"O conhecimento é o mais potente dos afetos: somente ele é capaz de induzir o ser humano a modificar sua realidade." Friedrich Nietzsche (1844?1900).
 

Professora Gisele Leite

Diálogos jurídicos & poéticos

Textos



 
A busca de seguros parâmetros estáveis e duradouros pela filosofia do Direito sempre encontra dramáticos óbices que são aparentemente indisponíveis dentro do ordenamento jurídico.
 
O processo normativo apresentar uma fragilidade peculiar os tempos de transição da modernidade para a contemporaneidade. Progressivamente as respostas dadas aos paradoxos perfazem uma nova dinâmica que trouxe a proeminência dos princípios sobre o direito positivo.
 
Afirmou em certa ocasião Leon Trotsky que “todo Estado mantém-se pela violência” é certo que o revolucionário russo de 1917 percebeu que ao longo da história da humanidade, institucionalizamos a violência e buscamos fundamentos filosóficos apenas para justificá-la.
 
Infelizmente somos obrigados a concluir que os pressupostos fundamentais do Direito não seja a conciliação e a harmonia de interesses, mas sim, a força e a sujeição que são legitimadas pelas convenções e regras jurídicas que autorizam a coerção,
 
A luta do Direito timbrada pelo humanismo procura valorar a sobrevivência dos princípios em relação às normas. O Direito está além da prescrição e nem se resume na norma em sua dimensão coercitiva.
 
Não basta apenas cumpri-la para garantir seu cumprimento e a convivência pacífica, há um suntuoso aparato de instrumentos dotados de força suficiente e com poderes capazes de viabilizar o pacto social.
 
Kelsen ressaltou em sua Teoria Pura do Direito que a concepção do Direito como ordem coativa da conduta humana se subsume num entendimento de ordem racionalista.
 
O Direito contém normas que se encontram graduadas em escalões dentro de uma pirâmide hierárquica. Desta forma, uma norma depende da outra e, assim, a norma fundante é a que dá origem e fundada e, esta, por sua vez, passa a ser fundante relativamente à norma inferior e, assim, sucessivamente.
 
A questão da liberdade do indivíduo é tão cara ao Estado Liberal nos remete logo ao problema a sujeição. Ser livre, segundo Hobbes, é ser sujeito à lei, não ao outro indivíduo.
 
Afinal, vaticinou Ihering que (...) “ninguém existe para si só, nem tampouco por si só: cada um existe para os outros e pelos outros, intencionalmente ou não por assim o corpo reflete o calorq eu recebeu de fora, assim também, o homem espalha em torno de si o fluído intelectual, ou moral que aspirou na atmosfera da civilização da sociedade”.
 
Na ambiência social construída pelo homem onde produzirá os efeitos e, desta recebendo, simultaneamente, os estímulos, há portanto, uma progressiva construção e, para se concretizar as realizações para serem livremente executadas, exigirão de seu autor, sempre um certo grau de sujeição.
 
A relação humana não se deixa contingenciar pela irrevogabilidade do elemento definitivo. Existem elementos duradouros, mas nunca eternos. É sob o pálio da temporariedade que o homem constrói o próprio conceito de perenidade dos valores que o servem e que transcendem o espaço imediato da norma positiva, sem se esquecer de respeitar o. neminem laedere[1].
 
A filosofia do Direito para compreender o fenômeno jurídico enfocou diversos pontos, a saber: a justiça, a relação jurídica, a lide e, por fim, a dignidade da pessoa. Tudo no intuito de dominar a violência estatal, mantendo-a sob vigilância, dentro do rígido círculo da legalidade.
 
A ciência jurídica vivencia uma crise paradigmática por conta da não recepção pelo Direito do paradigma pós-moderno do Estado Democrático de Direito.
 
E, nesse sentido, a crise do Direito Processual (abarcando tanto o processo penal como o processo civil) que continuam atrelados ao paradigma inquisitorial e racionalista.

De modo quando no neoconstitucionalismo que esquadrinha um Estado que prima pela garantia de direitos fundamentais-sociais, os legados da modernidade não se harmonizam com este novo modelo estatal, de Direito e de processo.
 
O Direito precisa atender com eficiência às necessidades da sociedade complexa e de risco, a qual pertence. O Direito precisa disciplinar a presente modernidade líquida conforme a dicção de Zygmunt Bauman[2].
 
Lembremos que o Direito Processual desde da época medieval fora marcado pela inquisitoriedade, uma herança indelével da Santa Inquisição, de onde se tinha a persecução penal, caracteriza-se pela busca verdade, de maneira que esta é imposta antecipadamente. O que infelizmente delegou alguns aspectos presentes no processo penal moderno.

A inquisitoriedade como paradigma moderno racionalista reverencia a verdade como imutável e eterna, não afetada pelo transcurso do tempo e nem mesmo pelas mudanças sociais e históricas.
 
