"O conhecimento é o mais potente dos afetos: somente ele é capaz de induzir o ser humano a modificar sua realidade." Friedrich Nietzsche (1844?1900).
 

Professora Gisele Leite

Diálogos jurídicos & poéticos

Textos


Sobre a escravidão: da filosofia até a história.




A escravidão entre os filósofos tem a justificação por ser útil não só ao senhor como também ao escravo.

Por esse motivo, Aristóteles considerava a escravidão como uma das divisões naturais da sociedade, semelhante à divisão entre homem e mulher: como há quem é naturalmente disposto ao comando e quem naturalmente disposto a ser mandado, é graças à união que ambos podem sobreviver.

Citando Aristóteles, São Tomás de Aquino enunciou: “Que um homem seja escravo e não outro é coisa que, de um ponto de vista absoluto, não tem razão natural, mas só razão de utilidade, porquanto é útil ao escravo ser governado por um homem mais prudente, e é útil a este último ser ajudado pelo escravo." ( S. Th., II, 2, q., 47, a, 3, ad2).

Hegel também comentou sobre a escravidão quando abordou as figuras servo-senhor em Fenomenologia do Espírito que obedecem ao mesmo espírito de justificação. O senhor é a autoconsciência do escravo e o escravo é o instrumento que elabora os objetos, a fim de que o senhor os usufrua, e, desse modo, ele próprio participe, por mediação, da fruição do objeto, assim como, por mediação, o senhor participação da produção dele.

Por outro lado, o cristianismo tornara insignificante a escravidão e, em certo sentido, a sua condenação. Uma vez que tanto o judeu quanto o grego, tanto o servo quanto o homem livre, tanto o homem quanto a mulher "fazem uma só coisa em Jesus Cristo" não é importante ser escravo ou livre, mas ser "liberto do Senhor" (Cor., VII, 21-22).

No mundo antigo só os estoicos condenaram sem reservas a escravidão: "Só o sábio é livre, os maus são escravos: já que a liberdade não é senão autodeterminação e a escravidão é a ausência de autodeterminação. Há, então, outra escravidão é a ausência de autodeterminação, bem como a sujeição ou na compra e na sujeição, à qual se contrapõe a senhoria, que é também maléfica". Ao lado da negação da negação da escravidão como instituição social, os estoicos fizeram prevalecer o conceito de escravidão como estado ou situação moral.

Apontava Sêneca: "São escravos. Sim, mas também homens. Sim, são também companheiros de habitação, e amigos humildes, e, sim, também companheiros de escravidão, se refletires que uns e outros estão sujeitos aos caprichos da sorte."

No mundo moderno, foi a filosofia iluminista que mostrou a noção de escravidão como absurda e repugnante: sua defesa da noção de igualdade significa a condenação da escravidão em todas as suas formas e graus.(Voltaire, Dictionnaire Philosophique, 1764, artigo Égalité).

Escravo segundo Hegel dentro de sua “dialética do senhor e do escravo”, apontava a transformação da natureza e a si mesmo por seu trabalho, o escravo acede à liberdade. Nietzsche utilizou a expressão "moral dos escravos"1 para designar a moral dos fracos que perverteram os valores originais pretendendo passar sua impotência por uma virtude.

Alexandre Kojève2 aduz: "O senhor força o escravo a trabalhar, o escravo torna-se senhor da natureza". “Ora, ele só se tornou escravo do senhor porque - à primeira vista - era escravo da natureza, ao se identificar com ela e ao submeter-se às suas leis pela aceitação do instinto de conservação."

Na abordagem de Hegel, o senhor e o escravo não representam seres reais, surgem apenas como alegorias para representar a dialética do reconhecimento da consciência-de-si que, é sinônimo de realidade humana.

Outro pensador que abordou a relação senhor e escravo fora Lacan que considerava dois modos de escravidão. O primeiro modo parte integrante do discurso do senhor, tomado em parte de Hegel. O segundo consiste na generalização protelarizada do primeiro em virtude do impacto do discurso capitalista.

E, ainda há um terceiro modo, advindo à colonização escravagista racializada (CER) que é expressão proposta por Jeanne Wilford para caracterizar os modos de produção e de relações que criaram o tipo de relação social perpetuado nas Caraíbas.

O que separa o senhor do escravo segundo Hegel: no combate à morte, o senhor arriscou tudo. Quanto ao escravo, ele escolheu a vida com preço de sua liberdade. Este reconhece assim o senhor sem ser reconhecido por ele.

Esta dialética do reconhecimento alimentou todo o pensamento de Lacan em sua primeira fase, começando pelo estágio do espelho. Mas quando a problemática do gozo veio alimentar sua pesquisa, Lacan interpretou a fábula de forma diversa de Hegel.

