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Que tempo é esse que vivenciamos juntos, como se estivéssemos numa mesma aeronave. O tempo medido em graus e degraus e captado por nossa percepção e atuação, nos parece sempre ser primeiro e provisório.
Numa saga edílica a procura por respostas que nem os ventos nos trazem e nem sempre a história nos indica.Roland Barthes resumiu de certa feita: "O contemporâneo é intempestivo".
E, Nietzsche como filólogo que trabalhou com textos gregos, escreveu "Considerações intempestivas" com as quais se quer acertar as contas com o seu tempo, tomando posição em relação ao presente. Posicionando-se no agora.
E, logo no início de sua segunda "Consideração" procurou entender um mal inconveniente e um defeito que é justamente a sua cultura histórica, porque somos todos devorados pela febre da história[1].
A exigência de atualidade, a sua contemporaneidade em relação ao presente, numa desconexão e dissociação. Pertencer verdadeiramente ao seu tempo, é ser verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões. Mas é exatamente através desse deslocamento e anacronismo que se é capaz de perceber e apreender o seu tempo.
A não-coincidência, essa discronia não significa, naturalmente, que contemporâneo seja aquele que vive num outro tempo, um nostálgico que se sente em casa mais na Atenas de Péricles, ou na Paris de Robespierre e do Marquês de Sade do que na cidade e no tempo em que lhe foi dado viver.
Um homem inteligente e ligeiramente lúcido pode odiar o seu tempo, mas sabe, em todo caso, que lhe pertence irrevogavelmente, e sabe que não poderá fugir ao seu tempo.
A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, simultaneamente, dele toma distância; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo[2].
Aquele que coincidem muito plenamente com a época que tem todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela.
Como deveríamos pagar a contemporaneidade? Com a vida, com o olhar fixos na tecnologia, nas conquistas humanas, nas vilanias e, sobretudo, nas manifestações que sintetizaram todo espólio legado dos séculos XIX e XX.
O contemporâneo é essa fratura, é aquilo que impede o tempo de compor-se, e, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a quebra.
Há um certo paralelismo entre o tempo e a geografia das vértebras humanas, há uma correlação natural entre a criatura e o seu tempo, e as vértebras do século constituem um dos temas essenciais; posto que sustentem o corpo e permitem a respiração (a vida).
O outro grande tema é uma imagem da contemporaneidade é das vértebras quebradas do século e da sutura, que é obra do indivíduo, do humano. Trata-se de tarefa é inexecutável e, ou mesmo, tempo paradoxal.
Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros.
Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente.
Numa primeira resposta nos é sugerida justamente pela neurofisiologia da visão. O que acontece quando nos encontramos num ambiente privado de luz, ou quando fechamos os olhos? O que é escuro que então vemos?
Os neurofisiologistas nos dizem que a ausência de luz desinibe uma série de células periféricas da retina[3], ditas precisamente off-cells, que entram em atividade e produzem aquela espécie particular de visão que chamamos o escuro.
O escuro não é, portanto, um conceito privativo, a simples ausência da luz, algo como uma não-visão, mas o resultado da atividade das off-cells, um produto da nossa retina.
Isso significa, se voltarmos agora à nossa tese sobre o escuro da contemporaneidade, que perceber esse escuro não é um forma de inércia ou de passividade, mas implica em positiva atividade e habilidade particular, que no caso, equivalem a neutralizar as luzes que provêm da época para descobrir as suas trevas, o seu escuro especial, que não é, no entanto, separável daquelas luzes.
Pode-se afirmar que é contemporâneo apenas quem não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue entrever nessas a parte da sombra, a sua íntima obscuridade. Com isso, todavia, ainda não respondemos a nossa pergunta.
Por que afinal conseguir perceber as trevas que provêm da época que deveria nos interessar? Não é talvez o escuro uma experiência anônima e, por definição, impenetrável, algo que não está direcionado para nós e não pode, por isso, nos dizer respeito?
O contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta e singularmente a ele.
Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo. Perceber no universo seu infinito torna o escuro interesse a contemplação, e segundo os cientistas necessita de uma explicação.
A astrofísica contemporânea decifra o esse escuro e nos trazem a lume as galáxias mais remotas e a velocidade tão grande e expressiva que sua luz não consegue nos alcançar.
Aquilo que percebemos como escuro do céu é essa luz que viaja em velocíssima dinâmica até nós, e, no entanto, não nos pode alcançar, porque as galáxias das quais provém se distanciaram a uma velocidade superior àquela luz. Perceber o escuro do presente essa luz que procura nos alcançar e não pode fazê-lo, isso, em suma, significa ser contemporâneo.
É antes de tudo uma questão de coragem: porque significa ser capaz não apenas de manter fixo o olhar no escuro da época, mas também de perceber nesse escuro, uma luz que, dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós.
Ou ainda: ser pontual num compromisso ao qual se pode apenas faltar.
O presente de nossa contemporaneidade percebe-se que tem vértebras quebradas. O nosso tempo, o presente, não é, de fato, apenas o mais distante; não pode nem nenhum caso nos alcançar.
O dorso está fraturado e, nós nos mantemos exatamente no ponto da fratura. Por isso somos, apesar de tudo, contemporâneos a esse tempo. Compreendam bem que o compromisso que está em questão na contemporaneidade não tem lugar simplesmente no tempo cronológico: está além do tempo cronológico, algo que urge dentro deste e que o transforma.
E essa urgência é a intempestividade, o anacronismo que nos permite apreender o nosso tempo. De mesmo modo, reconhecer nas trevas do presente a luz que, sem nunca poder nos alcançar, está perenemente em viagem até nós.
Um bom exemplo dessa especial experiência do tempo que reflete a definição de contemporaneidade é a moda. Aquilo que define a moda é que ela introduz no tempo uma peculiar descontinuidade, que o divide segundo a sua atualidade ou inatualidade, o seu estar ou o seu “não-estar-mais-na moda” [4] (na moda e não simplesmente da moda, que se refere somente às coisas).
O “agora da moda” não é identificável através de nenhum relógio ou cronômetro. Esse agora é talvez o momento em que o estilista concebe o traço, a nuance que definirá a nova maneira de vestir? Ou aquele em que a confia ao desenhista e em seguida à alfaiataria que confecciona o protótipo?
Ou, ainda, o momento do desfile, que a veste é usada pelas únicas pessoas que estão sempre e apenas na moda, as manequins, que, no entanto, exatamente por isso, nela jamais estão verdadeiramente?
Já que, em última instância, o “estar na moda” da maneira ou jeito dependerá do fato de que as pessoas de carne e osso, as diferentes das manequins (essas vítimas sacrificiais de um deus sem rosto) o reconheçam como tal e dela façam a própria veste.
O tempo da moda está constitutivamente adiantado a si mesmo, e exatamente por isso, também sempre atrasado, tem sempre uma forma de um limiar inapreensível entre um “ainda não” e um "não mais".
É provável que, como sugerem os teólogos, isso dependa do fato de que a moda, ao menos na nossa cultura, é uma assinatura teológica da veste, que deriva do fato que a primeira veste foi confeccionada por Adão e Eva depois do pecado original, na forma de tapa-sexo entrelaçado com folhas de figo.
Em verdade, e segundo a Bíblia as vestes que atualmente usamos derivam não de tapa-sexo de origem vegetal, mas das tunicae pelliceae[5], vestes feitas de pele animal que Deus ofereceu como símbolo tangível do pecado e da morte, nossos progenitores no momento em que os expulsa do paraíso.
Em todo caso, qualquer seja a razão disso, o "agora", o kairos da moda é inapreensível: a frase "eu estou neste instante na moda" é contraditória, porque no instante em que o sujeito a pronuncia, ele já está fora de moda.