É indubitável o poder operativo do Direito e, temos que reconhecer que sem coerção não há como valer a norma. Ontologicamente, a supressão da vontade humana, uma vez declarada, revela-se com as mesmas características da violência que desconhece a alteridade do ser-em-si.
 
Segundo Hegel, a superação desse impasse tende para o plano de ser-para-o-outro. Remonta ao pensamento de Locke ao seu conceito de Direito Natural o reconhecimento do crucial dilema existente entre os direitos e deveres confrontados na dinâmica da vida normatizada.
 
Afinal, a vida revela tanto na necessidade de governo, mediante a proteção de direitos naturais do homem, quanto pela sua justificação, através da transferência contratual à autoridade civil do direito natural de punir.
 
De fato, o equilíbrio entre os dois extremos, de um lado o conceito do alterum non laedere e, de outro lado, a ideia do jus puniendi concentrado no monopólio estatal responde por toda a unidade do ordenamento jurídico cultivado no Ocidente.
 
No ordenamento jurídico brasileiro essa questão vem disciplinada pelo artigo 5º, inciso V da CF/1988 no texto constitucional in verbis: “É assegurado o direito de resposta[3], proporcional ao agravo por dano material, moral ou à imagem”.
 
O dano em sua acepção ontológica não ocupa o mesmo espaço na ordem jurídica. Dentro do pragmatismo positivista, enxergava-se o bem imediato, bem como o seu valor conversível a cotação subjetiva do sujeito.
 
Enfim, se é árdua a tarefa de mensurar adequadamente o dano moral e seus efeitos danosos sobre a reserva de direitos conferidos ao cidadão, calcula-se o quão difícil é dimensionar o dano moral ou extrapatrimonial que se agrega ao patrimônio jurídico.
 
O maior erro cometido pelo juspositivismo ortodoxo é justamente voltar as costas para a aura incandescente de princípios e valores que voltam a reaquecer o interesse científico de filósofos e juristas.
 
Enfim, todas as controvérsias subsumem-se, portanto, à valorização dos termos “Política e Direito”. Depende todo o processo da relação de equilíbrio ente a capacidade interativa da sociedade e o poder que esta própria outorga ao Estado para disciplinar toda a complexa trama de ações e reações movidas pelo pensamento e, principalmente pela dinâmica social.
 
Foram os gregos, os primeiros pensadores que se devotaram à ideação desses valores, formulando sistemas filosóficos que remontam a Heródoto, Tucídides[4], Platão e Aristóteles.
 
Enquanto que os romanos, fundamentalistas do Direito criaram as legalidades privativas da ordem jurídica mais ampla que se conheceu no Ocidente.
 
Os romanos, no fundo, não se preocupavam com o revestimento teórico ou doutrinário que tais institutos poderiam oferecer. Os romanos eram especialmente atentos ao pragmatismo da relação jurídica, por si e para consigo e nos legaram importantes postulados de extraordinária serventia e que se reflete hoje em todo o patrimônio civilista do qual somos humildes legatários.
 
Os romanos ergueram todo esse arcabouço de forma concreta que municiou todo o positivismo jurídico ocidental, do ponto de credenciar a proteção legal através do Estado, através de operacionalização de instituições.
 
Mas, as noções e valores não se esgotam na esterilidade da norma positiva. De sorte que metaforicamente a lei assume o papel da esfinge, em sua proposição cruel: - Decifra-me, ou te devoro!
 
Cumpre observar que a norma jurídica em sua habitual selvageria e apetite insaciável costuma devorar apenas os excluídos, os sem-teto e os sem-direito.
 
Francesco Carnelutti em sua obra intitulada “A Arte do Direito” nos trouxe o conceito mais aprofundado do próprio Direito que nutre íntima relação com o Estado, o que corrobora plenamente a enunciação de Trotsky: “O Direito é a armação do Estado”.
 
Carnelutti ainda acrescentou que os filólogos ainda não descobriram propriamente sobre o vínculo existente entre ius e iungere[5], no entanto, o doutrinador italiano acreditava que tais palavras possuíam a mesma raiz etimológica. O ius une os homens como o iugum une os bois tal como a armação que une os tijolos.
 
O instrumento material que une as criaturas civilizadas é justamente a comunicação sendo inadmissível que todas as concepções restassem presas aos conceitos e princípios exarados por nossos antepassados.
 
O Direito e o Estado interagem-se e se sujeitam às mesmas normas que são simbióticas. Frise-se, porém, que só se realizam devido ao processo interativo que emana da emissão de vontades, de ideias, da livre manifestação do produto da inteligência humana.
 
O homem não é propriamente um conjunto previsível e ajustado para atuar na cena história e social conforme os limites de um software de potencial definido e de funções programadas.
 