Nisto Lacan seguiu Freud apoiando-se na pulsão de morte3 . E, prossegue seguindo Freud quando correlacionou a repressão e o gozo. O gozo próprio ao sujeito é um gozo que ele mesmo desconhece. Aqui ele fez a união de Freud e Marx: o sintoma subjetivo, assim como social, é o resultado deste gozo ignorado. Mas se o gozo primeiro não for outro que a vida, pois sem ela não há gozo, optando pela vida, o escravo escolheu o gozo.

O senhor, por sua vez, renuncia a isto e, é esta renúncia que garante seu lugar de onde ele apenas recupera a "mais-valia", o máximo de prazer tirado do que produz o escravo. São os significantes deste máximo de gozo que são proibidos ao saber reprimido, ficando tão ignorados do senhor quanto do escravo.

Lacan acrescentou a Hegel, retirando desta dialética a matriz mesma do discurso. Fez desta a estrutura de qualquer relação social organizada pela dialética da linguagem incluindo a função do gozo.

De fato, não é tanto de comunicação que se encarrega o discurso mas da regulação de um gozo articulado aos sistemas identificatórios. O fato de inscrever senhor e escravo como peças do discurso faz com que fiquem indissoluvelmente ligados nesta dupla dimensão.

No discurso do senhor, como nos é proposto por Lacan, o escravo mantém-se no lugar ocupado pelo saber. Ao contrário do senhor que não sabe, o escravo, ele, sabe. Ele possui em primeiro lugar uma competência – a mãe de todos os saberes.

Mas o que o escravo sabe privilegiadamente recai sobre alguma coisa que escapa ao senhor: seu próprio desejo de sujeito. O saber está assim voltado diretamente para o desejo do outro, confirmando o escravo como desejante, o que o salva de ficar totalmente subordinado ao gozo apesar de sua escolha. Ele pode participar, tanto quanto o senhor, da subjetividade dividida da forma como esta é oferecida no discurso: como verdade, sem ligação com o saber.

Lacan chamou a atenção para reversibilidade dos lugares de senhor e escravo na Antiguidade. De fato, o essencial da população de escravos era composto de prisioneiros de guerra. Assim, os acasos das batalhas podiam perfeitamente fazer de um senhor de hoje o escravo de amanhã. Esta possível reciprocidade tinha uma reversibilidade mas não implica na reciprocidade, uma vez que o escravo reconhece o senhor sem ser por este reconhecido.

No escravo moderno constatamos de início que a competência no discurso está dissociada da palavra dada, logo, perdeu sua referência quanto à verdade. Seu único objetivo é financeiro. O salário justifica um fazer em que o desejo se exclui para dar lugar a um sucedâneo de necessidade. É deste salário que o lucro será retirado sem constituir propriamente um desejo do senhor. O gozo é livre, separado do corpo, sem necessidade de nenhum laço simbólico.

O sujeito do discurso moderno só conhece a alteridade do próximo, conforme Lacan afirmou que este é a iminência intolerável do gozo. A imagem do outro não pode passar a símbolo deste intolerável do real.

Aliás, todos os trabalhadores, todos os empregados estão na posição de escravos. “Empregados” é o termo usado por Hannah Arendt para descrevê-los, mas Lacan reconhece desde o discurso maternal como chamado a, substituindo qualquer metáfora paternal.

O novo senhor funciona seguindo o caminho da ciência, excluindo o mito. Não necessita mais da relação simbólica para fornecer origem e história. Foi certamente o pressentimento disto que levou Freud construir o mito - o do Pai gozador da horda primitiva4 .
Esta construção seria uma forma de dizer: "Não tomemos mais o simbólico como ponto de apoio para nosso pensamento mas o real do gozo pois que é por ele que se deverá responder.

Na Ética, Lacan lançou a seguinte questão: " E o que me é mais próximo do que este coração em mim mesmo que é o do meu gozo de que não ouso aproximar-me?" “Pois desde que me aproximo dele, temos aí o real sentido do Mal-estar na civilização, surge esta insondável agressividade diante da qual recuo...".

“O homem está, apesar de tudo, mais próximo dele mesmo no seu ser do que no espelho." Convém completar esta afirmação com a recomendação de Freud, que já nos havia prevenido de que o psiquismo considera qualquer inimigo como exterior, mesmo e principalmente se ele for interno, no mais íntimo. Podemos assim afirmar que qualquer Outro é antes de tudo o de nosso gozo mais privado, o que escapa ao simbólico e do qual o objeto estabelece o limite, a demarcação extrema do "gozar-se da animalidade".

