Roteiro do princípio da boa-fé objetiva
No fundo, o princípio da boa fé assenta-se na cláusula geral da tutela da pessoa humana inserida no art. 1º, da CF/1988, que ao lado da cidadania compõe a atual tábua axiológica praticada pelo Direito Civil Contemporâneo. Derrubando-se os muros de Berlim existentes outrora entre a órbita privada e órbita pública.
A virtude da boa fé consiste em acreditar no que se diz e, dizer aquilo em que acredita, naturalmente, quem está de má fé, deliberadamente mente, mas nem todos que mentem estão necessariamente de má fé.
Fábio Ulhoa Coelho in Curso de Direito Civil nos remete ao clássico exemplo do cidadão alemão que, durante o regime nazista, dá guarida ao amigo judeu e, mente a esse respeito para a gestapo, encontra-se exatamente a convergência da boa fé e a mentira. O cidadão alemão acredita piamente que não há mal em enganar, se isso é preciso, para salvar a vida do amigo, o que revela sua boa fé.
No mesmo diapasão, quem está de má fé, engana, mas nem sempre quem engana está sempre de má fé. Até porque age de boa fé aquele que acredita no que diz, mesmo quando está equivocado. Desta forma, alguém que desconhece a verdade dos fatos, sobre os quais narra, mas acredita sinceramente serem verazes, age com boa fé.
O princípio da boa fé objetiva pode ser percebido do teor do art. 422 do CC de 2002 pelo qual, os contratantes estão ligados a guardar tanto na conclusão do contrato como em sua execução e mesmo nas negociações preliminares, a conduta de lealdade e probidade.
Esposando da mesma opinião de Judith Martins-Costa, a boa fé objetiva efetivamente constitui um princípio geral. Indo além, constitui uma autêntica cláusula geral que dispõe da necessidade das partes manterem a respectiva boa fé e, assevera Thereza Negreiros que o referido dispositivo legal traz em seu bojo as especializações funcionais da boa fé, quais sejam: a eqüidade, a razoabilidade e cooperação.
No fundo, o princípio da boa fé assenta-se na cláusula geral da tutela da pessoa humana inserida no art. 1º, da CF/1988, que ao lado da cidadania compõe a atual tábua axiológica praticada pelo Direito Civil Contemporâneo. Derrubando-se os muros de Berlim existentes outrora entre a órbita privada e órbita pública.
É óbvia a relação direta existente entre a boa fé (um preceito de ordem pública) com a socialidade amparada também no fundamento da função social da propriedade e, por conseguinte, do contrato (art. 5º., XXII, XXIII e art. 170 , III da CF/1988).
A priori, a boa fé obrigacional se apresentou no direito brasileiro como modelo dogmático (puramente teórico) para concretizar-se como modelo jurídico através da atividade materializadora da jurisprudência.
Um dos questionamentos que atordoam os doutrinadores é identificar se no dispositivo legal do Código Civil de 2002, em seu art. 422, a boa fé seria objetiva ou subjetiva. Pautada na conduta de colaboração dos contratantes, ou pautada na ignorância do vício ou na intenção.
Flávio Tartuce acredita nominalmente que há a boa fé subjetiva e, segundo Judith Martins-Costa essa conceito se traduz num estado de consciência ou convencimento individual da parte ao agir em conformidade ao direito, sendo aplicável, em regra ao campo dos direitos reais, mais especificamente na seara possessória. Diz-se subjetiva posto que inserida na intenção (animus) do sujeito da relação jurídica, sendo sua íntima convicção.
Explica Tartuce que referido dispositivo legal com a expressão e (princípios de probidade e boa fé) do teor do art. 422 C.C. alude ao somatório de uma boa intenção com a probidade e com a lealdade. De modo que a referida conjunção aditiva por excelência, serve para apontar a soma da boa fé relacionada com a intenção (subjetiva) e a probidade.
Adalberto Pasqualotto ensina que: “que do ponto de vista objetivo, a boa fé assume feição de uma regra ética de conduta. É a chamada boa fé lealdade. É a treu und Glauben do direito alemão. Segundo Larenz, cada um deve guardar fidelidade à palavra dada e não defraudar a confiança ou abusar da confiança alheia”.
