"O conhecimento é o mais potente dos afetos: somente ele é capaz de induzir o ser humano a modificar sua realidade." Friedrich Nietzsche (1844?1900).
 

Professora Gisele Leite

Diálogos jurídicos & poéticos

Textos

Releitura do poder por Hannah Arendt







          







Uma peculiaríssima definição de poder que possui como marca característica a não-violência como elemento basilar.







Gisele Leite







Reversamente do que fora concebido por Max Weber por poder (como possibilidade de impor a própria vontade ao comportamento alheio), Arendt concebe-o como uma faculdade de alcançar um acordo quanto à ação comum no contexto da comunicação livre de violência. E talvez aí, bem similar a Habermas haja filosoficamente a valoração do diálogo.







Tanto um quanto o outro enxerga no poder um potencial que se atualiza em ações, mas cada um baseia-se num modelo de ação distinto. É muito trivial confundir poder como expressão de força. É a convivência humana pacífica que é o fator propiciador da ação conjunta verdadeira geratriz de poder. Na tão manjada acepção de: “A união faz a força”.







Assim Hannah Arendt vê em todo aquele que, por algum motivo, se isola e não participa da convivência humana, renuncia ao poder e se torna impotente, por maior que seja sua força e, por mais válidas que sejam suas razões.







Assim a geração do poder não é um trabalho, mas a conseqüência da ação conjunta dos homens, a qual propicia pelo discurso, a revelação de cada indivíduo em sua específica singularidade.







A não-violência proporciona o encontro dos homens pela palavra. E é necessária, pois na atividade humana da ação, não visa atingir determinado fim, mas a descoberta de uma meta comum que sirva como elemento aglutinador. Quando a palavra é usada tão-somente para atingir um fim específico, ela perde sua característica de revelação.







A não-violência é o motor essencial para a geração do poder advindo do agir conjunto. O poder para ser gerado exige a convivência, pois a violência significa a exclusão da interação /cooperação com os outros.







Daí, ser justificável que na experiência política os governantes não resistem à tentação de substituir o poder que está desaparecendo pela violência. E neste sentido, explicável a conduta do terrorismo no mundo.







O personagem que encarnou na prática a teoria de H. Arendt foi Mahatma Gandhi (a grande alma).A não-violência ocupou papel central no cenário político vivido por Gandhi e, foi definida por uma palavra em sânscrito que é a base da busca da verdade. Ele identificava que a busca da verdade é vã, a menos que apoiada no ahimisa.







Desta forma, resistir e atacar um sistema é diferente, pois resistir e atacar a si próprio. Pois somos todos da mesma substância, e filhos do mesmo criador ou acaso, e, portanto, os poderes divinos em nós são infinitos.







Ao menos prezar um único ser humano é desprezar aqueles poderes e, desta forma pode não apenas prejudicar aquele ser, mas também o mundo inteiro.







Gandhi criou um neologismo em sânscrito unindo as palavras satya (verdade) e agraha (estar conectado) para definir sua doutrina política. Explicitou que a ahimisa é a forma de ação da satyagraha (da busca da verdade) e que esta se diferencia em muito da resistência passiva.







A única força é a da verdade, assim o significado de satyagraha é literalmente agarrar-me-á verdade, cuja força vem da alma ou espírito.







Justifica-se a exclusão da violência, pois o homem não é capaz de punir conhecendo a força absoluta da verdade. A finalidade da satyagraha é a conquista da libertação tanto coletiva, como individual.







O vocábulo utilizado por Gandhi para expressar tal libertação é swaraj e possui conotação espiritual, significando a liberdade da ilusão, dos medos e da ignorância implicando num autoconhecimento e num domínio de si próprio. E Gandhi aplica tal idéia de libertação ao âmbito político.







Gandhi como idealizador da desobediência civil na Índia liderou a Marcha do Sal ou do Dandi cujo objetivo era protestar contra a taxa que pesava sobre a coleta do sal. E o sal fora escolhido por representar um primitivo artigo e de primeira necessidade das camadas mais populares e oprimidas da população indiana.







