necessária interpretação axiológica).

É certo que o direito processual fora notoriamente o mais filtrado de todos os ramos jurídicos pela Constituição, exatamente por encarnar o microcosmo democrático, reproduzindo o funcionamento do Estado de Direito, com as devidas valorações à dignidade humana, a liberdade, igualdade, e, sobretudo, a respectiva legalidade e responsabilidade.

É verdade que o neoprocessualismo chegou ao Brasil após muitos anos, veio mesmo muito tardiamente para trazer a efetividade de direitos que já se positivada e, que não passava de promessa abstrata sem qualquer respaldo concreto no cotidiano do cidadão.

A consciência de que o processo é instrumento a serviço da ordem jurídica e cuja espinha dorsal é o contraditório , e mesmo o significado do pós-modernismo no direito processual brasileiro só trouxeram diversas ondas reformistas que desaguaram no CPC de 1973 e, fora modificando a mentalidade burocrata e letárgica de jurisdição, mas comprometeu seriamente sua organicidade e harmonia sistêmica.

O primeiro grande enigma processual começa no território da busca da verdade, nos limites do devido processo legal, quando até certo momento havia o evidente predomínio da verdade formal em detrimento da verdade material dos fatos e das alegações.

O desenvolvimento científico só veio trazer maior grau de certeza nesta busca da verdade no processo, é o caso, por exemplo, do exame de DNA nas demandas que envolvem a paternidade ou maternidade.

Ademais a própria racionalidade jurídica sempre preocupada como alcançar o conhecimento e, ainda, como suportar as consequências resultantes, tanto na modernidade como nos atuais debates contemporâneos só vieram endossar a relevância do contraditório participativo ou dinâmico.

Romper com a dialética aristotélica que fora antes tão incensada pelos medievais e, finalmente se encaminhar para a lógica jurídica de Chaim Perelman que mostrou a força crítica da matemática dedutiva aplicável às disciplinas práticas e que se enredam em ser exatas.

Assim afirmou Perelman que o direito para Hobbes o direito não é a expressão da razão, mas sim, a manifestação de vontade do soberano. E, ainda aponta que a unificação das vontades individuais em uma só pessoa, para Hobbes, chama-se Estado – o Leviatã .

Já na filosofia de Spinoza, conforme bem explicou Perelman o ideal de racionalidade universal fora inspirado em Leibniz que é autor da fórmula cum Deus calculat, fit mundus (o mundo se realiza segundo cálculos divinos) .

Enfim, para o mundo racionalista é imprescindível à formação de uma ciência processual e o abandono de juízos de probabilidade, devendo prevalecer somente as verdades claras e evidentes. Como dado fundamental para o sucesso do normativismo e da justiça distributiva. Matematizar a ciência jurídica significa não perceber que se trata de uma ciência social aplicada e, particularmente a ciência processual é a que mais se próxima do tecido social e política onde estão latentes as necessidades dos jurisdicionados.

A matematização da ciência jurídica fora fenômeno que consistiu na assimilação por esta ciência de duas vertentes metodológicas do jusnaturalismo (por vezes até opostas) de um lado o racionalista bem próprio do pensamento francês, com Descartes, e de outro lado, de empirismo ou sensualismo (mais peculiar do pensamento inglês, como por exemplo, com Hobbes).

O sábio Ovídio Baptista da Silva lecionou que a aplicação da lógica às ciências explicativas, ocorrera para a verdadeira supressão da possibilidade de o julgador descobrir a verdade. Pois o julgador resta tolhido e constrangido em sua autonomia crítica para que possa ter diante do caso concreto e, por vezes, tomando por base distintos critérios axiológicos.

E, neste sentido o procedimento nem teria razão de ser, pois a justiça está mesmo representada no texto da lei e, por essa razão, a lei injusta não existiria. Noutro giro, no mundo profundamente racionalista a busca pela realização do direito seria inviável na medida em que o critério de determinação do justo e do injusto são tarefas delegadas ao legislador e não ao juiz.