José Fernando Simão textualmente comenta que o art. 422 do Código Civil de 2002 consagra a boa fé objetiva, assinalando que o Código Civil adotou sistema de cláusulas gerais, pelo qual, conforme ensina Ruy Rosado de Aguiar, abandona-se o princípio da tipicidade e fica reforçado o poder reviosinista do juiz.
Definindo cláusula geral Judith Martins-Costa aduz que; “são normas jurídicas legisladas incorporadoras de um princípio ético orientador do juiz na solução do caso concreto, autorizando-o a que estabeleça, de acordo com aquele princípio, a conduta que deveria ter sido adotada no caso. Isso significa certa indefinição quanto à solução da questão, o que tem sido objeto de crítica. É a antiga bipolarização entre segurança, de um lado, e o anseio de justiça concreta de outro”.
Segundo Sílvio Salvo Venosa a rotulação de cláusula geral é imperfeita e não fornece noção correta de seu conteúdo. A cláusula geral, não é, na verdade, geral. O que primordialmente a caracteriza é o emprego de expressões ou termos vagos, cujo conteúdo é dirigido ao juiz, para que este tenha um sentido mais norteador no trabalho de hermenêutica. Trata-se, portanto, de norma mais propriamente dita genérica, a apontar uma exegese. Não resta dúvida que se há um poder aparentemente discricionário do juiz, ou árbitro, há desafio permanente para os aplicadores do Direito apontar novos caminhos que se façam necessários.
Toda cláusula geral geralmente remete o intérprete para um padrão de conduta geralmente aceito no tempo e no espaço. Deve localizar o julgador em quais situações os contratantes se desviaram da boa fé. É uma tipificação aberta.
Venosa identifica que a boa fé objetiva está no dispositivo art. 421 do C.C. de 2002, e adiante acrescenta sobre a distinção quanto à boa fé subjetiva. Nessa última, o manifestante de vontade crê que sua conduta é correta, tendo em vista o grau de ciência ou aspecto psicológico que deve ser considerado.
Por outro lado, a boa fé objetiva, tem compleição diversa. Parte de um padrão de conduta comum, do homo medius, naquele caso concreto, considerando também os aspectos sociais envolvidos. Traduz-se numa regra de conduta, num dever de agir de acordo com determinados padrões sociais estabelecidos e reconhecidos.
Identifica Venosa que há três funções nítidas para o conceito da boa fé objetiva: a função interpretativa (art. 113 do C.C.) a função de controle dos limites do exercício de um direito (art. 187) e a função de integração do negócio jurídico (art. 421 do C.C.).
Maria Helena Diniz preleciona no seu Código Civil Anotado que é a boa fé objetiva prevista no art. 422, é alusiva a padrão comportamental pautado na lealdade e probidade (integridade de caráter) impedindo o exercício abusivo de direito por parte dos contratantes, no cumprimento não só da obrigação principal, mas também das acessórias, inclusive do dever de informar, de colaborar e atuação diligente. Ressalta ainda a mestra que a violação desses deveres anexos constitui espécie de inadimplemento sem culpa.
Ainda esclarece que a cláusula geral contida no art. 422 do novo codex impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, corrigir, suprir o contrato segundo a boa fé objetiva entendida como exigência de comportamento leal dos contratantes. Sendo incompatível com conduta abusiva principalmente em face da proibição do enriquecimento sem causa.
Para Miguel Reale a boa fé é condição essencial à atividade ético-jurídica, caracterizando-se pela probidade dos contratantes. Na melhor síntese de Judith Martins-Costa corresponde a um cânone hermenêutico integrativo do contrato.
Cristiano Chaves de Farias, doutrinador de clareza solar aborda o tema ao comentar sobre a caracterização do abuso de direito revelando que para a caracterização do ato abusivo tem-se como pedra de toque, o elemento distintivo que é o motivo legítimo, que deve ser extraído das condições objetivas, nas quais o direito foi exercido, cotejando-as com sua finalidade e com a missão social que lhe é atribuída, com o padrão de comportamento dado pela boa fé e com a consciência jurídica dominante.