Em 1865 foi promulgado na França o Código Negro5 que legislava sobre a prática da escravidão nas ilhas francesas da América. Ele apontava claramente para o surgimento de alguma coisa extremamente moderna conforme esclarece Hannah Arendt, o "princípio da vida como bem soberano", em que se deve entender "bem" antes em seu sentido jurídico do que moral.

No Brasil, a Lei Áurea que foi a Lei Imperial 3.353 sancionada em 13 de maio de 1888 extinguiu a escravidão no Brasil. Tendo sido precedida pela lei 2.040 (Lei do Ventre Livre), de 1871, que libertou todas as crianças nascidas de pais escravos, e pela Lei 3.270 (Lei Saraiva-Cotejipe) de 1885 que regulava a extinção gradual do trabalho escravo.

A lei fora sancionada exatamente em 13 de maio de 1888 que era dia comemorativo do nascimento de Dom João VI, foi assinada por sua bisneta a Dona Isabel, princesa imperial do Brasil, e pelo ministro da Agricultura da época, conselheiro Rodrigo Augusto da Silva. Dona Isabel sancionou a Lei Áurea, na sua terceira e última regência, estando o Imperador Dom Pedro II do Brasil em viagem ao exterior. Foi assinada a Lei libertadora no Paço Imperial por Dona Isabel e pelo ministro Rodrigo Augusto da Silva às três horas da tarde6 .

Em verdade, o processo de abolição da escravatura no Brasil fora gradual e começara com a Lei Eusébio de Queirós de 1850 e depois com a do Ventre Livre em 1871, e com a Lei dos Sexagenários de 1885.

Infelizmente, o Brasil foi o último país independente do continente americano a abolir definitivamente a escravatura. O último país do mundo a abolir a escravidão foi a Mauritânia, em -9 de novembro de 1981, pelo decreto 81.234.

A Lei alcunhada de Áurea advém do latim aurum, que significa ouro, feita de ouro, brilhante, magnífico, nobre ou de muito valor. O Decreto 155B, de 14 de janeiro de 1890 estabeleceu como feriado nacional a data de 13 de maio, declarando ser consagrado à comemoração da fraternidade dos brasileiros. Tal feriado existiu até 15/12/1930 quando Getúlio Vargas o revogou através do decreto 19.488.

Por longo tempo a Lei Áurea foi vista como generosidade de Dona Isabel que seguia os propósitos abolicionistas de seu pai D. Pedro II e, também como resultado de longa campanha abolicionista, sendo bastante comemorada pela sociedade brasileira.

Porém pesquisas recentes na historiografia brasileira aponta outra versão sobre a referida abolição da escravatura, apontando que teria sido fruto de um estado semi-insurrecional que ameaçava a ordem imperial e escravista.

O que acentua o caráter ativista das populações escravizadas. E afirmam que as rebeliões de escravos que estavam se generalizando no país, na época da abolição, gerando quilombos por toda a parte, após a abolição do açoite, e também, por causa da cumplicidade do exército brasileiro e da polícia paulista que não iam mais fazer a recaptura dos escravos fugidos, tornaram, então, inviável política e economicamente, a escravidão.

Tais teses capitaneadas Silvia H. Lara e Sidney Chalhoub procuram com essa tese minimizar 7 o papel de redentora de Dona Isabel e dos clubes abolicionistas, a imprensa e a maçonaria brasileira tiveram na abolição da escravatura no Brasil 8.

Atualmente, apesar de ter sido a escravidão abolida em quase todo mundo, registra-se ainda sua existência de forma legalmente admitida no Sudão, e de forma ilegal em muitos países, principalmente na África e em algumas regiões da Ásia.

Em termos capitalistas 9 , a escravidão é pouco produtiva, pois o escravo não tem propriedade e não é estimulado a produzir, posto que não obtenha nenhum bem-estar material para si mesmo.

Segundo a National Geographic existem mais escravos atualmente do que o total de escravos que existiram durante quatro séculos que fizeram parte do tráfico transatlântico. Embora haja as denúncias de trabalho escravo no Brasil e tantos outros países, ainda não se suprimiu essa prática da humanidade.

Enfim, a escravidão conforme já aduziu Aldous Huxley, "A ditadura perfeita terá as aparências da democracia, uma prisão sem muros na qual os prisioneiros não sonharão sequer com a fuga. Um sistema de escravatura onde, graças ao consumo e ao divertimento, os escravos terão amor à sua escravidão".

Que será conseguiremos obter a abolição dessa escravidão invisível, porém tão papável?

Notas de Rodapé.

