"O conhecimento é o mais potente dos afetos: somente ele é capaz de induzir o ser humano a modificar sua realidade." Friedrich Nietzsche (1844?1900).
 

Professora Gisele Leite

Diálogos jurídicos & poéticos

Textos

Coisa Julgada Contemporânea parte 2
III - Conclusão

Desta forma, a coisa julgada antes de ser regra destinada a legitimar o processo tido como discurso jurídico, é igualmente regra crucial à sua própria existência.

O que reforça a tese de que a admissibilidade da retroatividade da decisão de inconstitucionalidade e sobre a coisa julgada, além de contradizer o poder jurisdicional de controle difuso da constitucionalidade, nega a existência do discurso jurídico que somente existe se for capaz de produzir decisão definitiva.

Em verdade, representa a coisa julgada uma regra formal do discurso jurídico, sendo sua fundamentação de cunho pragmático- transcendental. Os conflitos de interesses em sociedade cada vez mais plúrima e complexa o que torna cada vez mais a atividade jurisdicional essencial. Nenhum sistema de direito seja este fulcrado no precedente judicial ou no direito positivo pode ser tão perfeitamente moldado de modo a não deixar quaisquer espaços para as disputas. A lide  é pois inexorável.

Para agir corretamente segundo as normas, os homens devem não apenas ter oportunidade de aprender quais as normas, mas devem também ter assegurado, que em caso de disputa, sobre o significado dessas normas, haverá um método disponível para resolvê-las (In Lon Fuller, The morality of law, 2.ed., New Haven, Yale University Press, 1969, p.56-57).

Caso os conflitos, uma vez resolvidos pudessem rediscutidos, ou se a solução judicial fosse negada, de nada adiantaria a jurisdição. Portanto, a discussão judicial trânsita em julgado deve tornar-se imutável e indiscutível.

A decisão produzida no processo não é definitiva apenas porque pôs fim a lide e impedir a reabertura do litígio e do embate, mas sim, por constituir a afirmação estatal.

O enfraquecimento da autoridade da coisa julgada corresponde ao enfraquecimento da autoridade do Estado. Pois a decisão jurisdicional é também protegida contra outros setores estatais e mesmo em face do Executivo e do Legislativo que são impedidos expressamente em prejudica-la.

Sublinhe-se que a imutabilidade da coisa julgada protege a declaração judicial apenas enquanto as circunstâncias (fáticas e jurídicas) da causa permanecem as mesmas, inseridas que estão na causa de pedir da ação.

Sempre que as circunstâncias fáticas ou jurídicas da causa forem alteradas dá azo à composição de nova causa de pedir, ensejando uma nova ação, totalmente diferente da ação anteriormente proposta e decidida. E, por esta razão não afeta a coisa julgada imposta sobre a primeira decisão.

Desponta a coisa julgada como corolário do direito fundamental de ação, ou seja, a tutela jurisdicional efetiva. Assim, o litigante vencedor em razão de seu direito fundamental de ação, tem direito a uma tutela estável e que não possa ser modificada ou rediscutida por ato do próprio Estado.

Frise-se que a decisão dos juízes e tribunais sobre uma questão constitucional jamais poderá ser como se fosse uma lei inconstitucional ou simples aplicação, declaração ou atuação de uma lei inconstitucional ou nula.

No Estado Constitucional, o juiz não tem apenas a mera tarefa de atuar a vontade da lei, conforme ocorria no Estado Legislativo. Cabe-lhe o dever de interpretar a lei na medida da Constituição e de realizar o controle de constitucionalidade no caso concreto.

A coisa julgada como corolário do princípio da segurança jurídica  é resguardada expressamente no texto constitucional vigente e deriva diretamente do Estado de Direito. O Estado de Direito é sobreprincípio de ampla latitude e se correlaciona com outros princípios e pode ser analisado sob a dimensão objetiva e subjetiva.

No plano objetivo incide diretamente na ordem objetiva importando na irretroatividade e a previsibilidade dos atos estatais, bem como, o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.

Já no plano subjetivo é o visto pelo prisma dos cidadãos em face dos atos do poder Público, aparecendo o princípio da confiança, que é indissociável à dignidade da pessoa humana.