Entendimento esposado pela melhor jurisprudência a relacionar o abuso de direito ao princípio da boa fé objetiva, cita Chaves:
“Conta-corrente. Apropriação do saldo pelo banco credor. Numerário destinado ao pagamento de salários. Abuso de direito. Boa fé. Age com abuso de direito e viola a boa fé o banco que, invocando cláusula contratual constante do contrato de financiamento, cobra-se lançando mão do numerário depositado pela correntista em conta destinada ao pagamento de salários de seus empregados, cujo numerário teria sido obtido junto ao BNDES.
A cláusula que permite esse procedimento é mais abusiva do que a cláusula mandato, pois, enquanto esta autoriza apenas a constituição do título, aquela permite a cobrança pelos próprios meios do credor, nos valores e no momento por ele escolhidos.”
(STJ, Ac., 4ª., T., REsp. 25. 052-3/SP, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar Jr., v.u., j. 19.10.2000. DJU 18.12.2000, p.203).
Uma das funções da boa fé objetiva é limitar exatamente o exercício dos direitos subjetivos (de quaisquer manifestações jurídicas) contratualmente estabelecidos em favor das partes, obstando um desequilíbrio negocial.
É nesse sentido a decisão do STJ reconhecido a abusividade de cláusula contratual que autorizava o banco a descontar diretamente na conta-corrente do cliente o valor de empréstimo bancário, ‘uma vez que os vencimentos do servidor têm natureza alimentar, não se podendo permitir ao banco continuar a efetivar os descontos (STJ., Ac. 3ª. TY. Resp 550871, rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 1.7.04).
José Fernando Simão destaca haver duas funções relevantes da boa fé objetiva: a função ativa e a função reativa. A primeira se caracteriza pela existência de deveres que não surgem do acordo de vontades, pois dele independem. São deveres decorrentes diretamente da boa fé, e, portanto, não carecem de expressa previsão contratual. Por isso chamado de deveres laterais, anexos, secundários, acessórios ou satelitários.
Em certas situações, os deveres principais ainda não existem, posto que na fase pré-contratual, mas esses deveres laterais já devem ser observados (culpa in contrahendo). Em outras situações, no entanto, os deveres primários já foram adimplidos e o contrato extinto, porém, remanescem os deveres laterais (é responsabilidade post pactum finitum). Pelo dever de segurança cabem as contratantes garantir a integridade de bens e dos direitos do outro, em todas as circunstâncias próprias do vínculo que possam oferecer algum perigo.
Pelo dever de lealdade a parte não deve agir de modo a causar prejuízos imotivados à outra. Não basta que se cumpra fielmente o contrato. Deve-se proceder de forma que melhor atenda aos interesses comuns. Pelo dever de informação deve o contratante informar e comunicar à outra parte fatos relevantes envolvendo o objeto do contrato. E, persiste ainda que a comunicação possa prejudicar o contratante que detém a informação.
Por dever de cooperação consiste na ajuda que a parte deve presta a outra na consecução dos fins do contrato. A cooperação significa maior chance de conclusão ou de adimplemento contratual.
O duty to mitigate the loss é o dever do credor de mitigar o prejuízo, a própria perda evidenciado pelo Enunciado 169 da III Jornada de Direito Civil: “o princípio da boa fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo”. É inspirado no art. 77 da Convenção de Viena de 1980 sobre a venda internacional de mercadorias. É , sem dúvida, um dever acessório derivado da boa conduta que deve existir entre os negociantes. Podemos identificar nos arts. 769 e 771 do Código Civil de 2002 no contrato de seguro.
A aplicação de duty do mitigate the loss permanece nos contratos bancários em que há descumprimento, não pode a instituição prevista no instrumento contratual, a dívida atinja montantes astronômicos.
A título de exemplo, cita Tartuce a sentença da lavra do juiz de Direito de São Paulo Silas Silva Santos, abordando um contrato de arrendamento rural, visando à configuração da mora dos arrendatários. Isso porque os arrendantes assumiram o dever de corte de árvores na área locada, dever este não cumprido e invocado pelos arrendatários para fundamentar a exceção do contrato não cumprido.