1. A moral de senhores que se refere aos homens pertencentes a nobreza cavalheiresco-aristocrática e que envolve uma atividade robusta, livre e contente. Já a moral de escravos cujos membros são homens do ressentimento. Essa moral teve surgimento com o sacerdote, mais especificamente com o sacerdote judeu. Que é contra a guerra, mas é ao mesmo tempo terrível e vingativo. Seu ódio toma proporções monstruosas e sinistras, torna-se a coisa mais espiritual e venenosa. Mas, o ressentimento não se detém apenas no ódio, pois sendo impotente para agir, acaba por criar um mundo, que é a negação do mundo existente, da mesma forma que o nobre afirma.

2. Alexandre Kojève (1902-1968)nasceu russo mas se naturalizou francês, foi filósofo e estadista e realizou seminários filosóficos que tiveram grande influência sobre a filosofia francesa do século XX. Principalmente por conta de sua integração hegeliana. Foi amigo próximo e manteve diálogo filosófico com Leo Strauss.

3. Pulsão de morte, em alemão todestrieb. Também conhecida como Tânato, é termo introduzido pelo psicanalista austríaco Sigmund Freud em 1920. Em sua teoria das pulsões, Freud descreveu duas pulsões antagônicas: eros que é uma pulsão sexual com tendência à preservação da vida, e a pulsão de morte (Tânato) que levaria à segregação de tudo o que é vivo, e se dirige à destruição.
Ambas as pulsões não agem isoladamente, estão sempre trabalhando em conjunto segundo o princípio da conservação da vida. No ato de se alimentar, é necessário que se destrua o alimento antes de ingeri-lo. Aí, está presente o elemento agressivo, de segregação, e este se articula à primeira pulsão, como necessária contrapartida na função geral de conservação.

4. A sociedade contemporânea acena viver o mito do Totem e Tabu descrito por Freud às avessas; o desmoronamento da lei simbólica deixa aberto o caminho para o retorno do cadáver vivificado do pai morto, o Urvater, figuração do pai real, como pai gozador da horda primitiva, tirânico, abusador e assassino, que é chamado por Lacan de pai orangotango.

5. O crescimento do império açucareiro francês, nos tempos de Luís XIV, que tinha a ilha de Haiti com base, e os desmandos praticados pelos senhores e pelos traficantes, fez com que seu afamado ministro Colbert publicasse o Código Negro, que com seus sessenta artigos vieram a ser a verdadeira e única constituição da escravidão. Em seu terrível art. 38 assombrava os escravos com a decepação das orelhas, a marcação em brasa da flor de lis nas costas do cativo recapturado e, com a morte no caso de uma terceira tentativa de fuga. Tal Código fora copiado pelos espanhóis em 1783 e depois pelos ingleses.

6. Convém lembrar que no final do século XIX, a escravidão tornara-se atividade econômica inviável. A proibição do tráfico negreiro internacional criou grave limitação à mão de obra escrava, dificultando assim a obtenção de novas peças e encareceu bastante o escravo no mercado. Apesar da ampliação do tráfico dentro da província, o uso de escravos não conseguia suprir a enorme demanda gerada pela economia cafeeira. Não por acaso, verificamos surgir a mão de obra dos imigrantes que se transformara em opção mais atrativa.

7. Desta forma ao abolir a escravidão, a Princesa Isabel somente executava o “tiro de misericórdia” em uma relação de trabalho inviável. No entanto, ao não dispor nenhum tipo de inserção dos negros à sociedade, a Lei Áurea se mostrou limitada ao manter negros libertos na mesma condição de dependência e subordinação. Em várias situações, os salários irrisórios impunham uma condição de vida tão ou até mais penosa do que aqueles trabalhadores livres.

8. Na virada do século XIX verificamos que os ex-escravos se deslocaram para os grandes centros urbanos em busca de novas oportunidades laborais. No Rio de Janeiro particularmente ocuparam desordenadamente antigos casarões e cortiços velhos que se transformaram em verdadeiros antros de insalubridade e graves epidemias. E, com o passar do tempo, vários negros libertos e seus descendentes vivenciaram um processo de exclusão que originou as primeiras favelas na capital. Que só fora amenizado com a criação do sistema de cotas nas universidades públicas.

9. No Brasil o primeiro tipo de escravidão foi dos gentios da terra ou “negros da terra”, ou seja, os indígenas especialmente os da Capitania de São Paulo onde seus moradores pobres não tinham condições de adquirir escravos africanos, nos primeiros dois séculos de colonização. Até que a escravização dos índios fora proibida por Marquês de Pombal, principalmente por serem pouco aptos ao trabalho. A escravidão africana brasileira teve início com a produção canavieira na primeira metade do século XVI e os principais portos de desembarque eram: Rio de janeiro, Bahia, Recife e São Luís do Maranhão.
GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 15/05/2013
Alterado em 16/05/2013
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