O CPC de 2015 representa o deslocamento da centralidade da lei processual para o precedente judicial . Saímos da literalidade da lei para a interpretação e aplicação da lei.

O positivismo jurídico caracteriza-se, pois, por sua posição contrária a todas as formas de metafísica jurídica e, portanto, distanciada completamente das teorias do Direito Natural. A verdade é que alheio à experiência da realidade ou do direito positivo, não existe o direito.

A supremacia da legislação como fonte de direito seguiu por várias formas distintas, seja no Reino Unido, seja na Alemanha e França . O neopositivismo ou o positivismo lógico (ou a doutrina do Círculo de Viena) pretendeu fazer jus à função de estabilização das expectativas, sem ser obrigado a apoiar a legitimidade da decisão na autoridade inexpugnável de tradições éticas.

Kelsen e Hart elaboraram um sentido normativo próprio das proposições jurídicas e uma construção sistemática de regras destinadas a garantir a consistência de decisões ligadas às regras e, tornar o direito independente da política.

O ideal da purificação do direito fora perseguido a exaustão. A legitimação da ordem jurídica em seu todo, fora transportada para o início, ou seja, para uma regra fundamental (ou regra de conhecimento) pela qual tudo se legitima e tem justificação racional e deve ser assimilada historicamente conforme o costume.

É engraçado perceber que antes da primazia da lei, havia a do costume, e novamente retornam aos holofotes no processo contemporâneo à luz da teoria dos precedentes judiciais, a predominância dos costumes. Conclui-se que o movimento é cíclico, metafísico e também contínuo, construindo a verdadeira ciranda das fontes de direito.

Considera-se ainda muito perigosa a máxima que venha encorajar as interpretações individuais mesmo as mais cerebrinas, posto que a maior liberdade do julgador adotada e defendida pela Escola do Direito Livre , chega ao exagero de admitir o poder jurisdicional de correção da lei. Mas, com a ênfase atual da jurisdição constitucional e, em sua crescente importância e papel no trajeto evolutivo do direito processual civil brasileiro, como podemos refutar tal poder?

O inicial comprometimento da ciência processual já então desgarrada do direito material, com o racionalismo veio a transformação do processo em uma ciência em busca da verdade, sem a qual não se obtém justiça concreta.

E, nesta oportunidade, se rejeita a cognição sumária e se endossa a cognição plena, exaustiva e quase infinita que seria a mais adequada para a busca da verdade. Novamente o CPC de 2015 veio superar o impasse ao prever a tutela de urgência e de evidência.

Carnelutti explicou que a semente precisa de anos e até de séculos, para se tornar- uma espiga (veritas filia temporis). Assim se explicava que o processo dura e não se pode fazer tudo de uma única vez. É imprescindível ter-se paciência.

O que contrasta completamente com a Reforma do Judiciário uma vez proposta pela E.C. nº45/2004 que colocou o princípio da duração razoável do processo .

Construiu-se uma contradição adiecto: se a justiça é segura não é rápida e, se é rápida, não é segura. Carnelutti que delineou o conceito de lide retratou o pensamento racionalista que tanto privilegiada a máxima duração do processo tida como medida capaz de assegurar a tão proclamada segurança jurídica .

É falsa a ideia de que as instituições processuais possam ser realmente neutras e livres de compromisso com a história e de seu contexto social e cultural. Portanto o dinamismo contemporâneo infectou fatalmente a noção de tempo no processo, é o processo eletrônico é a melhor expressão cultural disto.

Pontes de Miranda não aceitava a função do processo civil como meramente instrumental posto que composto de regras jurídicas tidas como secundárias, ao passo que as normas de direito material seriam as normas primárias.

De sorte que a Legislação e a Justiça seriam funções sucessivas e que surgem em ordem decrescente. Mas o pensamento do século XX se volta para a exaltação da estética da ação, como valor em si mesmo, assim segundo Robles o século se transformou fundamentalmente destrutivo.