A função reativa da boa fé objetiva é quando usada como defesa ou exceção para determinada pessoa que é injustamente atacada pela outra. A boa fé nesse caso serve de alegação para rechaçar certa pretensão injusta. Mas não se confunde com a exceptio doli, pois a exceção do dolo é poder que uma pessoa tem de repelir a pretensão do autor por este ter incorrido em dolo.
Aliás, é curial destacar que o Direito não pode privilegiar aquele que age com intuito de enganar, ludibriar o outro contratante, ainda que tal fato não se tipifique como vício de consentimento. O dolo deve ser encarado como causa de nulidade relativa dos negócios jurídicos conforme prevê ao art. 145 do C.C.
No Direito romano, essa exceptio tinha duplo papel defensivo pos gerava a sua bipartição em exceptio doli specialis e exceptio doli generalis. A primeira seria uma impugnação da base jurídica da qual o autor pretendia retirar o efeito juridicamente exigido; havendo dolo essencial, toda a cadeia subseqüente ficaria afetada. Já na exceptio doli generalis, mais utilizada, o réu contrapunha à ação o incurso do autor em dolo, em momento da discussão da causa.
A exceção mais conhecida no direito pátrio é a do art. 476 do C.C. que é a exceptio non adimpleti contractus pela qual ninguém pode exigir que uma parte cumpra com sua obrigação, se primeira não cumprir a própria. Aponta Cristiano de Souza Zanetti que a exceptio doli pode estar evidenciado nos seguintes dispositivos do novel codex, arts. 175, 190, 273, 274, 281, 294, 302, 837, 906, 915 e 916.
Dentro da função integrativa da boa fé objetiva alguns conceitos são relevantes é o caso da suppressio (Verwirkung) significa supressão, por renúncia tácita, de um direito, pelo seu não-exercício com o tempo. O seu sentido pode ser notado pela leitura do art. 330 do CC que adota a tese que o pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir a tácita renúncia do credor relativamente ao que foi previsto no contrato.
Desse modo, no mesmo momento em que o credor perde um direito, por essa supressão, surge um direito a favor do devedor, por meio da surrectio (erwirkung), direito que não existia juridicamente até então, mas que decorre da efetividade social, de acordo com os costumes.
Já o termo tu quoque é expressão que está no grito de Júlio César, ao perceber que seu filho adotivo Brutus estava entre os que atentavam contra sua vida (Tu quoque fili?), significa que um contratante que violou uma norma jurídica não poderá, sem caracterização do abuso de direito aproveitar-se dessa situação anteriormente criada pelo desrespeito.
Lembra Preuss Duarte, a locução designa situação de abuso que se verifica quando um sujeito viola norma jurídica e, posteriormente, tenta tirar proveito da situação em benefício próprio. Assim, está vedado que alguém faça contra o outro o que não faria contra si mesmo (é a regra de ouro) conforme ensina Cláudio Bueno de Godoy. È regra de tradição ética em defesa do outro.
A máxima venire contra factum proprium non post significa que certa pessoa não pode exercer um direito próprio contrariando um comportamento anterior, devendo ser mantidos a confiança e o dever de lealdade decorrentes do princípio da boa fé objetiva, depositado quando da formação do contrato. Tal conceito mantém relação com a tese dos atos próprios explorada pelo Direito espanhol por Luís Díez-Picazo.
Assim o venire contra factum proprium traduz-se num exercício de posição jurídica em contradição com comportamento assumido anteriormente pelo exercente. Tem como requisito a existência de dois comportamentos lícitos de uma mesma pessoa, separados por determinado lapso temporal, sendo que o segundo comportamento contraria o primeiro.
Melhor exemplifica-se com jurisprudência alemã, um funcionário afirma ao empregador que pretende despedir-se, mas não o faz, porque o empregador se opõe à demissão e pede a ele que continue seu trabalho. Após um mês, o empregador demite o empregado, alegando estado financeiro ruim da empresa.
