Peculiaridades da ação penal pública incondicionada
Assim, de certa forma, o diploma penal processual brasileiro desconhece a incapacidade relativa(...)
O próprio teor do § 1odo art. 100 do CP já evidencia que existem duas espécies de ação penal pública: a plena ou incondicionada e a condicionada ou semi-pública. A primeira é a promovida pelo Ministério Público sem a interferência de quem quer que seja, sendo irrelevante a vontade contrária do ofendido. Assim, diante de uma lesão corporal grave, o Delegado de Polícia instaurará o inquérito e, o Promotor de Justiça promoverá a ação penal.
Já em certos casos, a lei condiciona a propositura da ação a uma manifestação de vontade do ofendido (representação) ou do Ministro da Justiça (requisição).
No crime de furto de coisa comum previsto no art.156 do CP ou no crime contra honra do Presidente da República estrangeiro (art.141, I do CP) a ação penal promovida pelo MP depende da manifestação de vontade do ofendido, ou de quem legalmente o represente, ou, no segundo exemplo, de requisição do Ministro da Justiça.
Cinco princípios norteiam a ação penal incondicionada: o primeiro é o da oficialidade que propugna que a repressão às infrações penais não constitui apenas uma necessidade indeclinável como também um fim essencial do Estado, eis o porquê que este detém o monopólio do direito concreto de punir.
Quando se comete uma infração penal surge a pretensão punitiva do Estado, isto é, aquele direito abstrato que o Estado tem de punir se transforma em um direito concreto de punir. A ação penal é o instrumento para fazer atuar o Direito Penal objetivo e pertence ao Estado que é representado pelos órgãos do Ministério Público.
Daí, dizer-se que o MP tem o exercício da ação penal, mas esta não lhe pertence, e, sim ao Estado. Reside talvez aí o princípio da oficialidade, pois quem propõe a ação penal é o MP que é um órgão oficial do Estado.
Já o princípio da indisponibilidade, pertencendo em regra a ação penal ao Estado contendo raras exceções e, cabendo seu exercício ao MP, dela não pode o MP dispor. Não cabe, pois que os órgãos do MP possam desistir, transigir ou acordar, pouco importando o seu caráter de incondicionada ou condicionada. Desta forma, é claramente o art. 42 do CPP.
Tal princípio pode ser mitigado permitindo-se que o MP em certas situações possa desistir da ação penal, dando azo à extinção do processo sem julgamento do mérito. Assim em se tratando de infração de menor potencial ofensivo (contravenções e crimes apenados no máximo com um ano, não subordinados aos procedimentos especiais) conforme prevê o art. 76 da Lei 9.099/95, é possível a realização de transação entre acusador (MP) e o acusado.
Ainda que algumas vozes da doutrina se levantem contra o instituto da transação penal, onde há a exacerbada mitigação da punição sobre crimes considerados menores. Não se sabe até aonde, o arrefecimento do rigor da pena é realmente reeducador do agente infrator, e, se antes, não causa estímulo às reiteradas práticas, uma vez que invariavelmente tudo pode ser resolvido com uma mera pena restritiva de direitos, sem chegar nunca à gravidade de uma pena privativa de liberdade.
Mais tarde, em 2001, o art. 2o, da Lei 10.259 ampliou o referido conceito para aqueles ilícitos que não se sujeita à pena superior a dois anos, pouco importando se subordinada ou não a procedimento especial.
Paira ainda fervorosa discussão se de fato melhor atende aos interesses do Estado o princípio da legalidade ou da obrigatoriedade que impõe ao MP o dever de promover a ação penal. Ou ainda, se mais conveniente seria o princípio da oportunidade que lhe permite julgar a melhor ocasião para a propositura ou não da ação penal.
É o princípio da obrigatoriedade melhor expresso através da máxima: nec delicta maneant impunita (os delitos não podem ficar impunes).
Nos sistemas legais que permitem ao MP julgar a conveniência da propositura da ação penal, a razão de ser de tal faculdade reside no minima non curat praetor (o Estado não se preocupa com coisas mínimas). É assim, por exemplo, na Alemanha conforme os termos do § 153 do StPO, também em França conforme prevê o art. 41 do Code Procédure Penale.
Contudo, no sistema pátrio a rigidez do princípio da legalidade e obrigatoriedade foi abrandada pela transação penal prevista no art. 76 da Lei 9.099/95.