A crise do modelo processual enxerga o processo como instrumento por força da racionalidade jurídica. A ideologia sociopolítica emergente neste século na Europa carregou o fenômeno da socialização do processo civil com o fito de incorporar os clássicos princípios do liberalismo às exigências do Estado Social de Direito, evidenciando a distinção entre o objeto do processo e procedimento que é reconhecido como mera formatação do instrumento capaz de atingir a efetiva e real tutela de direitos, pelo Estado, dos interesses litigiosos.

A crise do processo pode ser identificada a partir do momento em que o valor de segurança jurídica deixa de ter o maior peso na balança de valores e cede lugar a outros tão importantes quanto ele. E, nesta dimensão se destacam os direitos fundamentais.

Dworkin ao formular suas teorias para o direito tentou evitar as falhas do positivismo, mostrando que a adoção de direitos concebidos deontologicamente podem satisfazer simultaneamente as exigências de segurança jurídica e da aceitabilidade racional.

Apesar de nosso direito pátrio reger-se pelo sistema do civil law que principalmente privilegia as normas escritas e cujas origens datam do direito romano.

O modelo dogmático do direito está preparado para tratar os conflitos e disputas interindividuais. Com a ascensão do radical individualismo, deu-se a redução da importância dos grupos na estrutura social e no sistema jurídico.

Hoje o que se percebe é que a crise do direito reflete a crise social e, com esta, as visíveis mudanças de comportamento dos indivíduos, dos conflitos e da sociedade. Daí, a relevância do processo coletivo como melhor meio de se obter uma equidade na tutela de direitos.

A doutrina contemporânea salienta que pelas ações coletivas se tem um meio para alcançar uma justiça mais efetiva. E, o CPC de 2015 permitirá a coletivização da demanda quando for necessário e atender as exigências da lei processual.

A negação da natureza e objetivo puramente técnico do processo significa, ao mesmo tempo, a afirmação de sua permeabilidade aos valores tutelados na ordem político-institucional e jurídico-material (os quais buscam efetividade através dele) e o reconhecimento de sua inserção no universo axiológico da sociedade a que se destina.

Inegável que o direito processual civil está em descompasso com a realidade contemporânea apesar de existirem sinceras tentativas de adequação. Em suma, pode-se afirmar que o ataque de Ronald Dworkin ao positivismo baseia-se na distinção lógica existente entre as normas, as diretrizes e princípios.

Desta forma, defende Dworkin que os juízes diante os casos difíceis devam socorrer-se dos princípios e, como não há uma hierarquia pré-estabelecida entre princípios, é possível que estes possam fundamentar decisões distintas. E, por serem os princípios dinâmicos e capazes de mudarem de forma célere então todo esforço para canonizá-los, resta mesmo fadado ao fracasso.

Por tal razão, a aplicação dos princípios é automática e exige fundamentação judicial e integração da fundamentação à teoria.

Danilo Nascimento Cruz bem destacou em seu artigo “Proto-filtros conceituais para a leitura do Novo Código de Processo Civil Brasileiro de 2015” que o traço característico da constitucionalização do direito consubstancia-se pela irradiação do conteúdo substancial e valorativo das normas constitucionais e, até alguns juristas tentaram em vão elaborar um catálogo de condições para a constitucionalização do direito dentre as quais se incluem uma constituição rígida.

Desta forma, identificamos a força vinculante da Constituição e a sobreinterpretação desta e, por fim, a aplicação direta das normas constitucionais.

Logo no primeiro artigo da Lei 13.105/2015 há clara inserção dos princípios constitucionais como evidente opção ideológica, posicionando a CF/1988 como centro gravitacional de todo sistema processual civil pátrio.

Com o texto constitucional vigente estabeleceu-se o Estado Democrático de Direito e, a partir daí, se desenvolveu a constitucionalização de todo o direito, até mesmo do direito privado.

Desta forma, a aplicação e a interpretação do direito são feitas através da moldura constitucional. A Constituição não só serve de premissa interpretativa, mas também de argumentação jurídica de direitos e garantias, mas sobretudo, como guia principal da semântica processual brasileira.