Se o inquilino, em contrato locatício por prazo indeterminado, garante ao proprietário que permanecerá no imóvel por mais de um ano, mas, decorridos somente 30 dias, efetivos notificação para denúncia vazia da locação, estará contrariando a boa fé objetiva, em decorrência do venire contra factum proprium. Nessa situação, o titular de direito (inquilino) manifesta a intenção de não exercer seu direito de resilição, mas o exerce.
É exatamente fulcrado no venire que Teresa Ancona Lopez defende brilhantemente a tese de que o consumidor de cigarros, que, no uso da autonomia da vontade compra os cigarros (perfazendo atividade lícita, e produto lícito) e mantém esse hábito por anos, não pode, contrariando a boa fé, reclamar por eventuais doenças e danos causados pelo tabagismo.
Instituto análogo, porém não idêntico é a suppressio, representando um corolário do venire. Pois na suppressio a situação do direito que não tenha sido exercido por determinado lapso de tempo, não mais poderá sê-lo se contrariar a boa fé.
Preleciona Nelson Nery Junior que a boa fé pauta-se numa crença ou mesmo numa ignorância (e, é assim previsto no art. 1.994 do Código Civil do Paraguai que cogita da boa fé ad usucapionem).
No entanto, o dispositivo em debate em verdade, consagra a boa fé objetiva que corresponderia à soma de uma boa intenção com a probidade e lealdade da conduta. Seria assim, a boa fé subjetiva somada à boa fé objetiva (probidade).
Dentro da boa fé objetiva encontraremos em regra a boa fé subjetiva. A reformulação operada com base nos princípios da socialidade, eticidade e operabilidade deram uma nova feição ou um novo paradigma aos princípios fundamentais do contrato compreendidos como preceitos de ordem pública (art. 2.035, parágrafo único do C.C. de 2002).
Há, no novo codex três dispositivos sendo o de maior repercussão o art. 422 do C.C., o art. 113 do C.C. que esculpi regra hermenêutica sobre os negócios jurídicos, e o art. 187 do C.C. que tipifica o abuso de direito como ato ilícito.
Antes do advento do Código Civil de 2002, que só veio a vigorar em 2003, já havia o Código de Defesa do Consumidor, a previsão da boa fé que é tratada como princípio a ser seguido para a harmonização dos interesses dos participantes da relação de consumo (art. 4, III) e, ainda como critério definidor da abusividade capitulada no art. 51, V do mesmo diploma legal.
Esclareça-se que no art. 422 do C.C. tem-se uma norma aberta e, com apoio no princípio ético e seus corolários naturais como a lealdade, confiança e a probidade cabe ao juiz estabelecer a conduta que deveria ter sido adotada pelo contratante, levando-se em conta, também os usos e costumes.
Carlos Roberto Gonçalves in Direito Civil Brasileiro, volume III, sublinha que a cláusula geral da boa fé está tratada na nova legislação cível com inegável apuro técnico, não obstante ter sido sua redação criticada por alguns doutrinadores, e é nesse sentido que há um Projeto de Lei 6.960/2002 apresentado pelo Deputado Ricardo Fiúza para alterá-la.
Mas, com razão obtempera Nelson Nery Junior ao recordar que o parágrafo 242 do BGB manteve sua redação original desde 1896 que também não menciona nem a fase pré-contratual e nem tampouco a pós-contratual e, nem por isso a doutrina e a jurisprudência deixaram de incluir tais fases contratuais.
Perspicaz como de costume, Ruy Rosado de Aguiar Junior abordando o art. 422 do C.C. menciona que durante as tratativas preliminares, o princípio de boa fé objetiva é fonte de deveres de esclarecimentos, também surgindo nessa fase, os deveres de lealdade, confiança decorrentes da mera aproximação pré-contratual. A violação pontifica Ruy, a esse dever secundário pode ensejar indenização.
A técnica jurídica enfrenta dificuldades na operacionalização do conceito de boa fé quando associado à virtude moral. Assim, a técnica jurídica introduziu um conceito diverso (fair dealing) para delinear o padrão desejado de comportamento para os contratantes.