Deixando as claras, a imensa desumanidade da taxação sobre o sal, a desobediência civil foi iniciada por Gandhi e desafiou o monopólio do governo britânico e, ainda pregou o desacato de simplesmente coletar o sal natural presente na costa da Índia (em 06 de abril de 1930).







A marcha foi seguida por milhares de indianos e intensificou-se mais tarde, culminando com a prisão da grande alma (Mahatma Gandhi).







E, segundo cuidadosas fontes históricas, houve mais de cinco mil reuniões que se aglomeraram, no mínimo 5.000.000(cinco milhões) de pessoas que percorreram mais de 200 milhas durante 24 dias. A campanha só veio findar um ano depois, quando Gandhi e Lorde Irwin, o Viceroy, mantiveram negociações diretas.







Ao optar pela ahimsa (a não-violência) como princípio de ação, por uma ética de princípios, já que a conquista do resultado, por mais importante que seja, não justifica, em hipótese alguma, a violência da integridade psicofísica do ser humano.







A satyagraha visa a libertação (a swaraj) que só pode ser conquistada pela ação não-violenta. Supera Gandhi a dicotomia entre os meios e os fins que está na essência da maior parte das teorias sobre a violência, é falsa. Os meios por definição não podem estar fora da jurisdição da moralidade.







Os chamados meios eram realmente os fins numa forma embrionária, como sementes, dos quais são assim chamados fins era um fluir natural.







A ação política de Gandhi é inédita e impactante e estabelecia nitidamente três pontos fundamentais:



a)      Um princípio da ação da não-violência (ahimsa).



b)      A forma de luta (satyagraha) que apresenta diversos métodos (greve, desobediência civil, jejum e, etc) e possui elementos permanentes.



c)      Um criterioso exame dos fatos e um apelo de entendimento ao adversário. O exercício da não-violência ativa para tentar evidenciar a injustiça da situação, a desproporcionalidade injusta e cruel.







O objetivo é a libertação coletiva e individual (swaraj). É importante ressaltar que tais pontos fundamentais são interdependentes de tal forma: A ahimsa é o motor da satyagraha, que é o meio de se atingir a swaraj.







Gandhi tem consciência de sua responsabilidade instancial tanto que não se investe como líder autoritário, mas lidera pela prática e pelo exemplo, sendo o mais reto e rigoroso em sua execução.







Vários outros ativistas se inspiraram na teoria gandhiana entre eles Mário Carvalho de Jesus, Martin Luther King (Nobel da Paz em 1964) e Dalai Lama.







Outro conceito arendtiano é explorado pela práxis de Gandhi que é a liberdade. Os homens são livres por serem livres e agir livremente são a mesma causa. Defende a doutrinadora que a liberdade não é o livre-arbítrio, mas está identificada com a esfera da ação equivalendo à soberania.







Os homens e mulheres tornam-se livres ao exercitarem a ação e decidirem conjuntamente seu futuro comum. Assim na perspectiva existencialista, o homem livre-em-si é também presa-de-si. A liberdade sob a acepção histórica é tão grande que engloba o homem que se torna seu prisioneiro.







Quando alguns converteram a liberdade em livre-arbítrio esta passou a ser um busilis político. Devido ao desvio filosófico da ação para a força de vontade, da liberdade como estado de ação para o liberum arbitrium.







Sem dúvida, Gandhi é um notável exemplo elucidativo, o que é bem evidenciado pelas palavras de Bertold Brecht: “Há homens que lutam um dia e são bons; Há outros que lutam um ano e são melhores. Há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam por toda a vida, e estes são imprescindíveis”.







O conceito de soberania pode ser definido, de modo sintético como o poder de decidir em última instância. Após a Revolução Francesa, a soberania real foi trocada pela acepção popular e da res publica (onde todo o poder emana do povo e, em seu nome será exercido).