Ainda se consagrou direito de aplicação genérica ao contemplar as garantias constitucionais e disciplinando o autêntico devido processo legal e o contraditório remodelado que incide em todo iter processus e, não somente no momento da contestatória.

Há certo consenso de que todas as formas reformistas no processo civil brasileiro tiveram por escopo dar-lhe maior efetividade , o que acarretou o reconhecimento de certa relativização do dogma da autonomia do processo.

Afinal, o exagerado apego metafísico dos valores absolutos deve ceder lugar ao pragmatismo capaz de trazer a justiça aos litígios reais. Sem perder de vista os princípios e diretrizes de sustentação dogmática e do sistema jurídico que garantem a estabilidade dos critérios de julgamento e, evita a atuação tópica e casuística, o intérprete que deve buscar a melhor forma de resolver os problemas concretos trazidos pelas partes, e para isso, sua análise da lei deve ir além de traduzir sua finalidade de integração e pacificação social.

O progresso das teorias das lacunas do direito sejam estas normativas, axiológicas ou ontológicas culminaram no reconhecimento da incompletude do sistema processual e, também de outros microssistemas derivados como o trabalhista, tributário e administrativo.

Leciona Maria Helena Diniz em seu Compêndio de Introdução a Ciência do Direito que são três tipos principais de lacunas: 1- a normativa; 2- a ontológica (quando há a norma, mas não corresponde aos fatos sociais); 3 – axiológica (onde existe a norma, mas ela se revela injusta, posto que sua aplicação traga uma solução insatisfatória ou injusta).

Mas precisamos recordar o mestre alemão Karl Larenz que afirmava que “toda a lei contém inevitavelmente lacunas”, razão pela qual se reconheceu há muito a competência de tribunais para colmatar as lacunas da lei.

Assim, a interpretação da lei e o desenvolvimento judicial do Direito não devem ver-se como essencialmente diferentes, mas apenas graus distintos do mesmo processo de pensamento.

Significa que a simples interpretação da lei por um tribunal, desde que seja a primeira ou se afaste de uma interpretação anterior, representa um desenvolvimento do Direito, mesmo que a própria jurisprudência não tenha consciência disso.

Alertou Karl Larenz que “só pode decidir-se a um desenvolvimento do Direito Superior da lei quando o exijam razões de grande peso”. Reconheçamos que a efetividade processual depende sinceramente da sensibilidade do jurista e, principalmente, do estudioso do direito processual, que deve criar soluções visando a tornar o instrumento adequado à realidade social a que ele será aplicado (In: Bedaque, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o processo. 3ª edição, São Paulo: Malheiros, 2003, p.33).

O direito ao devido processo legal, ou ao justo processo, garantia que, de certa forma, sintetiza todas as demais, é, portanto, entendido em suas dimensões: formal e material .

Deve o processo estruturar-se formalmente de maneira a dar cumprimento, tanto quanto possível, aos vários princípios implicados, estabelecendo, a cada passo, a sua devida ponderação.

A contemporânea noção da instrumentalidade postula um processo tecnicamente estruturado que possa atender aos aspectos éticos da atividade jurisdicional. As garantias formais não são um fim em si mesmo. Devendo oferecer, dentro das possibilidades, resultado materialmente justo.

Há no ordenamento jurídico pátrio no mais alto patamar estão as verdadeiras cláusulas de direito fundamental e o princípio do direito mais favorável à pessoa humana e, em particular, mais favorável ao cidadão-trabalhador, não havendo distinção constitucional entre as normas que contemplam o direito material e o direito processual.