Distinguindo boa fé subjetiva da objetiva, Ulhoa esclarece com síntese ímpar que a primeira corresponde à virtude de dizer o que acredita e acreditar no que diz. Possui relevância peculiar para o direito das coisas, na qualificação da posse. Ao passo que a boa fé objetiva é representada por condutas dos contratantes que demonstram respeito aos direitos da outra parte.
Agir de boa fé, em suma, exige-se que as partes nutram mútuo respeito e que prestem informações claras e verdadeiras, sempre que possível, Se não age de boa fé, a parte incorre em ato ilícito.
O descumprimento do dever geral de boa fé implica pela lei, apenas a responsabilidade civil do contratante faltoso, que deve indenizar todos os prejuízos sofridos pela parte cujos direitos desrespeitou. Não há previsão legal que fulcre a revisão dos contratos em face da má fé do contratante.
A noção histórica da boa fé (bona fides) nos revela que seria antes um conceito ético do que propriamente expressão jurídica da técnica, cunhada primeiramente no Direito Romano.
Já na fórmula Treu und Glauben (lealdade e crença ou confiança) herdada do direito germânico é regra objetiva que deve ser observada em todas as relações jurídicas. A fórmula alemã denota uma conotação diversa daquela emitida pelo direito romano, pois se reportam as qualidades ou estados humanos objetivados.
Também o direito canônico veio preocupar-se com o tema, e nas mesmas bases do direito germânico, embora introduzisse um poderoso pólo de significados: a boa fé como ausência de pecado, estado contraposto à má fé.
Veio daí, do direito canônico, o caráter conceitual por exclusão, aonde não há má fé, presume-se que houve boa fé.
Ainda quanto à diferenciação entre boa fé objetiva e a subjetiva Giselda Hironaka faz culta intervenção:
“A mais célebre das cláusulas gerais é exatamente a boa fé objetiva nos contratos. Mesmo levando-se em consideração o extenso rol de vantagens e de desvantagens que a presença de cláusulas gerais pode gerar num sistema de direito, provavelmente a cláusula de boa fé objetiva, seja mais útil que deficiente, uma vez que a boa fé, se entende que é um fato (que é principiológico) e uma virtude (que é moral).” (...)
Fruto da simbiose fato e virtude é a boa fé objetiva é algo que não pode valer como certeza, sequer como verdade, já que esta exclui a mentira, mas não, o erro.
Esclarece Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho que o imperativo da boa fé faz gerar a observância de deveres jurídicos anexos ou de proteção o de confiança, assistência, confidencialidade, informação e, etc.
Então, no contrato válido em particular no contrato contemporâneo que é fonte primordial de obrigações há o dever jurídico principal que corresponde a uma prestação de dar, fazer ou não fazer. E, também há os deveres jurídicos anexos ou adjacentes decorrentes da boa fé objetiva que é o de ter lealdade, probidade, confidencialidade, confiança, assistência, informação e, etc.
Ilustrativos acórdãos existem sobre a boa fé objetiva na fase pré-contratual entre os primeiros temos o famoso “caso dos tomates” que envolveu a CICA e que e foi pronunciado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Aliás, quero saudar todos os gaúchos, pois o RGS é terra profícua de grandes doutrinadores e juristas, não à-toa temos os posicionamentos jurisprudenciais mais brilhantes e mais justos, mas em particular quero saudar o Dr. Gustavo de Oliveira Vieira meu colega de FGV e, também professor universitário.
Essa empresa distribuía sementes a pequenos agricultores gaúchos sob a promessa de lhes comprar a produção futura. Isso ocorreu de forma continuada e por diversas vezes, o que garantiu a expectativa de celebração do contrato de compra e venda da produção. Até que certa feita, a referida empresa distribui as sementes e não adquiriu o que foi produzido.
Restou então, aos agricultores perpetrar demandas indenizatórias, alegando a quebra da boa fé, mesmo não havendo qualquer contrato escrito, obtendo pleno êxito. Mas, não esqueçamos que o contrato verbal de fato existira e se encontrava em plena eficácia prorrogativa.