Em verdade, a coisa julgada material é autêntico signo da tutela da confiança do cidadão nos atos estatais. A decisão de inconstitucionalidade proferida no STF na ação direta de inconstitucionalidade declara a inconstitucionalidade tendo eficácia ex tunc, ou seja, até o momento da edição de lei.

Não possuindo natureza desconstitutiva, mas apenas declaratória posto que reconheça a nulidade da lei. E, a doutrina pátria bastante influenciada pela norte-americana  acabou por definir que a inconstitucionalidade  equivale à nulidade absoluta da lei ou do ato normativo. O que reforça pela inconsistente existência da coisa julgada inconstitucional.

Chiovenda chegou a mencionar que não pode haver submissão à jurisdição senão onde haver sujeição da lei. Assim a jurisdição revela a vontade da lei e, esta o poder estatal. Inspirado no Iluminismo e nos valores da Revolução Francesa separava radicalmente as funções do legislador e do juiz. Atribuindo a um a criação do direito e a outro a aplicação do direito.

Basta lembrar que no Estado Liberal ao juiz cabia simplesmente aplicar a lei ditada pelo legislador. Sustenta o ministro José Augusto Delgado que a segurança jurídica imposta pela coisa julgada está vinculada aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade que devem seguir todo ato judicial, e assim, que o intérprete tem o dever de ao se deparar com o conflito entre os princípios da coisa julgada e outros postos na Constituição, averiguar se a solução pela aplicação do superprincípio da proporcionalidade e da razoabilidade.

A teoria pretende dar solução às questões do DNA e a supervalorização das indenizações na desapropriação mediante a contraposição de normas constitucionais com a coisa julgada, e aponta para o que chamam de superprincípio de proporcionalidade, utilizado como mecanismo de outorgar ao juiz o poder de escolher entre a norma constitucional que se alega violada e a coisa julgada.

Então, conclui Marinoni que a coisa julgada por não fazer parte do conteúdo material do discurso jurídico, não pode ser objeto de balanceamento. E, mesmo que se considere como parte do discurso, e assim passível de ponderação, a mesma já fora realizada pelo legislador, que optou por esta, diante do risco de eventuais injustiças. Em boa hora, o STJ em acórdão relatado pelo Ministro Luiz Fux, que “a rediscussão reiterada de matéria decidida e declarada por sentença transitada em julgado implica a pretensão de consagração da cognominada tese da “relativização da coisa julgada” postulado que se choca com a cláusula pétrea da segurança jurídica, garantia fundamental do jurisdicionado, consagrada em todas as Constituições” (STJ, Resp 671182, 1ª. Turma, relator Min. Luiz Fux, DJ 02.05.2005).

Por fim, se uma coisa julgada se formou (seja injusta ou justa) a sua eficácia há de produzir os efeitos peculiares da sua natureza, e os deverá produzir até que essa aptidão seja estancada por outra coisa julgada, mas desde que formada em sede concentrada, cortando o fluxo da anterior, ou por meio de sua rescisão, contudo, os efeitos já produzidos (que deverão ser obviamente preservados), cessando a eficácia da res judicata somente para o tempo futuro, quando se referir à relação jurídica continuativa.

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Autoras:
Gisele Leite, professora universitária, pedagoga, bacharel em Direito UFRJ, mestre em Direito UFRJ, mestre em Filosofia UFF, Doutora em Direito USP. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.   Articulista e colunista dos sites www.invetidura.com.br, www.netlegis.com.br, www.jusvi.com , possuindo vasta produção acadêmica publicada nos sites como www.ibdfam.org.br , http://egov.ufsc.br/portal/buscalegis, www.abdpc.org.br ,www.ambito-juridico.com.br , www.abdir.com.br , www.jurid.com.br .

Denise Heuseler, professora universitária, advogada, bacharel em Direito UNESA, pós-graduada em Direito Civil e Direito Processual Civil pela UniverCidade, mestranda da UCAM, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas, professora-tutora da FGV Online e IBMEC Online. Também possui vasta produção acadêmica publicada pelos sites www.investidura.com.br, www.jusvi.com , www.ibdfam.org.br, www.prolegis.com.br, www. egov.ufsc.br/buscalegis, www. ambito-juridico.com.br, www.abdpc.org.br , www.conteudojuridico.com.br , www.abdir.com.br  e www.jurid.com.br
GiseleLeite e Denise Heuseler
Enviado por GiseleLeite em 28/10/2012
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