O zoom politilkón[6] de Aristóteles opera na cadeia de realização cultural sob o signo da improvisação e da criatividade. Mas reconhecemos que a dinâmica do Direito seguirá seu curso independentemente de outras questões de ordem axiológica ou social.
 
 
[1] Diversos doutrinadores apontam, ainda hoje, ao neminem laedere como fundamento da responsabilidade denominada de extrajudicial ou delitual. A vedação aos delitos advém do princípio geral de "a ninguém lesar", ou como princípio geral da incolumidade das esferas jurídicas. Cogitam os doutrinadores, enfim que a responsabilidade extracontratual é decorrente da violação direta da lei e alguns chegam a apontar até inadimplemento normativo.
Relevante lição de Pontes de Miranda sobre a ideia de "a ninguém lesar", o neminem laedere é princípio formal e depende de determinação concreta do que é meu e do que é teu. Em outras palavras, o que faz a distribuição do que é de cada um (suum cuique tribuere) concretamente, são precisamente os fatos jurídicos. A partir dessa concreção efetuada pelos fatos jurídicos, não há mais porque aludir à norma ou à lei, pois alude-se àquilo que é, concretamente, de cada um.
[2] Bauman recentemente falecido é considerado um dos grandes pensadores do século XXI. Seu conceito de que vivemos uma era líquida, sem solidez e constantemente em mutação influencia o Direito, que, a princípio, se baseia em normas e precedentes rígidos.
E lidar com isso é um dos desafios da Justiça, segundo o historiador Leandro Karnal: "O mundo líquido é onde eu diluo a autoridade, onde as realidades são rápidas. Vivemos mudanças permanentes e as mudanças não dependem da minha consciência, da minha vontade ou não vontade e só tenho duas opções; ou me transformo rapidamente junto ou eu paro e a transformação passa por mim".
[3] A partir do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130, o STF determinou que a totalidade da Lei de Imprensa (Lei 5.250/67) manifestava-se ser incompatível com a ordem normativa a partir da Constituição Federal brasileira de 1988.
Por não haver disciplina legislativa a respeito, tem-se recebido ações pleiteando tutela jurisdicional de resposta sob o argumento de que o texto jornalístico fora ofensivo, determinando-se, a partir disso, a publicação de um texto de resposta.
A pergunta é: qual seria a resposta para uma ofensa? A produção, em resposta, de outra ofensa!? Daí porque pensamos que, para essas causas de pedir, a tutela jurisdicional buscada é a indenização, limitando-se o direito de resposta a corrigir, objetivamente, fatos publicados de forma errônea ou imprecisos. Portanto, juízo de valor, opinião, não são, em nosso ver, causas de pedir aptas a sustentar ação de direito de resposta.
[4] Heródoto e Tucídides apesar de muitos diferentes, muito se interessaram pela História. E, tinham um aspecto em comum, que é a atitude crítica com relação ao registro de acontecimentos, ou seja, o desenvolvimento de métodos críticos que nos permitem distinguir entre fatos e fantasias.

Heródoto faz uso da crítica a partir da análise dos fatos, os compara, buscando uma verdade histórica. Para ele era preciso buscar a verdade, mas também era fundamental preservar a tradição. No entanto, houve historiadores que o criticaram, inclusive Tucídides e muitos de seus sucessores. Eles criticaram a leviandade de Heródoto e denunciaram suas mentiras. Tucídides foi o principal culpado dessa rejeição do método teórico herodoteano pelo fato de trazer uma forma inovada para os estudos históricos. De modo geral, Tucídides permanecia como modelo de historiador verídico. Tucídides salvou a História de tornar-se prisioneira dos cada vez mais influentes retóricos que se preocupavam mais com as palavras do que com a verdade.”
[5] Em favor da tese alega-se a etimologia da palavra ius, derivada do mesmo radical que iugum e iungere, termos que exprimem um vínculo estabelecido pela vontade humana e estranho à dos deuses. Pela outra tese, entende-se que, de começo, havia apenas regras religiosas proibidoras, cujo conjunto formava o que os deuses proibiam aos homens de praticar e que se chamava de nefas.
Em contraposição ao proibido, o quanto os deuses permitissem aos homens praticar chamava-se de fas.
[6] Para Aristóteles afirmava que o homem normal é um zoon politilkón, ou seja, um animal político, um ser que vive para a cidade, para a sociedade Quem vivia isolado, ou era uma besta (totalmente animal) ou um deus (totalmente racional).
Aristóteles estava preocupado com a natureza do ser humano e suas relações sociopolíticas, acreditava que o indivíduo só pode ser plenamente realizado na sociedade, que tem a necessidade de viver com outras pessoas (civilidade). 
Ele também expressou que aqueles que são incapazes de viver em sociedade ou que não precisam disso por sua própria natureza, são porque são bestas ou deuses.
GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 29/12/2018
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