Vale a pena citar in verbis, a referida ementa:
“Contrato. Teoria da aparência. Inadimplemento. O trato, contido na intenção, configura contrato, porquanto os produtores, nos anos anteriores, plantaram para a CICA e, não tinham por que plantar, sem garantia da compra.” TJRS, Embargos Infringentes, rel. Juiz Adalberto Libório Barros, j, 01.11.1991, Comarca de origem: Canguçu. (Fonte: Jurisprudência TJRS, Cíveis, 1992, vol.2, t. 14, p. 1-22).
Em caso bem similar, acolhendo-se plenamente a responsabilidade civil pré-contratual por violação da boa fé objetiva, deu-se também no TJRS que condenou concessionário de veículos fluminense a indenizar casal de gaúchos pelas despesas havidas por transportes, hospedagens, alimentação diante da expectativa gerada por proposta de venda de veículo que se encontrava no Rio de Janeiro.”
Vide a ementa: “Reparação de danos materiais e morais. Responsabilidade pré-contratual. Princípio da boa fé objetiva dos contratos negociações preliminares a induzir os autores a deslocaram-se até o Rio de Janeiro para aquisição de veículo seminovo da ré, na companhia de seu filho, ainda bebê, gerando despesas. Deslealdade das informações prestadas, pois oferecido como uma jóia de carro impecável gerando falsas expectativas, pois na verdade, o veículo apresentada pintura mal feita, a revelar envolvimento em acidente de trânsito. Omissão no fornecimento do histórico do veículo. Danos materiais, relativos às passagens aéreas, e estadia e danos morais decorrentes do sentimento de desamparo, frustração e revolta perante a proposta enganosa formulada. Sentença confirmada por seus próprios fundamentos.” (TJRS, Recurso Cível 71000531376, 2ª. Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, JEC, Rel. juiz Ricardo Torres Hermann, J.08.09.2004).
Outro exemplo de desrespeito à boa fé objetiva é célebre caso do cantor Zeca Pagodinho e duas cervejarias famosas, que tramita na Comarca de São Paulo, parece-nos de evidente violação da cláusula geral da boa fé, pois o referido cantor rompeu injustificadamente com uma das cervejarias e, se vinculou imediatamente à sua concorrente.
A Justiça de São Paulo em 18.05.2005 condenou em primeira instância, a agência África, de Nizan Guanaes, a pagar a concorrente Fischer América comandada por Fischer o valor de R$ 6000 mil por danos morais.
Na sentença, a juíza Adriana Porto Mendes, da 9ª. Vara Cível de São Paulo, afirma que o valor da indenização teve como parâmetro o cachê estabelecido no contrato entre a Nova Schin e Zeca Pagodinho. Segundo a juíza, a África praticou concorrência desleal e cometeu atos ilícitos por ter patrocinado a ruptura do contrato do cantor coma Schincariol (fabricante da Nova Schin) para que ele pudesse estrelar a campanha publicitária da cervejaria concorrente. A decisão foi lastreada no Código de Propriedade Industrial e inspirada nas regras do Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária (CONAR). Atualmente, o referido processo em segunda isntância se contra com o Desembargador Waldemar Nogueira Filho (desde 18.11.2005), proc. 424.113.4/2-00, conforme informação no site do TJSP.
Outro caso, também interessante ocorreu num contrato de plano de saúde, caracterizado como contrato de consumo ocorre a violação da boa fé objetiva quando se dá a negativa da empresa em arcar com certa cirurgia cuja cobertura consta do instrumento contratual.
Marco Aurélio Bezerra de Melo in Novo Código Civil anotado esclarece que a boa fé que cuidada no art. 422 não é apenas àquela fulcrada na ignorância do que deve ser considerando correto, tal como vemos na análise da posse de boa fé insculpida no art. 1.201 do C.C. No mesmo sentir, os efeitos do casamento em relação ao cônjuge de boa fé (casamento putativo) no art. 1.561, o art. 309 que valida o pagamento de boa fé feito ao credor putativo, podendo, a título de ilustração ser citado o art. 637 do C.C. que ameniza a responsabilidade do herdeiro do depositário que, ignorando o contrato de depósito, aliena a terceiro o bem entregue à custódia do depositante.