Por isso “estar na moda”, como a contemporaneidade, comporta um certo agio, uma certa dissociação, em que a sua atualidade inclui dentro de si uma pequena parte do seu fora, um matriz de démodé. Agio do latim significa a vontade, e, dependendo do contexto pode indicar a ideia de intervalo, espaço livre.
Mas a temporalidade da moda tem um outro caráter que a aparenta à contemporaneidade. No gesto mesmo no qual o seu presente divide o tempo segundo um "não mais" e um "ainda não", esta institui com esses "outros tempos" certamente com o passado e, talvez, também com o futuro uma relação particular.
Isto é, ela pode citar, e, desse modo, reatualizar qualquer momento do passado (os anos vinte, setenta mas também a moda imperial ou neoclássica). Ou seja, esta pode colocar em relação aquilo que inexoravelmente dividiu, reclamar, re-evocar e revitalizar aquilo que tinha até mesmo declarado morto ou extinto.
Essa especial relação com o passado tem também outro aspecto.
Realmente, a contemporaneidade se escreve no presente assinalando-o antes de tudo como arcaico, e somente quem percebe no mais moderno e recente os índices e as assinaturas do arcaico podem dele ser contemporâneo.
Arcaico significando algo próximo da arké, isto é, da origem. Mas a origem não está situada apenas num passado cronológico: esta é contemporânea ao devir histórico e não cessa de operar neste, como o embrião continua agir nos tecidos do organismo maduro e a criança na vida psíquica do adulto.
A distância e, ao mesmo tempo, a proximidade - que define a contemporaneidade tem o seu fundamento nessa proximidade com a origem que em nenhum ponto pulsa com mais força do que no presente.
Quem viu pela primeira vez, ao chegar pelo mar num amanhecer, os arranha-céus de Nova York subitamente percebeu essa facies arcaicas do presente, essa contiguidade com a ruína que as imagens atemporais do onze de setembro deixaram evidente para todos nós.
Os historiadores da literatura e da arte sabem que entre o arcaico e o moderno há um compromisso secreto, e não tanto porque as formas mais arcaicas parecem exercitar sobre o presente um fascínio particular quanto porque a chave do moderno está escondida no imemorial e no pré-histórico.
Desta forma, o mundo antigo no seu fim se volta, para se reencontrar, aos primórdios: a vanguarda, que se extraviou no tempo, segue o primitivo e o arcaico.
É nesse sentido que se pode dizer que a via de acesso ao presente tem necessariamente a forma de uma arqueologia que não regride, no entanto, a um passado remoto, mas a tudo aquilo que no presente não podemos em nenhum caso viver, e, restando não vivido é incessantemente relançado para a origem, sem jamais poder alcançá-la.
Já que o presente não é outra coisa senão a parte de não-vivido em todo vivido, e aquilo que impede o acesso ao presente é precisamente a massa daquilo que, por alguma razão (o seu caráter traumático, a sua extrema proximidade), neste não conseguimos viver.
A atenção dirigida a esse não-vivido é a vida do contemporâneo. E ser contemporâneo significa, nesse sentido, voltar a um presente em que jamais estivemos.
Aqueles que procuraram pensar a contemporaneidade puderam fazê-lo apenas com a condição de cindi-la em mais tempos, de introduzir no tempo uma essencial desomogeneidade.
Quem pode dizer: "o meu tempo" divide o tempo, escreve neste uma censura e uma descontinuidade; e, no entanto, exatamente através dessa censura, dessa interposição do presente na homogeneidade inerte do tempo linear.
O contemporâneo coloca em ação uma relação especial entre os tempos.
Como vimos, é o contemporâneo que fraturou as vértebras de seu tempo (ou ainda, quem percebeu a falha ou o ponto de quebra), ele faz dessa fratura um lugar de compromisso ou de encontro ou de gerações.
Nesse sentido, que o gesto de Paulo, no ponto em que experimenta e anuncia aos seus irmãos aquela contemporaneidade por excelência que é o tempo messiânico, o ser contemporâneo do messias, que ele chama precisamente de "tempo-de-agora".