Baseados que o Direito é o mínimo ético no sábio dizer de Windscheid, o Direito Penal só deve proteger o mínimo desse mínimo (Luzon Cuesta, in Compendio de derecho penal).
Foi exatamente a doutrina da intervenção mínima que levou várias legislações como a Lei dos Juizados Especiais Criminais, nas hipóteses em que a lesão ao bem jurídico é insignificante como a que contempla as infrações de menor potencial ofensivo, ou seja, as chamadas infrações de bagatela, a melhor solução é absolvição ou o próprio arquivamento do inquérito ou termo circunstanciado. Nada favorece mais a criminalidade que a penalização de qualquer conduta insignificante, entendem alguns doutrinadores contemporâneos.
O princípio da indivisibilidade é aquele que se impõe tanto à ação penal pública como também à privada (art. 48 do CPP).
Evidentemente, se por outro lado, ao receber o relatório final e os autos do inquérito policial instaurado contra duas pessoas, e o Promotor não encontrar respaldo probatório em relação a uma delas, ou algumas delas, nada o impede de promover a ação penal em relação somente àqueles cuja responsabilidade estiver esclarecida. E, tão logo, surjam outras informações complementares quanto à responsabilidade dos demais agentes, se for o caso, far-se-á um aditamento à denúncia.
O mesmo pode suceder na ação privada. O prazo decadencial para oferecer queixa-crime começa a fluir a partir do conhecimento da participação ou da co-autoria no crime. Nada impedindo que haja um aditamento ou ofertar outra queixa.
O fato do Promotor não oferecer a denúncia tempestivamente não o impede de faze-lo mais tarde, mesmo porque não ocorre decadência quanto a esse dever. Ao consagrar-se a ação penal indivisível, significa que o MP não pode escolher contra qual deles deve a denúncia ser ofertada, sendo certo os indícios de autoria quanto a todas elas.
O princípio da intranscendência significa dizer que a ação em relação à pessoa a quem se imputa a prática da infração. Embora seja efeito da sentença penal condenatória transita em julgado tornar certa a obrigação de satisfazer o dano, somente na esfera cível é que poderá o interessado poderá pleiteá-la.
Na ação penal pública condicionada a representação (que é a manifestação de vontade do ofendido ou de quem legalmente o represente, no sentido de ser instaurado o processo contra seu ofensor). O art. 24, in fine, do CPP esclarece que poderá ser pelo ofendido ou quem legalmente o represente.
Deverá a representação conter as informações necessárias para possibilitar a devida apuração do fato (art.39, § 2o do CPP).A representação é dirigida aos destinatários da notitia criminis, ou seja, o juiz, a autoridade policial ou o órgão do MP.
O direito de representação também pode ser exercido por procurador da vítima ou de seu representante legal com poderes especiais, mediante declaração escrita ou oral conforme se prevê do art. 39, caput do CPP. Não é necessário que tal representação seja formulada por profissional dotado de capacidade postulatória.
A capacidade para realizar representação se atinge somente quando se completa dezoito anos. E se menor de 21 anos e maior de 18 anos, afirma o art. 34 do CPP que o direito de queixa pode ser exercido pelo referido menor, ou por seu representante legal, assim por analogia, também poderá exercer o direito de representação.
Tal entendimento poderá ser alterado tendo em vista que o Novo Código Civil Brasileiro (Lei 10.406/2002) alterou a maioridade para 18 anos completos. Assim, é inócua a previsão legal da dupla titularidade na referida faixa etária.
É plenamente pacífico que o prazo para vítima que possui menos de 18 anos na época do fato, só começa a correr a partir da data de seu décimo-oitavo aniversário. Pacificando a questão relativa aos prazos o STF editou a Súmula 594: ”Os direitos de queixa e de representação podem ser exercidos, independentemente, pelo ofendido ou por seu representante legal”.
Assim, de certa forma, o diploma penal processual brasileiro desconhece a incapacidade relativa, porquanto permitia ao menor exercer o direito de representação ou queixa sem que haja assistência do representante legal.Mesmo quando ocorra oposição do representante legal, ainda assim, poderá o menor exercer o direito de queixa ou de representação conforme prevê o art. 50, parágrafo único do CPP.
Consagra o art. 34 do CPP que sempre prevalecerá à vontade positiva no sentido de ser instaurada a instância penal. Tourinho Filho alega que em face do Novo Código Civil Brasileiro prever a maioridade a quem completar 18 anos, por óbvio, não mais se exige o representante legal.