O insigne doutrinador Luiz Guilherme Marinoni nos ensina in litteris: “Diante da transformação da concepção do direito, não há mais como sustentar antigas teorias da jurisdição, que reservavam ao juiz a função de declarar o direito ou de criar a norma individual, submetidas que eram ao princípio da supremacia da lei e ao positivismo acrítico. O Estado Constitucional inverteu os papéis da lei e da Constituição, deixando claro que a legislação deve ser compreendida a partir dos princípios constitucionais de justiça e dos direitos fundamentais. Expressão concreta disso são os deveres de o juiz interpretar a lei de acordo com a Constituição, de controlar a constitucionalidade da lei, especialmente atribuindo-lhe novo sentido para evitar a declaração de inconstitucionalidade, e de suprir a omissão legal que impede a proteção de um direito fundamental. Isso para não falar do dever, também atribuído à jurisdição pelo constitucionalismo contemporâneo, de tutelar os direitos fundamentais que se chocam no caso concreto”. (In: Marinoni, L.G. A jurisdição no Estado Contemporâneo. In: Marinoni, L.G. (coord.) Estudos de direito processual civil: homenagem ao professor Egas Dirceu Moniz Aragão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 65).

A teoria ontológica do processo se edificava sobre os parâmetros da concepção aristotélico-tomista e estabelecendo a nítida distinção entre processo e procedimento.

Para o processo civil devem ser sempre lembrados Pontes de Miranda, jurista notável que fora o primeiro, no Brasil, a conceituar o processo como relação jurídica, depois veio Gabriel Resende Filho que estabeleceu a ligação entre o procedimentalismo dos mestres anteriores e a renovação científica que ocorreu no Brasil a partir do CPC de 1939, e Machado Guimarães construiu cientificamente as bases da processualística em muito de seus institutos fundamentais. E, por derradeiro, Moacyr Amaral Santos que com sua maravilhosa obra didática granjeou grande prestígio e fora reeditada à luz do CPC de 1973.

Registre-se também a vinda de Enrico Tullio Liebman para o Brasil que se estabeleceu em São Paulo em 1940 para ficar até o final da guerra, significou decisiva contribuição para a renovação do método do processo civil que trouxe a congregação de jovens processualistas no direito brasileiro, lançando as bases do que seria a Escola de São Paulo.

Apesar de Liebman ser portador da ciência processual europeia, o doutrinador italiano encantou-se inteiramente pelas obras de autores luso-brasileiros mais antigos e doo espírito herdado da legislação de Portugal. Rendeu-se aos talentosos processualistas que nos anos quarenta se reuniam para debater os grandes temas da ciência processual e traduziram a perfeita simbiose que formou a alma da Escola Processual de São Paulo.

Foram discípulos de Liebman e que também privaram de sua companhia nos encontros de sábados à tarde, juristas como Alfredo Buzaid, José Frederico Marques, Luís Eulálio de Bueno Vidigal, Bruno Affonso de André e que elevaram a cientificidade do direito processual brasileiro e traçaram as estruturas do sistema processual e propiciaram o amadurecimento de seus conceitos fundamentais.

Deste contexto surgiu o CPC de 1973, também chamado de Código Buzaid que inscreveu o sistema brasileiro entre os mais modernos e avançados do mundo. E, que propunha a conciliação técnico-científica do direito processual brasileiro e que já se tornara irreversível.

O processo que antes então era examina sob a visão puramente introspectiva e, visto costumeiramente como mero instrumento técnico predisposto à realização do direito material, passou a ser examinado em suas conotações deontológicas e teleológicas, aferindo-se os seus resultados na vida prática, pela justiça que fosse capaz de fazer.

O processualista contemporâneo consciente dos níveis expressivos do desenvolvimento técnico-dogmático de sua ciência deslocou sua atenção, passando a enxergar o processo a partir de um ângulo externo, examinando-o em seus resultados junto aos consumidores da prestação jurisdicional e da justiça.

Logo cedo no Brasil, criou-se um clima propício aos estudos constitucionais do processo. Já na Constituição republicana de 1891 transladou para o sistema jurídico muitos institutos do direito norte-americano, desde o princípio da unidade da jurisdição e da judicial review dos atos administrativos e legislativos, passando pelas garantias do due process of law e culminando com os instrumentos constitucionais de defesa das liberdades.