Não apenas esse tempo é cronologicamente indeterminado, o retorno do Cristo, a parusia[6], que assinala o fim desse tempo, é certo e próximo, mas incalculável.
Mas ele tem a capacidade singular de colocar em relação consigo mesmo todo instante do passado, de fazer de todo momento ou episódio da história bíblica uma profecia ou uma prefiguração (typos, figura é o termo que Paulo predica) do presente (assim, Adão, através de quem a humanidade recebeu a morte e o pecado), é "tipo", ou figura, do messias, que leva aos homens a redenção e a vida.
Isso significa que o contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo o escuro do presente, nele apreende a resoluta luz.
É também aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com os outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de "citá-la" segundo uma necessidade que não provém de maneira nenhuma do seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode responder.
É como se aquela invisível luz, que é o escuro do presente, projetasse a sua sombra sobre o passado, a este, tocado por esse facho de sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas de agora.
É algo do gênero que devia ter em mente Michel Foucault quando escrevia que as suas perquirições históricas sobre o passado são apenas a sobra trazida pela sua interrogação teórica do presente.
E, Walter Bejamin, quando escrevia que o índice histórico contido nas imagens do passado mostra que estas alcançarão sua legibilidade somente num determinado momento da sua história. É da nossa capacidade de dar ouvidos a essa exigência e àquela sombra, de ser contemporâneo não apenas nosso século e do "agora", mas também das suas figuras nos textos e nos documentos do passado, que dependerão o êxito ou o insucesso do nosso seminário.
[1] Nietzsche no melhor de seu tom profético alertava que todo grande acontecimento histórico era precedido de algum entorpecimento dos sentidos, cegueira, surdez, irracionalidade, ou seja, uma grande obra de arte, uma vitória militar ou a liberdade de um povo. Essa tal capacidade de iludir-se, de acreditar incondicionalmente em algo que seja justo e perfeito, essa febre historicista destrói, no seu afã a tudo conhecer e a tudo dissecar. Também chamou de febre histórica ou historicista (In: NIETZSCHE, F. II Consideração intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da história para a vida. In: Escritos sobre Historia. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2005.).
[2] Delay é termo técnico usado para designar o retardo de sinais em circuitos eletrotécnicos, geralmente o atraso de som nas transmissões via satélite.
[3] A visão é um dos cinco sentidos que permite aos seres vivos dotados de adequados órgãos, aprimorarem a percepção do mundo exterior. No entanto, os neurocientistas consideram que a visão engloba dois sentidos, que são diferentes os receptores responsáveis pela percepção da core (baseada na estimativa da frequência dos fótons de luz) e os cones que percebem a luminosidade, ou seja, a estimativa de número de fótons de luz incidente, os bastonetes. O olho é a câmera deste sistema sensorial e é no seu interior que está a retina, composta de cones e bastonetes, onde se realizam os primeiros passos do processo perceptivo. A retina transmite os dados visuais, através do nervo óptico e do núcleo geniculado lateral, para o córtex cerebral. No cérebro tem então início o processo de análise e interpretação que nos permite reconstruir as distâncias, cores, movimentos e formas dos objetos que nos rodeiam.
[4] Costuma-se comentar que em moda tudo volta. As tendências aparecem e desaparecem num movimento pendular e veloz. Fazendo releituras do que foi usado, trazendo heranças estéticas de épocas remotas que se misturam com as atuais. O historicismo que entrou em moda no final do século XVIII e conheceu o auge no século XIX.
[5] A túnica de pele animal representa a mortalidade que vem do pecado.
[6] Parúsia vem do grego e significa presença, é termo usualmente empregado na acepção religiosa no sentido de volta gloriosa de Jesus Cristo, no fim dos tempos, para presidir o Juízo Final, conforme crêem as várias religiões cristãs e muçulmanas, inclusive as sincréticas e as esotéricas.
GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 05/03/2014
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