Salvo na hipótese de doente mental ou de desenvolvimento mental retardado ou incompleto, dessa forma, por favor, esqueçam as normas dos arts. 15, 34, parágrafo único do art.50, 52, 54, 192, 262 e 564, III, c todos do CPP.
Se o menor não tiver representante legal poderá a representação ser feita por curador especial nomeado de ofício ou a requerimento do MP, ao juiz competente. Tal regra quanto à queixa ipso facto também se aplica à representação.
Cumpre salientar que a nomeação de curador especial pelo juiz, não cria para aquele a obrigação de fazer a representação, e sim de ponderar-lhe a conveniência de agir, se julgar oportuno.
O curador especial exerce uma representação legal sui generis, um verdadeiro substituto processual, pois age em nome próprio na defesa de interesse alheio.
Nos crimes contra os costumes a jurisprudência não acata a nulidade quando a representação é feita por tio da ofendida em crime de sedução. Tem-se percebido um sensível alargamento quanto à legitimação para realizar a representação, que pode ser feita por qualquer pessoa responsável pelo menos, quer por vínculo parental ou econômico.
Assim não havendo vontade em sentido contrário dos legítimos representantes legais, aceita-se a representação feita por tio, tia, avô, avó, e até mesmo por amásio da mãe, in loci, pelo menos em tese do pai do ofendido ou ofendida.
O art. 225 do CP cuida das pessoas realmente pobres, mas também inclui os da classe média, desde que as despesas do processo venham priva-los de recursos indispensáveis à sua manutenção ou família.
Também não se nega miserabilidade pelo fato de existir assistente de acusação em processos promovidos pelo MP. A miserabilidade pode ser provada até a sentença final e, por qualquer outro meio, inclusive pela notoriedade do fato e presunção tal, como ocorre com as domésticas.
No caso de morte ou ausência que corresponde à morte presumida, o direito de representação passará ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão. Embora Tourinho Filho não acredite que o curador do ausente possa concretizar a representação, e no mesmo sentido, também a companheira.
É possível a retratação da representação desde que realizada antes do oferecimento da denúncia conforme o art. 25 do CPP. A retratação é a do ofendido ou de quem legalmente o represente. Tal retratação equivale à renúncia da ação privada.
Note-se que o art. 107 do CP não exaure todas as causas extintivas da punibilidade ex vi o parágrafo único do art. 74 da Lei dos Juizados Especiais Criminais que também prevê que a composição de danos extingue a punibilidade.
Não é possível a retratação da representação após o oferecimento da renúncia. Por assemelhar a retratação à renúncia, devem os autos serem arquivados em face da ausência da representação o que condiciona o jus accusationis.
Desta forma, apesar de extremamente perigoso permite-se a retratação da retratação, houve arrestos do tribunal de Justiça paulista que expressamente a permitiram (RT 371:176, 338:78; 383:179; 390:294) em caso de ter-se verificado dentro do prazo decadencial.
Feita a representação à pessoa poderá definir juridicamente o fato de forma errônea, o que uma vez constatado pelo MP não impedirá a denúncia.
Bem salienta Ottorino Vannini que o objeto da representação é o fato que o ofendido ou seu representante legal relata e este não está obrigado a adequadamente defini-lo juridicamente.
O art. 38 do CPP estipula o prazo de seis meses para a representação que se inicia na data em que o ofendido, se capaz, ou se representante, vier a saber quem foi o autor do crime.
Em sede doutrinária, vige portanto, três critérios para fixação do marco inicial do prazo para representação:
a) a partir da data do fato;
b) a partir da data em que o ofendido ou seu representante legal teve ciência do fato;
c) a partir da data em que o ofendido ou seu representante, soube quem foi o autor do crime.
Tratando-se de representação, há somente dois critérios: a) a partir da data do fato, em se tratando de crime de imprensa; b) a partir da data em que a pessoa foi investida do direito de representação vier a saber quem foi o autor do crime, nos demais casos. O prazo é contado conforme o art. 10 do CP.
“Os direitos de queixa e de representação podem ser exercidos independentemente, pelo ofendido ou por seu representante legal”, é o que nos informa a Súmula 594 do STJ. Com o advento do novo codex civil cessada a menoridade aos 18 anos, não se concebe que o representante legal de uma pessoa plenamente capaz, salvo se a mesma for retardada ou portadora de grave doença mental que comprometa seu discernimento. E sem embargos fazemos alusão ao curador.