Os trabalhos de Rui Barbosa traçaram com maestria as coordenadas processuais do controle da constitucionalidade das leis, tal como havia sido transplantado do sistema norte-americano para o sistema jurídico brasileiro.

Foram o direito judiciário e o Poder Judiciário que traçaram as bases do devido processo legal, enquanto processo necessário para assegurar os direitos subjetivos tutelados pelo direito material.

E por surgir o processo como instrumento para a segurança constitucional dos direitos, sendo uma espécie de processo natural e devendo o procedimento ser modelado conforme as formalidades definidas pela lei brasileira.


Apesar de este desabrochar precoce do processo constitucional entre nós, fora um início tímido até que a Escola Processual de São Paulo que se inspirando na sensibilidade constitucional de Liebman e se abeberando nos ensinamentos do mestre uruguaio Couture veio trazer os estudos processuais civis para a área do direito constitucional.

Nos anos cinquenta os estudos de Luiz Eulálio Bueno Vidigal sobre o mandado de segurança, de Alfredo Buzaid sobre o mesmo instituto e, ainda sobre a ação direta de inconstitucionalidade, esta obra que submete o instituto a tratamento científico e sistemático, enquadrando um dos instrumentos de processo constitucional nas categorias da moderna processualística; de José Frederico Marques, cujos trabalhos em torno da jurisdição voluntária e sobre o princípio constitucional da proteção judiciária marcam o ponto inicial dos modernos estudos brasileiros e as garantias do devido processo legal.

Multiplicaram-se os estudos de processo constitucional em 1980 e vem a lume a tese de doutorado de Kazuo Watanabe (Princípio da inafastabilidade do controle judicial no sistema jurídico brasileiro) que fora editada junto com outro ensaio sobre o mandado de segurança contra os atos judiciais.

Evidentemente precisamos entender a ontologia processual brasileira e perceber o íntimo e indissociável relacionamento sobre o direito e a cultura, especificamente no direito de processual civil.

Nesse sentido, Castanheira Neves alude que irreversivelmente “o direito compete à autonomia cultural do homem, que, tanto no seu sentimento como no conteúdo da sua normatividade, é uma resposta culturalmente humana (...) ao problema também humano da convivência no mesmo mundo e num certo espaço histórico-social, e assim sem a necessidade ou a indisponibilidade ontológica, mas antes com a historicidade e condicionabilidade de toda a cultura”.

Lembremos que na clássica definição de Galeno Lacerda as vivências de ordem espiritual e material que singularizam determinada época de uma sociedade são responsáveis pela informação e molde do direito, fazendo-o, ao fim e ao cabo, espelho a refletir de forma segura e fiel a realidade histórica naquele espaço e tempo socialmente considerado.

Ao longo da história do processo há três modelos processuais tais como praxismo, processualismo e o formalismo. O praxismo congregou todas as manifestações culturais que formam aquilo que Nicola Picardi apontou como sendo a pré-história do processo civil, e, portanto, antes do aparecimento da ciência processual. Significa apontar o processo como iudicium e, não ainda, como processus.

A expressão “modelos processuais” não corresponde exatamente ao que usou Miguel Reale que conceituou modelos como estruturas normativas que ordenam fatos segundo valores, numa qualificação tipológica de comportamentos futuros, e que se ligam determinadas consequências (In: Para uma Teoria dos Modelos Jurídicos. In: Estudos de Filosofia e de Ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, 1978, p. 17).

A postura metodológica do praxismo era sincrética, pois baseada na noção de que o direito processual civil era adjetivo e só ostentava existência se ligado ao direito substantivo.

Cândido Rangel Dinamarco se refere que no período do sincretismo “os conhecimentos eram puramente empíricos, sem qualquer consciência de princípios, sem conceitos próprios e sem definição de um método”.