Salienta Marco Aurélio que o princípio contratual deve ser focado principalmente na versão objetiva tal como encontramos no art. 51, IV do CDC (Lei 8.078/90) prevendo que serão nulas todas as claúsulas em contrato de consumo que atentem contra o princípio da boa fé objetiva.
Merece de fato, ser criticada a redação do art. 422 do novo codex que faz somente alusão apenas à necessidade da boa fé na conclusão e na execução do pacto, quando a melhor doutrina há muito tempo já indica para que seja observado o referente princípio em todas as fases contratuais inclusive após a execução contratual (fase pós-contratual).
Três exemplos marcantes acerca da possibilidade de que se exija do contratante um comportamento de boa fé no post pactum finitum. Tais exemplos colhidos do excelente artigo “insuficiências, deficiências e desatualização do Projeto de Código Civil na questão da boa fé objetiva nos contratos” elaborado pelo notável professor Antônio Junqueira de Azevedo. Ei-los:
1º) O proprietário de um imóvel vendeu-o e o comprador que o adquiriu, por ter o terreno uma bela vista sobre um vale muito grande, construiu ali uma ótima residência, que valia seis vezes o preço do solo. A verdade é que o vendedor gabou a vista, e, então, fez a transferência do imóvel para o comprador – negócio acabado. Depois, o ex-proprietário, o vendedor, que sabia da proibição da prefeitura municipal de construção elevada no imóvel, em seguida, conseguiu na prefeitura a alteração do plano da cidade, para que fosse permitido ali fazer uma construção. Quer dizer, ele construiu um prédio que tapava a vista do próprio terreno que havia vendido ao outro - esse ato não era literalmente ato ilícito. Ele, primeiramente, cumpriu a sua parte; depois, comprou outro terreno, foi à prefeitura, mudou o plano, e, aí, construiu. A única solução para o caso é aplicar a regra de boa fé. Ele faltou com lealdade no contrato que já estava executado. Perturbou a satisfação do comprador, resultante do contrato já cumprido.
2º) Uma dona de boutique encomendou a uma confecção de roupas 120 casacos de pela. A confecção fez os casacos, vendeu-os e entregou-os para essa dona de boutique. Liquidado esse contrato, a mesma confecção fez mais 120 casacos de pele, idênticos, e vendeu-os para dona da boutique vizinha. Há, também, evidentemente, deslealdade e falta de boa fé post factum finitum.
3º) Um indivíduo queria montar um hotel e procurou o melhor e mais barato carpete para colocar no seu empreendimento. Conseguiu uma fornecedora que disse ter o melhor preço, mas que não fazia a colocação de carpete, mas não disse ao colocador que o carpete que estava fornecendo para esse empresário era de um tipo novo, diferente. O colocador do carpete pôs uma cola inadequada e, semanas depois, todo o carpete estava estragado. A vendedora dizia: cumpri a minha parte no contrato, entreguei, recebi o preço, o carpete era esse: fiz um favor indicando um colocador. Segundo a regra da boa fé, porém, ela não agiu como diligência, porque, no mínimo, deveria ter alertado a
propósito do novo tipo de carpete – uma espécie de dever de informar e de cuidar, depois de o contrato ter terminado (in Revista Trimestral de Direito Civil, ano 1, vol. 1, p.6, Padma Editora).
Salientamos que aproximação contratual na relação de consumo não se confunde com a da relação civil: A primeira é protetiva e cuida da figura de um ente vulnerável: o consumidor. Já a segunda, trata de relação entre iguais, entre pares.
Clóvis do Couto e Silva esclarece não bastar que a parte contratante cumpra a prestação principal: “as partes devem observar outras condutas que também se constituem em deveres” E tais deveres visam proteger a contraparte de riscos de danos na sua pessoa e no seu patrimônio, sendo denominados por Judith Martins-Costa como deveres de proteção. Trata-se de deveres laterais que compõem um novo perfil do contrato. É o que chamamos de contrato contemporâneo.
Referências
TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Série Concursos Públicos Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie, volume 3, São Paulo, 2006, Editora Método.
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GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 19/09/2009
Alterado em 04/06/2010