Apesar da troca de mãos, o poder e a soberania continuaram a ser exercida por poucos.







Para melhor elucidar a noção de liberdade, Hannah Arendt recorre a polis grega que fora um espaço para qual a liberdade podia manifestar-se, fora na Grécia, uma “forma de governo” que proporcionou aos homens um espaço adequado para a liberdade florescer.







A idéia da liberdade enquanto campo de exercício da ação não é funcional, pois não pressupõe um determinado fim. Na satyagraha há uma tentativa da busca da verdade que só surge paulatinamente na prática.







A liberdade arendtiana é um meio para tornar a ação efetiva daí podendo resultar diversas conseqüências. Tal concepção difere radicalmente da acepção de soberania.




Assim para conservar a possibilidade da prática da liberdade, os seres humanos devem preservar o espaço público, requer-se a manutenção de direito mínimo, a cidadania, a que a doutrinadora denominou de “o direito a ter direitos”.







Assim a cidadania é a matriz criadora do espaço público que torna possível a liberdade. Assim, segundo a tradição grega a polis continua a ser origem da liberdade.







A influência do pensamento de Hannah Arendt veio a esculpir uma nova acepção da nacionalidade (que é um vínculo jurídico que une ser humano a determinado Estado).







È uma relação estabelecida pelo Direito interno, correspondendo a cada Estado determinar o modo de aquisição, perda e reaquisição da nacionalidade.







Nem todo nacional é um cidadão, mas nem todo cidadão é um nacional. Pois apesar da aquisição pelo nascimento adquirir a nacionalidade, não são ainda os cidadãos as crianças e adolescentes não são cidadãos no exercício integral de seus direitos e deveres.







Antes do surgimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH) a nacionalidade era uma condição prévia para o exercício da cidadania.







In casu, o apátrida era um não-cidadão e, sito implicava no não-reconhecimento de seus direitos. Com o DIDH o apátrida é reintegrado ao mundo jurídico através da convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 que o define como “aquele que não é considerado como cidadão por nenhum Estado na aplicação de suas leis”.







O apátrida não é impedido de exercer seus direitos fundamentais tanto quanto os nacionais do país no qual reside: liberdade de praticar sua religião, educação e cultura, acesso á justiça, assistência e socorro públicos, legislação de trabalho e seguros sociais.







Cumpre ao Estado onde estão radicados os apátridas, expedir os documentos de identidade e de viagem, e respeitar o princípio do non-refoulecement e, facilitar sua naturalização.




A Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 estabelece no seu artigo XV “Toda pessoa tem direito a uma nacionalidade” e ainda “Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade”.







A condição essencial para o reconhecimento de ser humano como sujeito de direito no sistema do DIDH, a nacionalidade deixa de ser seu vínculo jurídico com determinado Estado ou seu status jurídico de cidadão e, passa a ser a existência como ser humano.







O homem, a mulher a criança estão vinculados à ordem pública internacional, o que amplia o espaço público para o exercício da liberdade que ultrapassa os limites da polis para galgar o mundo.







Concluindo a não-violência é o elemento definidor do exercício do poder, assim a política deixa de ser utilitária e, passa ser a construção do espaço público onde se pode ser livre.







Onde há política, há espaço público, vige o diálogo logo, há direitos.A ação política gandhiana e o Direito internacional dos Direitos Humanos tornaram imprescindível a manutenção do espaço da ação da nova política que delineada por Arendt deve ser instrumento para a libertação de todos nós.







Referências



Habermas, Jürgen.  Sociologia, ed. Organizada por Barbara Freitag e Sergio Paulo Rouanet, S. Paulo: Atica, 1980







Arendt, Hannah. As Origens do totalitarismo. tradução de Roberto Raposo, Forense Universitária, 1999.







Arendt, Hannah. A condição humana, posfácio de Celso Lafer, 9ed, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2000.





GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 19/03/2007
Alterado em 06/11/2009
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