O processo mesmo como realidade da experiência perante os juízos e tribunais, era visto apenas em sua realidade física exterior e perceptível aos sentidos: confundiam-no com o mero procedimento quando o definam como sucessão quando o definiam como sucessão de atos, sem nada se dizerem sobre relação jurídica entre seus sujeitos e nem sobre a convivência política aberta para a participação dos litigantes (contraditório).

A racionalidade que informava o fenômeno jurídico de um modo geral era a racionalidade prática argumentativa dos sujeitos processuais direcionada à resolução de problemas concretos, à consecução do justo pelo iudicium.

Após, o praxismo, surgiu o processualismo que fora um movimento cultural próprio da Idade Moderna no campo do processo civil. Seu principal objetivo fora a tecnicização do direito e despolitização de seus operadores, reduzidos à condição de autênticos escravos do poder.

Conforme bem observou Ovídio Araújo Baptista da Silva, ao postular o processo civil como instrumento puramente técnico, totalmente alheio aos valores em sua intencionalidade operacional.

O método que servia o processualismo era o científico ou autonomista através do qual os estudiosos se lançaram à tarefa de expulsar da disciplina processual e qualquer resíduo de direito material, forçados que estavam a justificar o direito processual civil como ramo autônomo e próprio da árvore jurídica.

Identificava-se com a racionalidade teórica, do tipo positiva, apta a retirar do plano da relação jurídica processual o problema da justiça, colocando em seu lugar o problema da norma jurídica (como aquilo que provém, do Estado e, mais particularmente do Legislativo).

O direito tendia à norma estatal sendo passível de uma única interpretação verdadeira, onde a tarefa do juiz cingia-se a descobrir a vontade concreta da lei. Conforme bem expressa a célebre frase de Guiseppe Chiovenda, assumindo foros de clareza, certeza e previsibilidade (projeto iluminista e racionalista para a ciência jurídica).

O formalismo processual foi entendido como movimento cultural destinado a concretizar os valores constitucionais no tecido processual, dando força ao caráter instrumental e a racionalidade prática dirigida ao caso concreto.

Deixa o processo de ser visto como mera técnica assumindo a estatura de instrumento ético sem deixar de reconhecer, a sua estruturação igualmente técnica.

Afinal, atualmente vivenciamos o formalismo processual onde os valores constitucionais contaminam a técnica processual e propondo a delimitação de poderes, faculdades e deveres dos sujeitos processuais, a coordenação de sua atividade, ordenação do procedimento e organização do processo, com vistas a que sejam atingidas suas finalidades primordiais.

Desta forma o formalismo investe-se na tarefa de indicar as fronteiras para o começo e o fim do processo. Neste contexto, observamos que o CPC de 2015 ampliou os limites da coisa julgada passando a incluir a questão prejudicial.

Cumpre assinalar que o advento do CPC de 2015 que inaugura o neoprocessualismo trazendo uma renovação dos princípios do direito processual, acentuando os poderes do juiz na relação jurídica processual, a ênfase para a autocomposição da lide pela mediação e conciliação e calcada na força normativa da Constituição Federal brasileira de 1988, além de tecer maior legitimação ao provimento judicial quando passa a exigir uma fundamentação jurídica mais detalhada das decisões judiciais.

Conclui-se que o processo civil brasileiro possui identidade própria que lhe são peculiares, não podendo o jurista deixar de considerar as nossas raízes, nossa evolução e nossas instituições no sentido de reafirmar o Estado de Direito e uma cidadania mais digna e atuante.

Enfim, o CPC de 2015 representa um importante passo e trouxe inúmeras novidades que renovaram as esperanças dos juristas e da sociedade brasileira principalmente por dar ênfase ao diálogo entre o juiz e as partes, prover uma prestação jurisdicional mais simples e mais uniforme, a ampliação da exigência da boa-fé objetiva e trazer o ideal da maior saneabilidade processual que possível e valorizar os julgamentos de mérito admitindo incidentes de resolução de demandas repetitivas, no objetivo de obter maior efetividade processual.


Referências:
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Enviado por GiseleLeite em 24/08/2015
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