Quando morto o ofendido ou declarado judicialmente ausente também deverá ocorrer à representação dentro de igual prazo previsto no art. 24, primeiro parágrafo e art. 31 do CPC que se inicia quando o sucessor vier a saber quem foi o autor do crime.
As condições da ação penal, em rigor técnico, são também as mesmas atinentes ao processo civil. Além disso, há de se cogitar das condições de procedibilidade que são de duas ordens: a condições genéricas e as condições específicas.
Sendo que as primeiras sempre exigidas pouco importando o tipo de ação penal se pública ou privada. E as demais condições, exigidas apenas quando necessárias, ou seja, quando a lei penal ou processual penal consignar expressamente a exigência.
Por condições genéricas da ação penal entendemos a possibilidade jurídica do pedido e, está implícita no inciso I do art. 43 do CPP.
Quanto ao inciso II o art. 43 do CPP refere-se a matéria substancial, ao mérito.É claro que se extinta a punibilidade, não se pode instaurar contra o pretenso culpado, nenhum processo penal visando sua punição.
Uma vez desaparecida a relação jurídico-material, pode-se dizer que é juridicamente impossível e inviável se postular a condenação (conforme art. 107 do CP).
Legitimidade ad causa indica quem é parte legítima para poder promover a ação penal. Trata-se da pertinência subjetiva da ação na dicção de Buzaid. Apenas o titular do bem ou interesse lesado é que pode efetivamente exercer a ação penal.
Ordinariamente, somente ao Estado compete o direito de punir. Em certos casos, poucos, aliás, sem abrir mão de seu jus puniendi, o Estado apenas transfere ao particular o jus persequendi in judici, isto é, o direito de agir e acusar em juízo, que se refere ao caso da ação penal privada.
Assim, o ofendido ou seu representante legal é parte legítima ad causam extraordinária. Também se cogita em substituição processual, pois o ofendido faz em nome próprio a queixa-crime para defender um interesse do Estado (e, portanto, alheio).
Interesse de agir ou processual corresponde aquele de obter do Estado-juiz a tutela jurisdicional, ou seja, a aplicação da sanctio juris.Embora que segundo Tourinho Filho no processo penal não seja exigido explicitamente o interesse de agir que como condição de ação está ligada a idoneidade do pedido.
Quando se oferece a denúncia, deve esta estar acompanhada dos elementos razoavelmente idôneos que convençam o juiz sobre a seriedade do pedido. Não pode o promotor de justiça oferecer a denúncia sem apresentar os elementos de convicção de que houve o fato típico e de que o acusado foi o autor.
Ausentes quaisquer das condições genéricas, deve o juiz, consoante com o art. 43, I, II e III do CPP rejeitar a peça inicial da ação penal. Por condições específicas também chamadas de condições de procedibilidade, são: a representação, a entrada do agente território nacional (letras a, b do inc. II do art. 7o, do CP) bem como o parágrafo terceiro do art. 7o, do mesmo diploma legal; a requisição do Ministro da Justiça (quando exigida por lei); a autorização da Câmara dos Deputados por dois terços de seus membros pra instauração de processo criminal contra Presidente e Vice-Presidente da República e Ministros de Estado (art. 51, I da CF); a prévia licença da Câmara ou do Senado.
A Emenda Constitucional 35, de 2001 deu nova redação ao art. 53 da CF de sorte que, se um Deputado federal ou senador cometer qualquer crime com a ressalva de sua inviolabilidade das palavras, opiniões, e votos que operam a exclusão de ilicitude, o processo criminal poderá ser instaurado.
A denúncia ou queixa recebida pelo STF que será seguida de comunicação à Câmara ou Senado poderá ensejar a “sustação” do referido processo. Neste rol podemos incluir também a representação fiscal do Dec. 982/93, Lei 9.430/96; a representativa sobre crimes contra a ordem tributária definidos no art. 1o e 2o, da Lei 8.137/90 será encaminhada ao MP depois de proferida a decisão final na esfera administrativa, sobre a exigência do crédito tributário.
Referências
TOURINHO Filho, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 5a. edição, São Paulo, Saraiva, 2003.
MIRABETE, Julio Fabrini. Processo penal. 16 ed., São Paulo, Atlas, 2004.
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 10a. edição. São Paulo, Saraiva, 2003.
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 8a. edição, Editora Lumen Iuris, Rio de Janeiro, 2004.
Gisele Leite, professora universitária, articulista dos sites www.direito.com.br, www.mundojuridico.adv.br, www.estudando.com, co-editora do site www.jusvi.com.
GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 22/03/2007